A Reforma da Previdência (EC 103/2019) proibiu a contagem de contribuições abaixo do salário mínimo como tempo de contribuição.

Nesse sentido, foram editadas a Portaria 450/2020 e o Decreto 10.410/2020 regulamentando as disposições da Reforma.

No post de hoje, iremos abordar a forma com que o INSS enfrentou as contribuições abaixo do salário mínimo, e porquê ela está equivocada.

 

Contribuições abaixo do salário mínimo

A Portaria 450/2020 e o Decreto 10.410/2020 determinaram que as contribuições abaixo do salário mínimo não serão computadas para nenhum fim.

O artigo 28 da Portaria deixa claro que estas competências não contarão para tempo de contribuição, carência, cálculos e sequer para manter a qualidade de segurado:

Art. 28. A competência cujo recolhimento seja inferior à contribuição mínima mensal não será computada para nenhum fim, ou seja, para o cálculo do valor do benefício, para a carência, para a manutenção da qualidade de segurado, além do tempo de contribuição.

Nesse ínterim, este entendimento trará severas implicações na prática previdenciária. Imaginem a seguinte situação hipotética:

João recebe um salário mínimo em seu emprego. Em 10/03/2021 (DER) postula auxílio-doença. Seu vínculo empregatício possui data fim em 20/01/2020, na qual recebeu remuneração proporcional aos dias trabalhados. João possui qualidade de segurado na DER?

Para o INSS, João perderá seu vínculo com o RGPS em 15/02/2021, pois somente irá considerar contribuições até 12/2019. Nesse sentido, possivelmente o benefício será indeferido por falta de qualidade de segurado.

O entendimento que iremos desenvolver neste post irá permitir que segurados, como o João, possam utilizar a contribuição vertida abaixo do mínimo contributivo para fins de manutenção da qualidade de segurado.

OBS: A ressalva fica por conta do trabalhador intermitente, que recebe remuneração abaixo do salário mínimo. A MP 808/17 estabelecia que as contribuições abaixo do mínimo não contariam para nenhum fim, no caso deste tipo de contrato de trabalho. Como a MP caducou, atualmente não haveria regulamentação, mas acreditamos que o INSS aplicará o entendimento neste caso.

 

O que diz a EC 103/2019 sobre contribuições abaixo do salário mínimo

A EC 103/2019 vedou a utilização de contribuições inferiores ao valor da contribuição mínima mensal.

Ocorre que esta vedação se deu somente para fins de tempo de contribuição. Quem diz isso é o texto literal do art. 195, §14 da Constituição, com redação dada pela EC 103/2019:

Art. 195, § 14. O segurado somente terá reconhecida como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições.

Pois bem, é compreensível (por um motivo atuarial) que a Reforma tenha vedado cômputo das contribuições abaixo do salário mínimo.

Ocorre que, claramente o INSS extrapolou o seu limite interpretativo, eis que o texto da EC 103/2019 apenas vedou o cômputo como tempo de contribuição.

Assim, a interpretação extensiva do INSS é totalmente descabida e infundada, conforme veremos adiante.

 

Contribuições abaixo do salário mínimo e carência

O INSS vedou o cômputo das contribuições abaixo do salário mínimo para fins de carência.

Pois bem, esta interpretação do INSS confronta com o próprio conceito de carência, presente no art. 24 da Lei 8.213/91:

Art. 24. Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências.

Ora, se a carência se refere ao número de contribuições mensais, e o empregador é obrigado a recolher a contribuição previdenciária proporcional aos dias trabalhados (art. 30, I, a, Lei 8.212/91), o Estado estará confiscando a contribuição vertida.

Nesse sentido, caso a tese do INSS seja adotada, um empregado que recebe um salário mínimo, e possui data de início/fim de vínculo no decorrer do mês, jamais poderá contar como carência aquela competência.

Conforme entendimento do STF, “a existência de estrita vinculação causal entre contribuição e benefício põe em evidência a correção da fórmula segundo a qual não pode haver contribuição sem benefício, nem benefício sem contribuição.” (ADC 8, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24.5.2004).

Aliado a isto, “a dimensão contributiva do sistema é incompatível com a cobrança de contribuição previdenciária sem que se confira ao segurado qualquer benefício, efetivo ou potencial” (RE 593068, Rel. Min. Roberto Barroso, DJU 10.10.2018).

Ademais, o STJ já se manifestou no sentido de que “não se afigura razoável que o Segurado verta contribuições que podem ser simplesmente descartadas pela Autarquia Previdenciária” (REsp 1.554.596/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Mai Filho, DJU 11.12.2019).

Além disso, a contribuição do segurado empregado, proporcional ao número de dias trabalhados quando não completados os 30 dias do mês, é totalmente regular do ponto de vista tributário.

Seria um absurdo exigir que o segurado complemente uma contribuição sobre uma remuneração que não recebeu, apenas para cômputo de carência (que é contada em número de meses)!

Portanto, tal exigência não encontra amparo na EC 103/2019, bem como é incoerente com o próprio conceito de carência.

 

Contribuições abaixo do salário mínimo e manutenção da qualidade de segurado

Como se não bastasse, a Portaria 450/2020 e o Decreto 10.410/2020 foram além ao estabelecerem que a contribuição abaixo do salário mínimo sequer manteria a qualidade de segurado.

Ou seja, a contribuição aqui não serviria (literalmente) para nada.

Aqui, temos um problema conceitual grave.

Para os segurados obrigatórios, o que gera o vínculo com a Previdência Social? Quem pensou “é o pagamento da contribuição” está totalmente equivocado.

A filiação para os segurados obrigatórios se dá automaticamente pelo exercício de atividade remunerada. 

Isso significa dizer que o empregador pode não fazer o repasse das contribuições do empregado e ainda assim, este será considerado como segurado da Previdência Social.

Vamos trazer um exemplo para tornar mais fácil a compreensão:

Maria, contando com 18 anos, consegue seu primeiro emprego no dia 01/01/2020, recebendo uma remuneração de salário mínimo. Contudo, após 15 dias de trabalho, é demitida. O empregador realiza o pagamento de todos os encargos de forma proporcional aos dias laborados.

Neste exemplo, Maria seria considerada segurada da Previdência Social? Se a mesma sofresse um acidente de trabalho, poderia solicitar um benefício por incapacidade?

Os novos regramentos vedariam a utilização desta contribuição proporcional à 15 dias para fins de qualidade de segurado.

Em nossa opinião, Maria seria contribuinte do RGPS na condição de empregada, possuindo direito a um auxílio-doença acidentário, por exemplo.

Se a contribuição abaixo do salário mínimo, para o segurado empregado, sequer pode manter a qualidade de segurado, qual a sua razão de existir?

A restrição para cômputo como tempo de contribuição (como preconiza o texto da EC 103/2019), é plenamente compreensível. Contudo, não se pode admitir que a contribuição vertida adequadamente seja totalmente ignorada.

Assim, é insustentável a defesa da tese de que as contribuições abaixo do mínimo (especialmente dos segurados empregados) sequer manteria a qualidade de segurado.

 

Uma nova tese: mas afinal, o que é contribuição “igual ou superior à contribuição mínima mensal“?

Por fim, superado o debate mais “óbvio”, propomos uma reflexão com os previdenciaristas.

Qual é o real sentido da expressão “igual ou superior à contribuição mínima mensal”, presente no art. 195, §14º da Constituição?

Para o contribuinte individual e facultativo esta discussão é um tanto óbvia, eis que a contribuição sempre considera o mês inteiro.

Todavia, para os segurados empregados, esta é um questionamento frutífero.

O art. 214, §3º, II do Decreto 3.048/99 diz que para os segurados empregados o limite mínimo do salário de contribuição é o salário mínimo tomado no valor mensal diário ou horário.

Como a prática nos mostra, a maior parte dos vínculos de emprego se inicia e se finda em “datas quebradas”. Ou seja, em datas que não são o primeiro e último dia do mês, respectivamente.

Se o segurado laborou 10 dias no seu último mês, recebendo 10 dias de remuneração proporcional ao salário mínimo, a contribuição previdenciária incidirá sobre este valor.

Veja-se que o empregador não pagou menos que o salário mínimo, na medida em que pagou proporcionalmente aos dias laborados.

Nesse sentido, podemos sustentar que neste caso, a contribuição teria sido vertida no mínimo mensal possível, do ponto de vista tributário.

Se o segurado trabalhou apenas 10 dias no mês, recebeu remuneração proporcional aos 10 dias, e foi recolhida a contribuição proporcional aos 10 dias, tudo foi feito de forma absolutamente regular.

O segurado não pode ter simplesmente inutilizada para qualquer fim uma contribuição vertida regularmente e dentro das regras tributárias pertinentes.

Portanto, é possível sustentar que nestes casos, como o que ilustramos, a contribuição poderia ser considerada igual/acima da contribuição mínima mensal.

Deixo abaixo um modelo de petição inicial para ser utilizado em casos análogos:

Petição inicial. Benefício por incapacidade (auxílio-doença, aposentadoria por incapacidade permanente, auxílio-acidente). Contribuição abaixo do salário mínimo. Portaria 450/2020. Qualidade de segurado.

 

Esperamos que este post possa desenvolver questionamentos e aprimorar o debate no direito previdenciário.

Um forte abraço!

 

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