
AGRAVO INTERNO EM PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO À APELAÇÃO (TURMA) Nº 5018940-36.2024.4.04.0000/RS
PROCESSO ORIGINÁRIO: Nº 5048699-56.2022.4.04.7100/RS
RELATORA: Desembargadora Federal VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
RELATÓRIO
Trata-se de agravo interno (evento 9), interposto em face da decisão do evento 2, que indeferiu o pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação.
Em suas razões, a agravante alegou que:
I. (...) não há se falar em indeferimento, pela Administração/União, na via administrativa, do benefício de Auxílio Brasil, mas sim, e unicamente, de necessária suspensão/bloqueio do pagamento por força de cumulação indevida de benefícios - bolsa família e auxílio emergencial, até que compensados os meses de competência/valores recebidos indevidamente;
II. (...) a legislação do Auxílio Emergencial (AE) e do Auxílio Emergencial 2021 (AE21), por meio do § 2º do art. 2º, da Lei nº 13.982/2020, e do art. 5º, da Medida Provisória nº 1.039/2021, respectivamente, proíbe a percepção cumulativa do auxílio emergencial e do bolsa família, ou de seu sucessor, o Auxílio Brasil;
III. (...) dada a impossibilidade temporal de suspender as parcelas do então PBF dos mesmos meses de referência das parcelas do AE/AE21 pagas com atraso, visto que aquelas foram devidamente liquidadas à época, então a única solução que se vislumbra, de modo a atender fielmente à legislação em tela, consiste em efetuar a suspensão de parcelas correntes do PAB, sucessor do PBF, na mesma quantidade;
IV. (...) não se sustenta a fundamentação sentencial no sentido de que vedada a compensação levada a efeito pelos órgãos competentes da Administração Pública federal. Com efeito, diante da expressa previsão legal acerca da impossibilidade de cumulação de benefícios - no caso auxílio emergencial e bolsa família-, a suspensão provisória da percepção do Auxílio Brasil constitui atuação consentânea com a legislação aplicável e o Princípio da Legalidade na qualidade de norte de atuação da Administração Pública;
V. (...) diante da expressa previsão legal acerca da impossibilidade de cumulação de benefícios - no caso auxílio emergencial e bolsa família-, a suspensão provisória da percepção do Auxílio Brasil constitui atuação consentânea com a legislação aplicável e o Princípio da Legalidade na qualidade de norte de atuação da Administração Pública;
VI. O número de famílias impactadas pela suspensão das parcelas do auxílio, para fins de compensação, é inferior a 500 (quinhentos), devendo ser considerada a proporcionalidade entre os meios necessários e os seus impactos operacionais, sistêmicos e contratuais, conforme demonstrados pelas áreas técnicas do Ministério da Cidadania, relevando também levar-se em consideração o quantitativo substancialmente reduzido de famílias que se enquadram nessa situação peculiar, em comparação com o universo total de beneficiários do programa, o que torna indubitável a razoabilidade da conduta administrativa voltada à regularização das pontuais pendências identificadas;
VII. (...) patente se mostra a violação das normas que estabelecem a inacumulabilidade, quais sejam o art. 2º, III, da Lei 13.982/2020, bem como o art. 1º, § 2º, inciso II, e o art. 5º, ambos da Medida Provisória nº 1.039/2021, além das normas do § 1º, do art. 9º, do Decreto nº 10.316, de 7 de abril de 2020, do caput e § 1º do art. 8º da Portaria MC nº 351, de 7 de abril de 2020, que regulamenta o AE, do art. 15 do Decreto nº 10.661, de 26 de março de 2021, que regulamenta o AE21, bem como do art. 83-A do Decreto nº 10.852, de 8 de novembro de 2021;
VIII. (...) a prudência necessária ao enfrentamento das consequências pontuais advindas da pandemia da Covid-19 na seara judicial não se coaduna com a concessão, ou manutenção, de medidas liminares sem a devida maturação da causa, apenas possível em cognição exauriente, havendo evidente periculum in mora inverso, no atual cenário, ao se deferir o pedido antecipatório nos termos postulados pela DPU, como efetivado na sentença apelada, pois ao tratar de forma generalizada a pretensão de suspensão temporária do benefício Auxílio Brasil - não obstante os requerentes sejam titulares de pretérita cumulação indevida de benefícios - além de conferir indevidamente um tratamento homogêneo para situações individuais que demandam análise de caso a caso, sendo portanto não homogêneas, tal deferimento certamente conduzirá para situações de percepção indevida de parcelas, as quais em decorrência da sua natureza alimentar, caracterizam-se como irrepetíveis, e, dessa forma, não haveria como a União buscar o ressarcimento dos valores concedidos de forma indevida, circunstância que por si só já caracteriza o periculum in mora reverso, além de afronta ao princípio da reserva do possível;
IX. (...) legítima a pretensão de suspensão da eficácia da sentença, dada a inegável necessidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso de apelação da União, diante da demonstrada probabilidade do direito, a relevante fundamentação e o indiscutível e iminente risco de grave dano à União;
X. (...) o magistrado simplesmente desconsiderou as consequências práticas decorrentes de sua decisão, pois não houve qualquer ponderação com relação à necessidade de se prestigiar a expertise e a organização estrutural dos órgãos administrativos competentes para a administração, execução e efetivação dos programas sociais em comento, que não prescinde da alocação de uma considerável gama de agentes e recursos tecnológicos especialmente construídos e aplicados de forma a atender à complexidade e amplitude de programas de governo voltados ao atendimento de diversas necessidades sociais de mais de uma centena de milhões de cidadãos, de forma que a intervenção judicial da forma como efetivada possui o condão de ocasionar o descontrole e o desequilíbrio daquelas atividades, gerando não apenas insegurança jurídica e desordem administrativa, como também possíveis incalculáveis prejuízos a extensa gama de beneficiários outros, que não aquela parcela mínima dos afetados pela legalmente necessária compensação de valores percebidos em cumulação indevida, ocasionando inegável periculum i reverso, e
XI. E de novo se alerta para a circunstância de que a manutenção da tutela de urgência, conforme já referido acima, carrega o potencial efeito de ocasionar sérios e irreparáveis danos econômico-financeiros à União, além de trazer o caos e a insegurança jurídica no âmbito da administração pública federal, incluindo este respeitável Poder Judiciário, posto o risco concreto e iminente de imediatos ajuizamentos de ações individuais buscando vantagens financeiras que decorram de tal possível decisão, situações estas que, per se, tornam indubitável a premência de nova decisão deste Egrégio Regional garantindo a estabilização das referidas questões até que solvido o mérito do processo de forma definitiva.
Prequestiona os dispositivos elencados.
O(A)(s) agravado(a)(s) apresentou(aram) contrarrazões.
É o relatório.
VOTO
Consoante o artigo 14 da Lei n.º 7.347/1985, que prescreve que o juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte, a apelação interposta contra sentença de procedência em ação civil pública, de regra, não possui efeito suspensivo.
O artigo 1.012, § 1º e 4º, do CPC, por sua vez, dispõe que:
Art. 1.012 (...)
§ 1º Além de outras hipóteses previstas em lei, começa a produzir efeitos imediatamente após a sua publicação a sentença que:
I - homologa divisão ou demarcação de terras;
II - condena a pagar alimentos;
III - extingue sem resolução de mérito ou julga improcedentes os embargos do executado;
IV - julga procedente o pedido de instituição de arbitragem;
V - confirma, concede ou revoga tutela provisória;
VI - decreta a interdição.
(...)
§ 4º Nas hipóteses do § 1º, a eficácia da sentença poderá ser suspensa pelo relator se o apelante demonstrar a probabilidade de provimento do recurso ou se, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou de difícil reparação. (grifei)
Com efeito, a suspensão da eficácia imediata da sentença pressupõe a demonstração da probabilidade de provimento do recurso ou, sendo relevante a fundamentação, a existência de risco de dano grave ou de difícil reparação (artigo 1.012, § 4º, do CPC), e os requisitos para a concessão de tutela de urgência (ou provisória) estão previstos no artigo 300 do CPC.
Eventual irreversibilidade ou dificuldade de reversão dos efeitos da medida, assim como o esgotamento do objeto da lide, não impedem a tutela de urgência, quando há risco de a demora frustrar a própria prestação jurisdicional, acarretando o perecimento do direito.
A sentença - cujos efeitos o(a) requerente pretende suspender - tem o seguinte teor (evento 74 dos autos originários):
1. Relatório
Trata-se de ação civil pública entre as partes acima, pela qual se objetiva:
b) Condenar a ré a uma obrigação de não fazer, qual seja, a de se abster a indeferir benefícios de Auxílio Brasil com base no fundamento de ter o requerente recebido cumulativamente valores a título de Bolsa-Família e Auxílio Emergencial, notadamente nos casos em que o Auxílio Emergencial foi pago em razão de ordem judicial, a ser implantada no prazo de 72hs, sob pena de multa no valor de R$ 10.000,00 por caso de indeferimento indevido em razão de tal justificativa;
c) A condenação da ré ao pagamento de indenização por dano moral coletivo em razão de ato ilícito decorrente da retenção indevida de parcelas de Auxílio Brasil e/ou pagamento de parcelas em número inferior ao devido, nos termos da fundamentação;
Alega a inicial que indivíduos economicamente pobres que requereram o benefício de auxílio emergencial durante os anos de 2020 e 2021, o tiveram negado na via administrativa, referindo que
"estes cidadãos, então, buscaram a tutela do poder judiciário, tendo ao final lhes sido reconhecido o direito ao recebimento de tais valores, os quais lhes foram pagos no correr do ano de 2022. Ocorre que, uma vez solicitado o pagamento do benefício do Auxílio Brasil, o Ministério da Cidadania lhes reteve o pagamento das parcelas, sob alegação de cumulação indevida de benefícios sociais. De fato, ao longo dos anos de 2020 e 2021, ante a negativa na concessão do benefício de auxílio emergencial, tais cidadãos permaneceram recebendo as parcelas referentes ao programa bolsa-família. Alega a União Federal que os benefícios de auxílio emergencial e bolsa-família não são passíveis de cumulação e, uma vez constatado o recebimento cumulativo, ainda que não simultâneo, o requerente não deve ter acesso ao recebimento do Auxílio Brasil, ocorrendo o bloqueio automático de tais pagamentos no sistema do Ministério da Cidadania".
Sustenta a inexistência de cumulação indevida de benefícios sociais, referindo que
"o auxílio emergencial é benefício de caráter temporário, não podendo ser considerado para fins de cálculo da renda familiar per capita por ocasião da análise da elegibilidade do requerente a outros benefícios sociais, em especial o Auxílio Brasil" que "ao determinar o bloqueio de valores devidos a título de Programa Auxílio Brasil (PAB) com base no recebimento de valores decorrentes do pagamento de auxílio emergencial, o Ministério da Cidadania (União Federal) agiu em descumprimento de expressa disposição legal" reconhecendo a DPU, entretanto, que "a legislação veda a possibilidade de recebimento simultâneo de auxílio emergencial e bolsa-família, conforme se depreende da leitura da Lei nº 13.982/2020", mas que "eventual recebimento indevido não pode ser imputado ao administrado".
A inicial remete a amostragem de 35 casos identificados, afirmando que
"o número deve chegar a alguns milhares já que, potencialmente, todos os cidadãos que receberam seu benefício de auxílio emergencial pela via judicial e vierem a requerer o Auxílio Brasil apenas o irão receber se ingressarem, novamente, na via judicial. Desta feita, há o risco de uma nova explosão de demandas no Poder Judiciário".
Conclui pela violação do devido processo legal e da proporcionalidade no caso concreto, em face da União, de ofício, determinar o bloqueio de valores que lhes seriam devidos a título de benefício Auxílio Brasil, dos cidadãos que receberam de forma irregular e cumulativa os benefícios bolsa família (BF) e auxílio emergencial (AE):
"a prática da União Federal é desproporcional e excessivamente onerosa ao cidadão, já que os valores recebidos pelos particulares a título de bolsa-família, no correr de 2021, são em quantia muito inferior ao que os requerentes viriam a receber mediante Auxílio Brasil."
Intimada, a União apresentou informações preliminares no evento 7.
Houve parecer ministerial no evento 10.
Foi proferida decisão deferindo o pedido de tutela de urgência (evento 12).
Citada, a União apresentou contestação no evento 29. Preliminarmente, alegou a inadequação da via eleita. No mérito, aduziu que não há se falar em compensação futura e incerta, mas em bloqueio imediato do AB pelo igual número de parcelas auferidas do AE. Argumentou que a atuação da Administração Pública se pauta pelo princípio da legalidade, de modo que não pode conceder tratamento diverso ao que está previsto no art. 2º §2º, da Lei nº 13.982/2020. Disse ainda que em situações de crise expcional, como no caso da pandemia de Covid-19, deve ser respeitada a discricionariedade de cada esfera e a reserva de administração. Apontou jurisprudência em abono à sua tese. Sucessivamente, defendeu o descabimento de indenização por dano moral coletivo e a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e do pedido de multa contra a Administração Pública. Pugnou, ao final, pela reconsideração da decisão que deferiu o provimento liminar.
Houve réplica no evento 36, com pedido de produção de prova testemunhal.
O Ministério Público Federal apresentou manifestação no evento 41, opinando pelo acolhimento parcial dos pedidos.
A União noticiou o cumprimento da tutela de urgência no evento 46.
O pedido de prova testemunhal foi indeferido no evento 52. Na oportunidade, foi também determinada a intimação da União para esclarecimentos sobre o cumprimento do provimento liminar, o que foi atendido no evento 55.
Intimada, a parte autora se manifestou no evento 59.
Da decisão que deferiu o pedido de tutela de urgência houve interposição do AI nº 5048008-02.2022.4.04.0000, que restou provido em parte.
Sobreveio promoção ministerial no evento 68.
Vieram-me os autos conclusos para sentença.
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação
Preliminar - Inadequação da via eleita
A controvérsia já foi objeto de análise na decisão do evento 12, que reconheceu a homogeneidade do direito objeto da demanda e, por consequência, o cabimento da presente ação civil pública.
Mérito
Assim me manifestei na decisão do evento 12, ao deferir o pedido de tutela de urgência:
2. Quanto às preliminares, cabível a tutela provisória, conforme entendimento iterativo do TRF4:
Eventual irreversibilidade ou dificuldade de reversão dos efeitos da medida, assim como o esgotamento do objeto da lide, não impedem a tutela de urgência, quando há risco de a demora frustrar a própria prestação jurisdicional, acarretando o perecimento do direito.
Outrossim, a vedação à concessão de tutela provisória contra a Fazenda Pública (art. 1.059 do CPC, arts. 1º a 4º da Lei n.º 8.437, de 30 de junho de 1992, art. 7º, §§ 2º e 5º, da Lei n.º 12.016, de 7 de agosto de 2009, art. 2º-B da Lei n.º 9.494/97, art. 1º da Lei n.º 5.021/66, e art. 5º da Lei n.º 4.348/64) não subsiste nas hipóteses em que a postergação da prestação jurisdicional possa acarretar perecimento de direito e/ou implique mera restauração de status quo ante. Em relação à implantação de benefício de natureza previdenciária, essa orientação está sumulada sob n.º 729 pelo e. Supremo Tribunal Federal: "A decisão na ADC-4 não se aplica à antecipação de tutela em causa de natureza previdenciária". TRF4, AG 5026217-11.2021.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 11/02/2022
A ratio decidendi do precedente se faz aqui presente. Aqui há um direito ao auxílio brasil (AB), bloqueado porém por um suposto direito de crédito a ser compensado pela União, compensação esta a se concretizar sabe-se lá quando. E enquanto isso, o titular do AB, cuja presunção de miserabilidade decorre da satisfação dos requisitos da lei, aguarda até que a União implemente os ajustes no sistema de pagamentos que permitam a compensação. O que se pleiteia na inicial, portanto, é retorno ao status quo anterior ao manejo do bloqueio-antecedente-a-compensação. A título de esclarecimento, este o proceder da União conforme nota informativa do próprio ministério da cidadania:
13. Na hipótese de recebimento do auxílio emergencial que não podia haver a cumulação, era realizada a suspensão do Bolsa Família durante o mesmo período de meses deste último benefício, ou apenas a complementação do seu valor
...
18. Nessa esteira, a União realizou o bloqueio do benefício do Programa Auxílio Brasil que sucedeu o Programa Bolsa Família na mesma quantidade de parcelas deferidas do auxílio emergencial
Ou seja, a União deixa de pagar o AB na mesma quantidade de meses em que houve percepção cumulativa de benefícios, benefícios estes cuja percepção cumulada é proibida em lei. O bloqueio cautelar de pagamento perdura até que a União implemente mecanismos de cálculo do que ainda é devido após a compensação entre o crédito de AB com o débito de AE.
Não o bastasse, a própria S 729 do STF1 restringe o âmbito das proibições às liminares contra a fazenda pública, e sua extensão às lides previdenciárias parece aplicável ao benefício assistencial ora em exame.
3. De outra banda, nada mais homogêneo que o direito tutelado nos autos. O que une os substituídos é uma e só uma situação jurídica, a de estarem com o AB bloqueado cautelar e administrativamente por compensação que não se sabe quando será implementada, porque receberam o AE judicialmente e a destempo, enquanto percebiam o BF. Quaisquer outras hipóteses de bloqueio de pagamento (eventual fraude, por exemplo), estão fora do escopo da demanda. A própria NT do Ministério da Cidadania de ev. 7 ou2 confirma essa homogeneidade ao identificar o quantitativo extraordinário de pessoas nessa mesma e única situação jurídica base discutida nos autos:
Viável a tutela coletiva portanto.
3. No mérito, o parecer do representante do MPF, dr. Fabiano de Moraes, emprestou intelecção à causa partilhada pelo juízo:
Analisando os argumentos postos, verifica-se que a situação objeto da presente ação civil pública engloba basicamente pessoas que tiveram o benefício de auxílio emergencial negado na via administrativa e obtido o reconhecimento judicial ao recebimento dos valores, os quais lhes foram pagos no decorrer do ano de 2022.
A Lei nº 13.982/2020, previu que o auxílio emergencial substituiria, temporariamente e de ofício, o benefício do Programa Bolsa Família. Entretanto, as pessoas que receberam o benefício por via judicial acabaram por receber os dois benefícios - um na época devida e outro em momento posterior.
A União assim realizou o bloqueio do benefício do Programa Auxílio Brasil que sucedeu o Programa Bolsa Família na mesma quantidade de parcelas deferidas do auxílio emergencial, considerando que foram recebidos extemporaneamente, ainda que os valores dos benefícios não sejam idênticos.
Basicamente, afirma que a adoção de sistemática diferente, exigiria ajustes metodológicos no sistema, que seriam implantados somente no longo prazo, em face das limitações operacionais e contratuais que se impõem no contexto atual.
Ainda que seja óbvio, necessário reforçar o caráter eminentemente alimentar do Auxílio Brasil sendo que a sua suspensão acarreta maiores prejuízos aos beneficiários dos que os valores que foram pagos indevidamente, inclusive ao considerar a impossibilidade de aferir o valor dos descontos devidos se o benefício concedido judicialmente tivesse sido realizado no tempo em que era devido.
De igual maneira, a União reconhece que a complexidade de alteração dos sistemas por questões operacionais e contratuais exigiria avaliar o custo-benefício da medida em termos econômicos para o Ministério, pois, além do tempo e recursos humanos despendidos, possivelmente ensejaria na majoração de tarifas cobradas pelos serviços prestados pela Dataprev.
Ou seja, a União optou em adotar uma medida mais gravosa aos beneficiários simplesmente pela dificuldade em realizar os descontos da forma mais correta. E aqui verifica-se que nem a Defensoria Pública da União, autora da ação, nem o Ministério Público Federal discordam que eventuais valores pagos a maior poderiam ser ressarcidos, desde que adotados os procedimentos previstos pela própria legislação (Lei nº 14.284/2021).
Sopesando os argumentos da União e os apresentados pela Defensoria Pública da União e considerando o universo de pessoas atendidas (as quais acabam por ser punidas, indiretamente, por ter reconhecido seu direito ao auxílio emergencial apenas em momento posterior na Justiça), sujeitas a ter sua condição de miserabilidade agravada, plenamente cabível a antecipação da tutela pretendida.
Posto isso, opino pela concessão da tutela de evidência para União se abster a indeferir benefícios de Auxílio Brasil com base exclusivamente no fundamento de ter o requerente recebido cumulativamente valores a título de Bolsa-Família e Auxílio Emergencial, em razão do pagamento extemporâneo deste em razão de decisão judicial.
4. A literalidade da lei desautoriza o bloqueio de pagamento concretizado pela ré:
Art. 4º Constituem benefícios financeiros do Programa Auxílio Brasil, destinados a ações de transferência de renda com condicionalidades, nos termos do regulamento e observadas as metas de que trata o art. 42:
§ 3º Os benefícios financeiros previstos nos incisos I, II e III do caput deste artigo constituem direito das famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza a eles elegíveis nos termos desta Lei, sendo-lhes assegurado o acesso às transferências de renda tão logo se verifique que elas preenchem os requisitos para isso, na forma dos procedimentos fixados no regulamento, observando-se o previsto no § 1º do art. 21.
Ou seja, satisfeitos os requisitos legais, e o direito ao pagamento do AB surge automaticamente, sem outras condicionantes.
5. E ainda na literalidade da lei, há uma expressa vedação à compensação pretendida, quando efetuada por instituição bancária responsável pelo pagamento do AB:
Do Agente Operador
Art. 24.Fica atribuída às instituições financeiras federais a função de agente operador do Programa Auxílio Brasil e dos recursos e benefícios financeiros previstos nesta Lei, mediante condições a serem pactuadas com o governo federal, observadas as formalidades legais, nos termos do regulamento.
[...]
§ 3º Fica vedado às instituições financeiras referidas no caput deste artigo efetuar descontos ou compensações que impliquem a redução do valor dos benefícios financeiros do Programa Auxílio Brasil, a pretexto de recompor saldos negativos ou de saldar dívidas preexistentes do beneficiário, válido o mesmo critério para qualquer tipo de conta bancária em que houver opção de transferência pelo beneficiário.
6. O reconhecimento pelo legislador do aspecto alimentar do AB, e a consequente proibição de compensação por instituições bancárias, por analogia se pode transpor para a medida ora pretendida pela União, ela que também executou essa mesma compensação proibida na lei em face de instituições financeiras. Mas a analogia sequer é necessária, porque há toda uma seção da lei do AB que regra o ressarcimento de quantias percebidas indevidamente pelo beneficiário:
Seção X
Do Ressarcimento
Art. 28.Na hipótese de haver indícios de irregularidade ou de erros materiais na concessão, na manutenção ou na revisão do benefício de auxílio emergencial concedido com amparo na Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, na Medida Provisória nº 1.000, de 2 de setembro de 2020, e na Medida Provisória nº 1.039, de 18 de março de 2021, o Ministério da Cidadania notificará o beneficiário, seu representante legal ou seu procurador para ressarcimento dos valores, por um dos seguintes meios:
I - eletrônico;
II - serviço de mensagens curtas (SMS);
III - rede bancária;
IV - via postal, considerado o endereço constante do cadastro do benefício, hipótese em que o aviso de recebimento será considerado prova suficiente da notificação;
V - pessoalmente, quando entregue ao interessado em mão; ou
VI - por edital, quando o beneficiário não for localizado, na hipótese de que trata o inciso IV deste artigo.
§ 1º O beneficiário que dolosamente prestar informações falsas ou utilizar-se de qualquer meio ilícito a fim de indevidamente ingressar ou manter-se como beneficiário do Programa Bolsa Família ou do Programa Auxílio Brasil será notificado para ressarcimento dos valores referidos no caput deste artigo.
§ 2º O regulamento disporá sobre:
I - os critérios para definição das situações de irregularidades e de erros materiais referidos no caput deste artigo e os procedimentos para a cobrança dos valores devidos, garantidos o contraditório e a ampla defesa;
II - as formas de notificação previstas nos incisos I, II e III docaputdeste artigo; e
III - os prazos, as etapas e os demais procedimentos necessários ao processo de ressarcimento.
§ 3º As condições e os valores mínimos para a cobrança extrajudicial a que se refere ocaputdeste artigo serão estabelecidos em regulamento.
§ 4º Os valores não restituídos voluntariamente, na forma e nos prazos estabelecidos no regulamento referido no § 2º deste artigo, serão inscritos em dívida ativa da União, nos termos da legislação.
§ 5º Para fins de ressarcimento, será utilizado o valor original do débito.
§ 6º O procedimento disposto neste artigo será aplicado aos processos de ressarcimento do Programa Bolsa Família ainda não concluídos, mantida a obrigatoriedade de constatação de conduta dolosa do beneficiário.
Art. 29.Fica a União, por meio do Ministério da Cidadania, autorizada a contratar, com dispensa de licitação, instituições financeiras federais para a prestação de serviços relacionados aos atos de que trata o art. 28 desta Lei, a fim de obter a restituição dos valores indevidamente pagos a título de auxílio emergencial com amparo na Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, na Medida Provisória nº 1.000, de 2 de setembro de 2020, e na Medida Provisória nº 1.039, de 18 de março de 2021, bem como os ressarcimentos de benefícios recebidos indevidamente no Programa Bolsa Família, previsto na Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e no Programa Auxílio Brasil.
§ 1º Para fins de ressarcimento, será utilizado o valor original do débito.
§ 2º Fica autorizada a concessão de descontos, nos termos do regulamento, para a liquidação à vista da dívida, desde que os valores sejam inferiores aos custos de cobrança.
§ 3º O valor devido poderá ser parcelado, nos termos do regulamento.
§ 4º A União poderá dispensar o processo de ressarcimento, quando se tratar de valores insignificantes, nos termos do regulamento.
O silêncio da lei fala por si. Nem é necessária criatividade para se extrair dessa seção da lei o aspecto declaratório desta ação coletiva: está vetada a compensação de débitos do beneficiário com o AB que lhe é devido; eventuais cobranças se devem promover por meio de cobranças extrajudiciais ou judiciais, após inscrição em dívida ativa.
7. A única hipótese prevista de compensação/desconto no valor do AB é relativamente aos pagamentos futuros de AB concomitante ao pagamento do "seguro defeso" da L 10779/03, por conta de eventuas impropriedades do sistema de pagamento. Ou seja, caso o sistema da União não detecte tempestivamente os pagamentos que o INSS promove de "seguro defeso" aos pescadores, a concomitância desse duplo pagamento autoriza, nessa única e excepcional hipótese, a compensação pela União nos pagamentos de AB:
§ 8º Desde que atendidos os demais requisitos previstos neste artigo, o benefício de seguro-desemprego será concedido ao pescador profissional artesanal cuja família seja beneficiária do programa de transferência de renda com condicionalidades de que trata a Lei nº 14.284, de 29 de dezembro de 2021, e caberá ao órgão ou à entidade da administração pública federal responsável pela manutenção do programa a suspensão do pagamento dos benefícios financeiros previstos nos incisos I, II, III e IV do caput do art. 4º da Lei nº 14.284, de 29 de dezembro de 2021, pelo mesmo período da percepção do benefício do seguro-desemprego. (Redação dada pela Lei nº 14.342, de 2022)
§ 9o Para fins do disposto no § 8o, o INSS disponibilizará aos órgãos ou às entidades da administração pública federal responsáveis pela manutenção de programas de transferência de renda com condicionalidades as informações necessárias para identificação dos beneficiários e dos benefícios de seguro-desemprego concedidos, inclusive as relativas à duração, à suspensão ou à cessação do benefício. (Incluído pela Lei nº 13.134, de 2015)
§ 10. Caso a suspensão prevista no § 8º deste artigo não possa ser iniciada em até 6 (seis) meses após o início do pagamento do seguro-defeso, por motivos excepcionais, o órgão ou a entidade da administração pública federal responsável pela manutenção do programa de transferência de renda com condicionalidades fica autorizado a efetuar o desconto de até 30% (trinta por cento) do valor pago mensalmente à família, até que seja integralmente ressarcido o valor pago indevidamente. (Incluído pela Lei nº 14.342, de 2022)
8. Nessa linha, o precedente do TRF4 citado pela União em sua defesa, que autorizava compensar débitos com o seguro desemprego com parcelas futuras do desse mesmo seguro desemprego, é como que feitiço contra o feiticeiro. É porque a compensaçao é mecanismo previsto em lei e sujeito a procedimento administrativo, bem diferente portanto do "devo, não nego, pago quando eu achar que os ajustes do sistema são custo-efetivos, e enquanto isso o titular do direito que aguarde ou busque em juízo seus direitos" que resumem o proceder da ré. No que toca à compensação do seguro desemprego dispõe a Lei 7.998/90, com a redação dada pela Lei 13.134/15:
Art. 25-A. O trabalhador que infringir o disposto nesta Lei e houver percebido indevidamente parcela de seguro-desemprego sujeitar-se-á à compensação automática do débito com o novo benefício, na forma e no percentual definidos por resolução do Codefat. (Incluído pela Lei nº 13.134, de 2015)
§ 1º - O ato administrativo de compensação automática poderá ser objeto de impugnação, no prazo de 10 (dez) dias, pelo trabalhador, por meio de requerimento de revisão simples, o qual seguirá o rito prescrito pela Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999. (Incluído pela Lei nº 13.134, de 2015)
§ 2º - A restituição de valor devido pelo trabalhador de que trata o caput deste artigo será realizada mediante compensação do saldo de valores nas datas de liberação de cada parcela ou pagamento com Guia de Recolhimento da União (GRU), conforme regulamentação do Codefat. (Incluído pela Lei nº 13.134, de 2015)
Ou seja, o precedente do TRF4 colacionado pela ré se deve ler a contrario sensu. Lá no seguro desemprego há expressa autorização legal de compensação; aqui no AB, há vedação de compensação pelas instituições bancárias, e expressa remessa à cobrança extrajudicial e judicial de eventuais débitos do titular do AB. E a única autorização de compensação é para futuros pagamentos de seguro defeso concomitante ao AB; só nessa hipótese se poderá descontar 30% do AB de pescadores para ressarcimento do lhes foi pago de AB quando recebiam o seguro defeso.
9. Indo mais além, e a compensação pretendida pela União encontra vedação na regra geral do CC:
Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, exceto:
I - se provier de esbulho, furto ou roubo;
II - se uma se originar de comodato, depósito ou alimentos;
III - se uma for de coisa não suscetível de penhora.
E assim a regra do CPC:
Art. 833. São impenhoráveis:
[...]
IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º ;
Seria incoerência a beirar a antinomia não enquadrar o AB na norma protetiva do 833 do CPC que impõe a impenhorabilidade; e porque impenhorável o AB, inviabilizada a compensação proibida pela regra geral art. 373 do CC. Nem sequer para cobrança de créditos alimentares o STJ autorizou penhora de benefícios previdenciários, que dirá, como no caso entelado, em que se tem a União como credora e, do outro lado, alguém em situação de miserabilidade:
...
2. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.815.055/SP, fixou o entendimento de que a exceção à impenhorabilidade prevista no § 2º do art. 833 do CPC não abarca créditos relativos a honorários advocatícios, porquanto não estão abrangidos pelo conceito de "prestação alimentícia".
3. Do mencionado aresto constou a possibilidade de mitigação da impenhorabilidade de salários desde que preservada parcela suficiente para resguardar a dignidade e subsistência do devedor e de seu núcleo familiar.
4. No caso em tela, o valor do benefício previdenciário percebido pelo devedor é insuficiente para comportar a penhora sem substancial prejuízo à sua dignidade e subsistência ou e de sua família.
5. Não sendo a linha argumentativa apresentada capaz de evidenciar a inadequação dos fundamentos invocados pela decisão agravada, mantém-se o julgado, por não haver motivos para a sua alteração.
6. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp n. 1.938.376/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 23/9/2021.)
10. Por fim, o ora pleiteado na via coletiva já foi acolhido em pioneira decisão da juíza federal Ingrid Schoeder Sliwka em processo individual:
De acordo com o art. 5º da MP nº 1.039/2021, é vedada a percepção concomitante do Auxílio Emergencial 2021 e do Bolsa Família, mas resta assegurado o direito ao benefício mais vantajoso:
Art. 5º Nas situações em que for mais vantajoso, o Auxílio Emergencial 2021 substituirá, temporariamente e de ofício, o benefício do Programa Bolsa Família, de que trata a Lei nº 10.836, de 2004, ainda que haja um único beneficiário no grupo familiar.
Assim, há manifesta incorreção na compensação efetuada na via administrativa, pois suspenso o pagamento de duas parcelas de benefícios do Programa Auxílio Brasil, no valor total de R$ 400,00, quando a percepção de valores a maior seria no máximo de duas parcelas do Bolsa Família, de R$ 89,00 cada.
Ainda, os benefícios do Auxílio Emergencial, Bolsa Família e Auxílio Brasil não se confundem, pois cada um é regrado por legislação específica e exige preenchimento de requisitos distintos. Mesmo inacumuláveis, o valor correto deve ser pago, não podendo o atraso da Administração operar em desfavor do(a) cidadão(ã).
Por fim, todos os benefícios mencionados tem caráter alimentar, razão pela qual eventual pagamento a maior decorrente de erro da administração não poderia ser descontado em parcela única conforme efetuado, privando o benefíciário da íntegra do valor necessário à sua subsistência.
Nesse sentido, a tese fixada pelo STJ ao apreciar o Tema Repetitivo 979, relativa ao benefícios previdenciários mas cujas razões de decidir podem se aplicar à situação dos autos:
Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) de valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.
A pertinente remissão ao tema 979 do STJ merece um reforço, assemelhado àquele do seguro desemprego. O RGPS também expressamente prevê a possibilidade do desconto de verbas indevidas:
Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios: [...] II - pagamento de benefício além do devido;2
Aqui, reitero, não há previsão legal de compensação em detrimento do AB. Ou seja, a regra geral do CC é a proibitiva da compensação pretendida pela União; somente por regras excepcionais autorizadoras da compensação (como no seguro desemprego, seguro defeso e pagamentos previdenciários) é que fica sem eficácia a norma geral do CC.
11. Por fim, não se trata aqui de fechar os olhos ao comando do art 22 da LINDB:
Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
Não tenho dúvidas da empreitada titânica que é a implementação de um programa de renda básica, que é a mens legis expressa em seu artigo inaugural:
O Programa Auxílio Brasil constitui uma etapa do processo gradual e progressivo de implementação da universalização da renda básica de cidadania a que se referem o caput e o § 1º do art. 1º da Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004.
Tampouco desconheço que a padronização é por vezes necessária e econômica, em face das dificuldades e custos que decorreriam do trato individualizado de situações multitudinárias. O que não se admite é que, sem autorização legal, e por uma análise custo-benefício que onera justamente o hipossuficiente da relação jurídica, se deixe de pagar um direito legalmente previsto e sequer sinalizando com uma data para pagá-lo. Confira-se o que alegou a União:
...a Senarc esclarece que a metodologia atual de suspensão aplicada pela Secretaria, conforme descrito e exemplificado nas seções anteriores, configura-se como a única apta, no curto/médio prazo, a atender às regras negociais, sistêmicas e contratuais pactuadas junto à Caixa Econômica Federal (Caixa), agente operador e pagador do programa, à Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev), agente operador do programa, e, concomitantemente, à legislação pátria, que estipula a suspensão do pagamento de parcelas do Bolsa Família / Auxílio Brasil na mesma quantidade das parcelas pagas a título de Auxílio Emergencial e/ou Seguro Defeso (§ 2º do art. 2º da Lei nº 13.982/2020; art. 5º da Medida Provisória nº 1.039/2021; § 8º do art. 2º da Lei nº 10.779/2003, combinado com o art. 23, III, da Portaria MC nº 746/2022).
Nesse sentido, qualquer movimento por parte desta Secretaria com vistas a atender à sugestão de descontos mensais contida na ACP em tela, dada a sua alta complexidade, requereria alterações negociais, sistêmicas e contratuais, o que exigiria o deslocamento excessivo de recursos humanos e tecnológicos da Senarc, Secretaria de Tecnologia da Informação do Ministério (STI/MC), Caixa e Dataprev, e impactaria substancialmente a rotina operacional desses órgãos. Consequentemente, ampliar-se-iam os riscos de falhas no processo de geração das folhas de pagamento do Auxílio Brasil e do Auxílio Gás (PAGB), ambos sob a responsabilidade conjunta da Senarc e da Caixa, além de processos afins, como os atestes da fatura dos serviços prestados pelo agente operador relacionados à execução do PAB e PAGB.
Reitera-se que tais ajustes metodológicos, além dos riscos descritos acima, seriam implantados somente no longo prazo, em face das limitações operacionais e contratuais que se impõem no contexto atual.
...
A Dataprev executa os serviços de verificação de elegibilidade, geração da folha de pagamento e geração de arquivos de manutenção dos Auxílios Emergenciais. O contrato com essa empresa pública não prevê a geração de parcelas com valor diferentes dos que foram fixados em lei. Todo o ambiente tecnológico da empresa está preparado para operar com os valores fixados pelas normas que criaram os respectivos auxílios. Uma alteração neste procedimento exigiria ajustar os instrumentos contratais vigentes, o que por si só demandaria tempo superior a alguns pares de meses.
Aí vem confessado que não se trata de uma inviabilidade técnica, mas de uma análise de conveniência e custos que repercurtiu no hipossuficiente, de forma essencialmente contra legem. Repiso o que constou da NT do Ministério da Cidadania (7 out2):
São portanto mais de cinquenta mil potenciais ações a tramitarem nos juizados judiciais para reversão do ato ilegal atacado nesta demanda. A análise de custo benefício promovida pelo ministério da cidadania tem aparentemente aquela visão de túnel de quem quer resolver os seus problemas, esquecendo as consequências não intencionais que repercutem em terceiros. Imagine-se os custos dessas potenciais cinquenta mil ações judiciais, ainda que no rito simplificado do juizado, em horas de juiz, servidor, advogado da união e defensor público, para uma suposta economia em implementar um ajuste no sistema eletrônico de pagamentos. Se é titânico o manejo de uma política de renda básica universal, eventuais equívocos em sua implementação podem acarretar consequências não intencionais também de dimensões olímpicas, o que serve de memento sobre a relevância de uma análise de impacto regulatório bem feita.
O que se vislumbra da NT do Ministério da Cidadania é um temor do gestor -compreensível e não infundado- de ter que responder no futuro perante os controladores (CGU e TCU) por conta dos pagamentos em duplicidade do BF e AE. Em situação que não é nova, o medo -compreensível, repiso- gera reação excessiva e ilegal, que repercute mais no hipossuficiente, e que além de tudo de gera repercussões potencialmente catastróficas no sistema de justiça. COnfiro trecho da NT em que relatadas as pressões dos controladores sobre o ministério da cidadania:
a) apurar as situações relacionadas ao pagamento dos benefícios do Programa Bolsa Família para as 23.507 famílias identificadas com recebimento do Auxílio Emergencial no mesmo mês de referência e, se for o caso, promover ações com vistas ao ressarcimento dos valores pagos indevidamente (recomendação para o achado “pagamento concomitante do Auxílio Emergencial e dos benefícios do Programa Bolsa Família relativos ao mesmo mês de referência”, item 2.4.2 do Relatório de Auditoria);"
12. Diante do exposto defiro a tutela provisória para ordenar a União a se abster de indeferir benefícios de Auxílio Brasil ao fundamento exclusivo de percepção cumulativa de Bolsa-Família e Auxílio Emergencial, por conta do pagamento judicial de AE. INtime-se com urgência para cumprimento.
Aguarde-se a contestação, oportunize-se réplica, ao MPF e para sentença.
Não vejo motivos para alterar o entendimento acima, que adoto como razões de decidir.
Dano moral coletivo
A parte autora argumenta que a conduta da União resultou em dano moral coletivo, agravado pela circunstância de que o benefício era indispensável à subsistência de famílias em situação de extrema vulnerabilidade social e ainda em contexto de pandemia.
Nada obstante, postula que a quantificação dos danos ocorra na fase de liquidação do julgado, "momento no qual comparecerão os consumidores lesados buscando, caso a caso, o ressarcimento de seus prejuízos, provando o fato gerador de seu direito".
Ao final, pede:
c) A condenação da ré ao pagamento de indenização por dano moral coletivo em razão de ato ilícito decorrente da retenção indevida de parcelas de Auxílio Brasil e/ou pagamento de parcelas em número inferior ao devido, nos termos da fundamentação;
E atribui à demanda o valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
O pedido tal qual formulado revela que o presente caso não trata de danos morais decorrentes de um direito difuso ou coletivo, mas decorrentes de um direito individual homogêneo, como já salientado na decisão do evento 12, que repiso no que importa:
3. De outra banda, nada mais homogêneo que o direito tutelado nos autos. O que une os substituídos é uma e só uma situação jurídica, a de estarem com o AB bloqueado cautelar e administrativamente por compensação que não se sabe quando será implementada, porque receberam o AE judicialmente e a destempo, enquanto percebiam o BF. Quaisquer outras hipóteses de bloqueio de pagamento (eventual fraude, por exemplo), estão fora do escopo da demanda. A própria NT do Ministério da Cidadania de ev. 7 ou2 confirma essa homogeneidade ao identificar o quantitativo extraordinário de pessoas nessa mesma e única situação jurídica base discutida nos autos:
Não se deve confundir, nesse contexto, o dano moral coletivo com o dano moral individual que afete um grande número de pessoas. A reparação do dano moral coletivo não visa reconstituir um bem material passível de quantificação, como pretende a parte autora, mas sim oferecer compensação diante da lesão a bens de natureza imaterial, sem equivalência econômica. Isto é, “o dano moral coletivo é autônomo, revelando-se independentemente de ter havido afetação a patrimônio ou higidez psicofísica individual” (REsp 1838184/RS, QUARTA TURMA, julgado em 05/10/2021, DJe 26/11/2021).
Nesse aspecto, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que os direitos individuais homogêneos são "apenas acidentalmente coletivos" e deles não se origina o dano moral coletivo. Confira-se:
RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. PROCESSO COLETIVO. OMISSÕES. AUSÊNCIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. DANOS MORAIS INDIVIDUAIS. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. DANOS MATERIAIS INDIVIDUAIS. SÚMULA 7/STJ. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. SÚMULA 7/STJ. DANO MORAL COLETIVO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. DEMANDA QUE ENVOLVE A TUTELA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.
1- Ação Coletiva Indenizatória e Antitrust.
2- O propósito recursal consiste em dizer se: a) o acórdão recorrido seria nulo por apresentar omissões e ausência de fundamentação; b) estariam caracterizados danos materiais e morais individuais; c) estaria caracterizada litigância de má-fé por parte da recorrida; e d) caracteriza dano moral coletivo a inserção, nos aparelhos celulares denominados de "Iphone 6", de "bloqueio tecnológico" no sistema operacional que inutiliza por completo o produto, inclusive com a perda de todos os dados nele contidos, na hipótese em que os consumidores realizaram reparos fora da rede credenciada pela fabricante.
3- Na hipótese em exame é de ser afastada a existência de omissões no acórdão recorrido, pois a matéria impugnada foi enfrentada de forma objetiva e fundamentada no julgamento do recurso, naquilo que o Tribunal a quo entendeu pertinente à solução da controvérsia.
4- Não ocorreu, na hipótese, ofensa ao art. 489 do CPC, notadamente porque o acórdão adotou fundamentação suficiente para o deslinde da demanda.
5- No que diz respeito à tese relativa à caracterização de danos morais individuais, tem-se, no ponto, inviável o debate, porquanto não se vislumbra o efetivo prequestionamento.
6- Derruir a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, no sentido de que a parte recorrente careceria de interesse de agir quanto ao pleito relativo aos danos materiais individuais, demandaria o revolvimento do arcabouço fático-probatório, o que é vedado pelo enunciado da Súmula 7 do STJ.
7- A modificação da conclusão a que chegou o Tribunal estadual no que diz respeito à não caracterização da litigância de má-fé demandaria o revolvimento do suporte fático-probatório dos autos, o que encontra óbice na Súmula 7 do STJ.
8- O dano moral coletivo, por decorrer de injusta e intolerável lesão à esfera extrapatrimonial de toda comunidade, violando seu patrimônio imaterial e valorativo, isto é, ofendendo valores e interesses coletivos fundamentais, não se origina de violação de interesses ou direitos individuais homogêneos - que são apenas acidentalmente coletivos -, encontrando-se, em virtude de sua própria natureza jurídica, intimamente relacionado aos direitos difusos e coletivos.
9- Na hipótese dos autos, do exame da causa de pedir e do arcabouço fático-probatório delineado pelas instâncias ordinárias, não é possível afirmar que houve ofensa a direitos difusos ou coletivos, sendo certo que a demanda em testilha visa a tutela de direitos individuais homogêneos, motivo pelo qual não há que se falar em dano moral coletivo na espécie.
10- O não reconhecimento da caracterização do dano moral coletivo não retira a gravidade do evento ora examinado, tampouco isenta a parte recorrida de eventual responsabilidade por ofensa a direitos individuais homogêneos dos consumidores.
11- Recurso especial conhecido em parte e, nesta extensão, não provido.
(REsp n. 1.968.281/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/3/2022, DJe de 21/3/2022.)
Do voto da relatora, destaco:
VII. DO DANO MORAL COLETIVO
24. O ponto central da presente controvérsia consiste em verificar se caracteriza dano moral coletivo a inserção, nos aparelhos celulares denominados “Iphone 6”, de bloqueio tecnológico no sistema operacional que inutiliza por completo o produto, com a perda de todos os dados nele contidos, na hipótese em que os consumidores realizaram reparos fora da rede credenciada pela fabricante.
25. De início, importa consignar que, a partir da Constituição Federal de 1988, passaram a ser reconhecidos feixes de direitos e interesses cuja proteção ultrapassa a esfera meramente individual, sendo, nesse contexto, identificados bens de titularidade coletiva, cuja preservação importa, de forma ampla, a toda a coletividade.
26. Trata-se dos direitos fundamentais de terceira dimensão, os quais “peculiarizam-se pela titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos” (MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014).
27. Adequando-se a essa nova realidade, o sistema da responsabilidade civil evoluiu, passando a reconhecer lesões a direitos e interesses pertencentes à sociedade como um todo.
28. Daí falar-se em dano moral coletivo, entendido como a “lesão intolerável a direitos transindividuais titularizados por uma determinada coletividade, desvinculando-se, pois, a sua configuração da obrigatória presença e constatação de qualquer elemento referido a efeitos negativos, próprios da esfera da subjetividade, que venham a ser eventualmente apreendidos no plano coletivo (sentimento de desapreço; diminuição da estima; sensação de desvalor, de repulsa, de inferioridade, de menosprezo, etc.)" (MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 136).
29. Nas palavras de Sergio Cavalieri Filho, o dano moral coletivo é o “sentimento de desapreço que afeta negativamente toda a coletividade pela perda de valores essenciais; sentimento coletivo de comoção, de intranquilidade ou insegurança pela lesão a bens de titularidade coletiva” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 13. ed. rev. e atual. p. 147).
30. Ademais, é assente na jurisprudência desta Corte Superior que o dano moral coletivo é aferível in re ipsa, de modo que sua configuração decorre do simples fato da violação, ou seja, da mera constatação da prática de conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral”. (REsp 1610821/RJ, QUARTA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 26/02/2021). No mesmo sentido: REsp 1.799.346/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/12/2019, DJe 13/12/2019).
31. No entanto, muito embora o dano moral coletivo se verifique in re ipsa, “sua configuração somente ocorrerá quando a conduta antijurídica afetar, intoleravelmente, os valores e interesses coletivos fundamentais, mediante conduta maculada de grave lesão, para que o instituto não seja tratado de forma trivial, notadamente em decorrência da sua repercussão social” (REsp 1823072/RJ, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/11/2019, DJe 08/11/2019). No mesmo sentido: REsp 1.473.846/SP, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2017, DJe 24/02/2017.
32. Assim, a ocorrência da lesão compensável exige a presença da injustiça e da intolerabilidade, de modo que “a dor psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual acaba cedendo lugar, no caso do dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade” (RAMOS, André de Carvalho. Ação civil pública e o dano moral coletivo. Revista de Direito do Consumidor. n. 25, São Paulo, Revista dos Tribunais, jan-mar, 1988, p. 82).
33. Desse modo, é irrelevante o número de pessoas concretamente atingidas pela lesão em certo período, sendo, ao revés, necessário que “o dano decorrente da conduta antijurídica, [...] apresente-se com real significância, ou seja, de maneira a afetar inescusável e intoleravelmente valores e interesses coletivos fundamentais” (MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 127-131).
34. Com efeito, no dano moral coletivo, “a função punitiva - sancionamento exemplar do ofensor - é aliada ao caráter preventivo - de inibição da reiteração da prática ilícita - e ao princípio da vedação do enriquecimento injustificado, a fim de que o eventual proveito patrimonial obtido com a prática do ato irregular seja revertido em favor da sociedade”. (REsp 1737412/SE, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2019, DJe 08/02/2019).
35. Ademais, para a verificação da ocorrência ou não de dano moral coletivo deve-se perquirir, ainda, qual o interesse ou direito transindividual que foi afetado e que se busca tutelar através da demanda proposta.
36. Como cediço, os interesses ou direitos transindividuais subdividem-se em difusos, coletivos e individuais homogêneos.
37. De acordo com o inciso I, do parágrafo único, do art. 81, do CDC, os interesses ou direitos difusos são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
38. Os interesses ou direitos coletivos, por sua vez, são os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
39. Já o interesse ou direito individual homogêneo é definido como um direito individual acidentalmente coletivo (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos e difusos. In Temas de Direito Processual Civil. 3a série. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 195-197).
40. Referida assertiva deve ser interpretada no sentido de que o interesse individual homogêneo é, na origem, um interesse individual, “mas que alcança toda uma coletividade, e com isso, passa a ostentar relevância social, tornando-se assim indisponível quando tutelado” (BERNARDINA DE PINHO, Humberto Dalla. A natureza jurídica do direito individual homogêneo e sua tutela pelo Ministério Público como forma de acesso à justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 240, sem destaque no original).
41. Nessa esteira de intelecção, importa consignar que, se o dano moral coletivo, como já afirmado, decorre de injusta e intolerável lesão à esfera extrapatrimonial de toda a comunidade, violando seu patrimônio imaterial e valorativo, isto é, ofendendo valores e interesses coletivos fundamentais, é imperioso concluir que esta espécie de dano não se origina de violação de interesses ou direitos individuais homogêneos – que são apenas acidentalmente coletivos –, encontrando-se, em virtude de sua própria natureza jurídica, intimamente relacionado aos direitos difusos e coletivos.
42. Ressalte-se, nesse diapasão, que o entendimento ora perfilhado foi recentemente referendado em julgado da Quarta Turma, fixando-se o entendimento de que “o dano moral coletivo é essencialmente transindividual, de natureza coletiva típica, tendo como destinação os interesses difusos e coletivos, não se compatibilizando com a tutela de direitos individuais homogêneos” (REsp 1610821/RJ, QUARTA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 26/02/2021).
43. A referida tese foi, posteriormente, reafirmada no julgamento do Resp n. 1838184/RS, julgado em 5/10/2021, por se entender que o dano moral coletivo, por sua própria natureza jurídica, não se amoldaria à tutela dos direitos individuais homogêneos.
44. Transcreve-se, por oportuno, elucidativo excerto do mencionado precedente:
Destarte, neste julgado, em outras palavras, a Turma julgadora assentou que os danos morais coletivos têm como destinação os interesses difusos e coletivos.
Com efeito, naquela ocasião, após apresentação sistemática dos interesses e direitos dos consumidores, que, nos termos do art. 81, do CDC e seus incisos, categoriza-os em interesses ou direitos difusos, interesses ou direitos coletivos e interesses ou direitos individuais homogêneos, concluiu-se que o dano moral coletivo é essencialmente transindividual, de natureza coletiva típica. [...]
A partir desse raciocínio, no que diz respeito à condenação arbitrada pela ocorrência do dano moral coletivo, sabe-se que sua natureza é eminentemente sancionatória, com parcela pecuniária arbitrada em prol de um fundo criado pelo art. 13 da LACP (fluid recovery). No caso do dano moral individual homogêneo, os valores destinam-se às vítimas, arbitrando-se condenação genérica, que será posteriormente liquidada, conforme previsto nos arts. 97 a 100 do CDC.
Como adverte Bessa, "o denominado dano moral coletivo não se confunde com a indenização decorrente de tutela de direitos individuais homogêneos. Constitui-se em hipótese de condenação judicial em valor pecuniário com função punitiva em face de ofensa - grave - a direitos difusos e coletivos" (BESSA, Leonardo Roscoe. Op.cit., p. 78).
(REsp 1838184/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/10/2021, DJe 26/11/2021) [g.n.]
45. Na oportunidade, estava-se diante de ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul em que se pleiteava a condenação do fornecedor a reparar o dano moral coletivo perpetrado em virtude da colocação, no mercado de consumo, de produto alimentício contaminado por bactéria capaz de causar intoxicação alimentar.
46. A eg. Quarta Turma afastou a caracterização do dano moral coletivo, ao fundamento de que, na hipótese em julgamento, não se buscava a tutela de direitos difusos ou coletivos, não obstante fosse nítida a existência de afronta a direitos individuais homogêneos.
47. Desse modo, em virtude de sua natureza jurídica própria e com o objetivo de evitar a banalização da figura, é forçoso concluir que o dano moral coletivo, por ser essencialmente transindividual, tem como destinação os interesses ou direitos difusos e coletivos, não restando caracterizado em demandas em que se discute eventual ofensa a direitos individuais homogêneos.
Assim, considerando que a pretensão nestes autos visa a tutela de direitos individuais homogêneos, não há se falar em dano moral coletivo na espécie.
3. Dispositivo
Ante o exposto, ratifico a tutela de urgência deferida e julgo parcialmente procedente o pedido, forte no art. 487, I, do CPC, para determinar que a União se abstenha de indeferir benefícios de Auxílio Brasil ao fundamento exclusivo de percepção cumulativa de Bolsa-Família e Auxílio Emergencial, por conta do pagamento judicial este último.
Sem custas (art. 4º, I, da Lei nº 9.289/96).
Sem condenação em honorários, por força do disposto no art. 18 da LACP (ARE 1429459 ED-AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 24-07-2023 PUBLIC 25-07-2023).
Sentença publicada e registrada eletronicamente.
Havendo recurso de qualquer das partes, intime-se a outra parte para contrarrazões, nos termos do art. 1.010, § 1º, do CPC. Após, remetam-se os autos ao TRF-4ª Região.
Ao apreciar o agravo de instrumento n.º 5048008-02.2022.4.04.0000, interposto em face da decisão que deferiu a antecipação de tutela para ordenar a União a se abster de indeferir benefícios de Auxílio Brasil ao fundamento exclusivo de percepção cumulativa de Bolsa-Família e Auxílio Emergencial, por conta do pagamento judicial de AE (evento 12 dos autos originários), a 4ª Turma desta Corte decidiu pela revogação da liminar:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUXÍLIO EMERGENCIAL. BOLSA FAMÍLIA. CUMULAÇÃO. LEI 13.982/2020. O Auxílio Emergencial foi um benefício financeiro criado para garantir renda mínima aos brasileiros em situação vulnerável durante a pandemia do Covid-19 (coronavírus). O Bolsa Família é um programa de transferência de renda do Brasil que visa garantir renda básica para as famílias em situação de pobreza. O programa busca integrar políticas públicas, fortalecendo o acesso das famílias a direitos básicos como saúde, educação e assistência social. O art. 2º da Lei n. 13.982/2020 estabelece, em seus parágrafos 2º e 3º, nítidos paralelos entre esse benefício e aquele instituído pela Lei nº 10.836/2004 (Programa do Bolsa Família), inclusive prevendo a possibilidade de substituição temporária desse último pelo primeiro, caso mais vantajoso. A lei estabelece que o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família não são cumuláveis. (TRF4, AG 5048008-02.2022.4.04.0000, 4ª Turma, Juiz Federal MURILO BRIÃO DA SILVA, juntado aos autos em 17/08/2023)
Em que pese ponderáveis os fundamentos que alicerçaram a revogação da medida liminar, é de se manter a tutela de urgência deferida na sentença em juízo de cognição exauriente.
A situação fático-jurídica sub judice foi bem delineada pelo Ministério Público (evento 10 dos autos originários):
(...)
Analisando os argumentos postos, verifica-se que a situação objeto da presente ação civil pública engloba basicamente pessoas que tiveram o benefício de auxílio emergencial negado na via administrativa e obtido o reconhecimento judicial ao recebimento dos valores, os quais lhes foram pagos no decorrer do ano de 2022.
A Lei nº 13.982/2020, previu que o auxílio emergencial substituiria, temporariamente e de ofício, o benefício do Programa Bolsa Família. Entretanto, as pessoas que receberam o benefício por via judicial acabaram por receber os dois benefícios - um na época devida e outro em momento posterior.
A União assim realizou o bloqueio do benefício do Programa Auxílio Brasil que sucedeu o Programa Bolsa Família na mesma quantidade de parcelas deferidas do auxílio emergencial, considerando que foram recebidos extemporaneamente, ainda que os valores dos benefícios não sejam idênticos.
Basicamente, afirma que a adoção de sistemática diferente, exigiria ajustes metodológicos no sistema, que seriam implantados somente no longo prazo, em face das limitações operacionais e contratuais que se impõem no contexto atual.
(...)
Conquanto o benefício "bolsa família", sucedido pelo "auxílio Brasil", não seja cumulável com o "auxílio emergencial", a possibilidade de compensação administrativa de valores recebidos a tais títulos é matéria controvertida, sendo ponderáveis as assertivas de que:
(1) O reconhecimento pelo legislador do aspecto alimentar do AB, e a consequente proibição de compensação por instituições bancárias, por analogia se pode transpor para a medida ora pretendida pela União, ela que também executou essa mesma compensação proibida na lei em face de instituições financeiras. Mas a analogia sequer é necessária, porque há toda uma seção da lei do AB que regra o ressarcimento de quantias percebidas indevidamente pelo beneficiário;
(2) A única hipótese prevista de compensação/desconto no valor do AB é relativamente aos pagamentos futuros de AB concomitante ao pagamento do "seguro defeso" da L 10779/03, por conta de eventuas impropriedades do sistema de pagamento. Ou seja, caso o sistema da União não detecte tempestivamente os pagamentos que o INSS promove de "seguro defeso" aos pescadores, a concomitância desse duplo pagamento autoriza, nessa única e excepcional hipótese, a compensação pela União nos pagamentos de AB, e
(3) todos os benefícios mencionados tem caráter alimentar, razão pela qual eventual pagamento a maior decorrente de erro da administração não poderia ser descontado em parcela única conforme efetuado, privando o benefíciário da íntegra do valor necessário à sua subsistência;
Em se tratando de verba de caráter eminentemente alimentar, concedida a famílias de baixa renda, com a finalidade de garantir a subsistência de todo o núcleo familiar, não há dúvida de que o maior prejuízo é o que decorre da suspensão do auxílio para os beneficiários - que dependem dele para sobreviver dignamente -, se comparado àquele que a União suportará com o seu pagamento.
E, caso vitoriosa na demanda, a União poderá proceder à compensação das parcelas subsequentes.
Em face do disposto nas súmulas n.ºs 282 e 356 do STF e 98 do STJ, e a fim de viabilizar o acesso às instâncias superiores, explicito que a decisão não contraria nem nega vigência às disposições legais/constitucionais prequestionadas pelas partes.
Ante o exposto, voto por negar provimento ao agravo interno.
Documento eletrônico assinado por VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, Desembargadora Federal, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40004763948v3 e do código CRC cf8b2e94.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
Data e Hora: 7/11/2024, às 12:21:50
Conferência de autenticidade emitida em 12/12/2024 20:52:38.
Identificações de pessoas físicas foram ocultadas

AGRAVO INTERNO EM PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO À APELAÇÃO (TURMA) Nº 5018940-36.2024.4.04.0000/RS
PROCESSO ORIGINÁRIO: Nº 5048699-56.2022.4.04.7100/RS
RELATORA: Desembargadora Federal VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
EMENTA
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO À APELAÇÃO. AGRAVO INTERNO. BOLSA FAMÍLIA. AUXÍLIO BRASIL. AUXÍLIO EMERGENCIAL. (INA)CUMULATIVIDADE. VERBA DE CARÁTER ALIMENTAR. COMPENSAÇÃO ADMINISTRATIVA. CONTROVÉRSIA.
I. Conquanto o benefício "bolsa família", sucedido pelo "auxílio Brasil", não seja cumulável com o "auxílio emergencial", a possibilidade de compensação administrativa de valores recebidos a tais títulos é matéria controvertida.
II. Em se tratando de verba de caráter eminentemente alimentar, concedida a famílias de baixa renda, com a finalidade de garantir a subsistência de todo o núcleo familiar, não há dúvida de que o maior prejuízo é o que decorre da suspensão do auxílio para os beneficiários - que dependem dele para sobreviver dignamente -, se comparado àquele que a União suportará com o seu pagamento.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por unanimidade, negar provimento ao agravo interno, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 06 de novembro de 2024.
Documento eletrônico assinado por VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, Desembargadora Federal, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40004763949v4 e do código CRC 2a2100d6.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
Data e Hora: 7/11/2024, às 12:21:50
Conferência de autenticidade emitida em 12/12/2024 20:52:38.
Identificações de pessoas físicas foram ocultadas

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 29/10/2024 A 06/11/2024
PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO À APELAÇÃO (TURMA) Nº 5018940-36.2024.4.04.0000/RS
INCIDENTE: AGRAVO INTERNO
RELATORA: Desembargadora Federal VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
PRESIDENTE: Desembargador Federal LUÍS ALBERTO D AZEVEDO AURVALLE
PROCURADOR(A): ELTON VENTURI
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 29/10/2024, às 00:00, a 06/11/2024, às 16:00, na sequência 138, disponibilizada no DE de 16/10/2024.
Certifico que a 4ª Turma, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A 4ª TURMA DECIDIU, POR UNANIMIDADE, NEGAR PROVIMENTO AO AGRAVO INTERNO.
RELATORA DO ACÓRDÃO: Desembargadora Federal VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
Votante: Desembargadora Federal VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
Votante: Desembargador Federal MARCOS ROBERTO ARAUJO DOS SANTOS
Votante: Desembargador Federal LUÍS ALBERTO D AZEVEDO AURVALLE
GILBERTO FLORES DO NASCIMENTO
Secretário
Conferência de autenticidade emitida em 12/12/2024 20:52:38.
Identificações de pessoas físicas foram ocultadas