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DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÕES AFIRMATIVAS. AUTODECLARAÇÃO E ...

Data da publicação: 04/08/2021, 07:00:59

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÕES AFIRMATIVAS. AUTODECLARAÇÃO E HETEROIDENTIFICAÇÃO ÉTNICO-RACIAL. OBJETIVOS E DESTINATÁRIOS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS. POLÍTICAS PÚBLICAS E IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL NEGRA (PESSOAS PRETAS E PARDAS). MANDADO DE SEGURANÇA E CONTROLE JUDICIAL. 1. Preliminarmente, afigura-se-me cabível a impetração de mandado de segurança discutindo a legitimidade de ato administrativo heteroidentificatório praticado por Comissão de Aferição de Autodeclaração, não se sendo hipótese de inadequação da via eleita; uma vez aforada a demanda mandamental, será examinado se os registros fotográficos mostram-se, caso a caso, suficientes para o acolhimento do pedido, sob o crivo dos requisitos da liquidez e certeza. 2. Com efeito, tenho que, em tese, o ato administrativo que rejeita a inclusão da impetrante dentre os destinatários da política configura ato vinculado, o que, em princípio, abre espaço para intervenção judicial na hipótese de inobservância do ordenamento jurídico; nestes casos, trata-se da regulação jurídica que confere direito subjetivo a pessoas negras, observada a identidade étnico-racial a partir do critério fenotípico, a figurarem em lista específica dentre os classificados no certame. Nesta condição, em tese, tal ato administrativo se sujeita a controle judicial mesmo em sede de mandado de segurança, sendo exigida, para tanto, prova documental pré-constituída, cujo teor seja apto a demonstrar erro grosseiro ou qualquer outro elemento que macule o ato administrativo. 3. No âmbito do Direito Constitucional e do Direito da Antidiscriminação, ações afirmativas são medidas que, conscientes da situação de discriminação vivida por certos indivíduos e grupos, visam a combater tal injustiça, por meio da adoção de medidas concretas. 4. A tarefa da comissão é identificar, à luz dos fins e do horizonte da política pública, quem é destinatário das ações afirmativas como beneficiário, jamais proceder a classificações identitárias étnico-raciais ou atribuição delas para outros fins, para outras políticas ou para outras esferas. 5. A autodeclaração é ponto de partida legítimo para a definição identitária quanto ao pertencimento aos grupos destinatários das ações afirmativa. 6. A tarefa heteroidentificatória da comissão não implica derrogação da autodeclaração, mas atividade complementar e necessária, dissipando dúvidas e via de regra confirmatória da autodeclaração, visando à consecução dos objetivos das ações afirmativas. 7. No exercício de sua tarefa heteroidentificatória, a comissão deve corrigir eventual autoatribuição identitária dissonante dos fins da política pública, iniciativa que não se confunde com lugar para a confirmação de percepções subjetivas ou satisfação de sentimentos pessoais, cuja legitimidade não se discute nem menospreza, mas que não vinculam, nem podem dirigir, a política pública. 8. Na atividade de identificação étnico-racial, o que importa, tanto para a autodeclaração, quanto para a heteroidentificação, é a "raça social", uma vez que a discriminação e a desigualdade de oportunidades atuam de modo relacional, no contexto das relações sociais e intersubjetivamente. 9. A previsão de consideração exclusiva dos aspectos fenotípicos, presente na política pública, deve ser compreendida contextualmente, uma vez que a compreensão da raça social, da identidade racial e do racismo subjacentes às ações afirmativas é sociológica, política, cultural e histórica, e não em investigações biológicas. 10. A autodeclaração requer interpretação cuidadosa, livre de preconceitos ou desconfianças prévias de dolo ou simulação quando legitimamente questionada a identidade autoatribuída, dada a complexidade do fenômeno identitário, onde um mesmo indivíduo pode experimentar uma multiplicidade de identidades nos diversos ambientes em que vive e transita, num mesmo momento ou ao longo de sua trajetória de vida. 11. A comissão pode concluir por identidade étnico-racial diversa daquela inicialmente autodeclarada, sem que esteja presente má-fé, em virtude de conclusão por identidade étnico-racial social diversa daquela autodeclarada. 12. A imputação de declaração falsa na autoatribuição identitária, decorrente do compromisso institucional com a higidez da política pública, deve ser reservada para a hipótese em que efetivamente o candidato tenha agido conscientemente de má-fé, em situações onde não paire dúvida. 13. Nas ações afirmativas, não está em questão pretensa "verdade sobre a raça", muito menos atuação de "tribunal racial"; a função da comissão é, atenta às dinâmicas concretas de discriminação, identificar os destinatários da política pública. 14. A invocação de "mestiçagem" étnico-racial, antes de inviabilizar, reforça a importância da tarefa das comissões, pois este fenômeno, ao contrário de dissolver, perpetua discriminações ("a mistura racial nunca é representada exatamente como fusão; opera, seja positivamente (no branqueamento) ou negativamente (quando pensada como enegrecimento), algum tipo de hierarquia"). 15. No controle judicial da atividade das comissões há que observar a legitimidade das decisões administrativas, sendo insubsistentes juridicamente "conclusões administrativas insustentáveis", tais como aquelas afastadas de qualquer consenso científico ou refutadas inequivocamente pelo estado da arte do conhecimento especializado, aquelas que incorrem em erro grosseiro e aquelas que desconsideram elementos inequívocos cuja presença resultaria em inversão da decisão, como também, decorrentes de desvio de finalidade. 16. Agravo regimental parcialmente provido, para admitir a impetração; indeferida a liminar. (TRF4 5007912-13.2020.4.04.0000, CORTE ESPECIAL, Relator para Acórdão ROGER RAUPP RIOS, juntado aos autos em 27/07/2021)

Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

AGRAVO INTERNO EM Mandado de Segurança (Corte Especial) Nº 5007912-13.2020.4.04.0000/RS

RELATOR: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

AGRAVANTE: SABRICIA VIANA DE SOUZA

ADVOGADO: ADOLFO MAXWELL MOREIRA BEZERRA

AGRAVADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4 REGIAO

AGRAVADO: FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS

INTERESSADO: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RELATÓRIO

Trata-se de agravo interno (evento 12) interposto contra a Decisão do eminente Des. Federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior, na época integrante da Corte Especial deste TRF4, que, monocraticamente, indeferiu a ação mandamental, por falta do preenchimento dos requisitos legais (evento 4).

Considerando que o Des. Federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior não mais integra a Corte Especial, os autos foram redistribuídos a este Relator, consoante determinado no Despacho (evento 19).

A Agravante alega, em síntese, que "as provas juntadas são capazes de comprovar o direito da recorrente de ser reincluída na lista de candidatos cotistas, pois conforme os documentos juntados (fotografias, demais aprovações, certidão de nascimento e ata notarial), é possível comprovar que a recorrente é sim pessoa negra (no mínimo parda) beneficiária da política de cotas, restando assim configurada a ilegalidade de sua exclusão, a qual deve ser reparada por meio do prosseguimento do mandado de segurança." (evento 12).

A União apresentou contrarrazões (evento 17).

É o relatório.

Peço dia.



Documento eletrônico assinado por CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40001779785v5 e do código CRC ccbf821a.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ
Data e Hora: 27/7/2020, às 18:54:52


5007912-13.2020.4.04.0000
40001779785 .V5


Conferência de autenticidade emitida em 04/08/2021 04:00:58.

Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

AGRAVO INTERNO EM Mandado de Segurança (Corte Especial) Nº 5007912-13.2020.4.04.0000/RS

RELATOR: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

AGRAVANTE: SABRICIA VIANA DE SOUZA

ADVOGADO: ADOLFO MAXWELL MOREIRA BEZERRA

AGRAVADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4 REGIAO

AGRAVADO: FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS

INTERESSADO: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

VOTO

Trata-se de Agravo Interno em Mandado de Segurança impetrado por Sabricia Viana de Souza contra ato do Presidente do Tribunal Regional Federal da Quarta Região e do Presidente da Comissão de Concursos da Fundação Carlos Chagas, objetivando a imediata inclusão do nome da impetrante na lista dos candidatos habilitados no Concurso Público para Servidores da Justiça Federal da Quarta Região ao provimento das vagas reservadas às pessoas negras do cargo de analista judiciário – área judiciária, região Central do Paraná.

A inicial mandamental foi liminarmente indeferida e denegada a segurança pelo então Relator, Des. Federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior, por falta do preenchimento dos requisitos legais, consoante fundamentos que seguem (evento 4):

"Este mandado de segurança foi impetrado por Sabricia Viana de Souza contra ato do Presidente do Tribunal Regional Federal da Quarta Região e do Presidente da Comissão de Concursos da Fundação Carlos Chagas, objetivando a imediata inclusão do nome da impetrante na lista dos candidatos habilitados no Concurso Público para Servidores da Justiça Federal da Quarta Região ao provimento das vagas reservadas às pessoas negras do cargo de analista judiciário – área judiciária, região Central do Paraná.

A impetrante alega que: (a) fotografias da infância, adolescência e vida adulta da impetrante demonstram, indubitavelmente, traços fenótipos da raça negra, quais sejam: cor da pele, nariz e cabelo; (b) a ancestralidade é um fator que em muito contribui para que a impetrante se considere pertencente à raça negra, pois é filha de mãe negra, pai pardo e possui irmãos negros; (c) documentos juntados comprovam que é apelidada em suas relações com o vocativo "nega" ou "negona"; (d) a comissão era formada por pessoas negras, o que pode ter colaborado para a emissão de decisões viciadas; (e) a banca foi rigorosa, aprovando apenas candidatos pretos, o que vai de encontro à política de cotas; (f) no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a validade da Lei 12.990/2014 (Lei de Cotas) e consignou a necessidade de cautela nos processos de verificação de heteroidetificação.

Nos eventos 2 e 3, a impetrante junta documentos.

É o relatório. Decido.

A Constituição garante a utilização do mandado de segurança para "proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (CF/88, art. 5º, LXIX).

O direito líquido e certo a ser amparado por meio de mandado de segurança é aquele que pode ser demonstrado de plano, mediante prova pré-constituída, sem a necessidade de dilação probatória.

A Lei 12.016/2009, que disciplina o mandado de segurança, estabelece em seu artigo 10 que "A inicial será desde logo indeferida, por decisão motivada, quando não for o caso de mandado de segurança ou lhe faltar algum dos requisitos legais ou quando decorrido o prazo legal para a impetração".

Quando não há prova pré-constituída do direito alegado, é caso, portanto, de indeferimento da inicial, pois o mandado de segurança será incabível.

Nesse sentido, cito os seguintes julgados deste Tribunal:

TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. APELAÇÃO. TRANSPORTE DE MERCADORIAS DESCAMINHADAS. PENA DE PERDIMENTO. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. Inexistindo prova pré-constituída do alegado direito líquido e certo, ou dependente esta prova de dilação probatória, é inviável a impetração de mandado de segurança. (TRF4, AC 5005360-49.2019.4.04.7101, SEGUNDA TURMA, Relator SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, juntado aos autos em 11/12/2019)

APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INDISPENSALIDADE DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. INDEFERIMENTO DA INICIAL. O artigo 10 da Lei 12.016/09 estabelece que a inicial da ação será desde logo indeferida, por decisão motivada, quando não for o caso de mandado de segurança ou lhe faltar algum dos requisitos legais ou quando decorrido o prazo legal para a impetração. O mandado de segurança, em razão de não admitir dilação probatória, exige a demonstração incontroversa dos fatos e provas, de forma pré-constituída, para a caracterização do direito líquido e certo. (TRF4, AC 5018113-55.2016.4.04.7000, TERCEIRA TURMA, Relator FERNANDO QUADROS DA SILVA, juntado aos autos em 06/12/2016)

PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. LEI 8.742/93. ESTRANGEIRO. CONCESSÃO. POSSIBILIDADE. REQUISITO DA RENDA. AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. CONCESSÃO ADMINISTRATIVA NO CURSO DO PROCESSO. PERDA PARCIAL DO OBJETO. PAGAMENTO DE PARCELAS ATRASADAS. DESCABIMENTO. 1. A condição de estrangeiro não impede a concessão de benefício assistencial ao idoso, eis que a Constituição Federal, em seu art. 5º, assegura ao estrangeiro residente no país o gozo dos direitos e garantias individuais em igualdade de condição com o nacional. 2. Se a matéria discutida no writ depende de dilação probatória, não podendo ser solucionada com base na prova pré-constituída contida nos autos, mostra-se inadequada a ação mandamental para o fim perseguido. 3. O rito célere do Mandado de Segurança não permite a dilação probatória, impondo-se o indeferimento da inicial. 4. A ação mandamental destina-se a tutelar direito líquido e certo, comprovável de plano, através de prova pré-constituída, não se admitindo seja deflagrado procedimento instrutório em seu bojo. (TRF4, APELREEX 0007401-35.2009.4.04.7001, SEXTA TURMA, Relator LORACI FLORES DE LIMA, D.E. 19/08/2010)

Na situação em exame, os elementos que acompanharam a inicial não são suficientes para provar as alegações. O pedido formulado pela impetrante pressupõe o reconhecimento de sua condição de negra para que, então, se determine a sua inclusão na lista de aprovados no concurso nas vagas reservadas a candidatos cotistas, o que evidentemente, demandaria dilação probatória.

Com efeito, é inviável substituir a avaliação da comissão avaliadora, que concluiu que a candidata não tem traços fenotípicos que permitiriam enquadrá-la no grupo destinatário da política de cotas, simplesmente examinando fotos, ou fotografias de outros supostos candidatos. Se o edital do concurso previa a realização de entrevista presencial, parece que a questão teria que ser dirimida por outros meios, ao menos com realização de audiência.

Logo, o mandado de segurança não é a via adequada para formular o pedido. Consequentemente, a inicial deve ser indeferida de plano.

Ante o exposto, indefiro a petição inicial do mandado de segurança, com base no artigo 10, caput e § 1º da Lei 12.016/2009, e denego a segurança, com fundamento no artigo 6º, § 5º, da Lei 12.016/2009, c/c art. 485, I e VI, do CPC-2015.

Sem condenação em honorários (Lei 12.016/2009, art. 25). Custas pela parte impetrante. A exigibilidade dessa verba fica suspensa em função da gratuidade judiciária, que ora é deferida.

Intimem-se."

Não vejo motivos para alterar a decisão acima transcrita, razão pela qual a mantenho por seus próprios fundamentos.

Com efeito, não se presta a via escolhida como meio a produção de prova, além do que deve ser trazido de plano na exordial, não sendo suficiente o conjunto fático-probatória à conclusão pela existência de direito líquido e certo a amparar o pleito da impetrante, não sendo possível a dilação probatória em mandado de segurança.

Acerca dos documentos juntados no presente mandado de segurança consistentes em fotografias da impetrante e em resultados de outras avaliações de heteroidentificação que a consideraram pessoa negra, consigno a manifestação da ilustre Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, em decisão proferida no RMS 061579, cujo excerto, peço vênia para transcrever:

"(...) Por fim, mister se faz registrar que também não são absolutas as provas realizadas por meio de fotografias e a condição do irmão da impetrante ao ser aprovado em outro concurso público, pois, mais uma vez, as percepções fenotípicas levadas em consideração pela Banca examinadora não estão atreladas aos resultados de outros certames."(STJ, RMS 061579, Ministra ASSUSETE MAGALHÃES Relatora; Data da Publicação; 02/10/2019)

Ademais, em caso análogo ao dos autos, no julgamento do MANDADO DE SEGURANÇA (CORTE ESPECIAL) Nº 5052589-65.2019.4.04.0000/RS (Sessão Ordinária do dia 20/02/2020, disponibilizada no DE de 03/02/2020), acompanhei a divergência inaugurada pelo eminente Desembargador Federal JOÃO PEDRO GEBRAN NETO (evento 25 daqueles autos), assim fundamentada:

" Divergência em 19/02/2020 17:59:46 - GAB. 82 (Des. Federal JOÃO PEDRO GEBRAN NETO) - Desembargador Federal JOÃO PEDRO GEBRAN NETO.

Peço vênia ao exmo. Relator para divergir do encaminhamento proposto, mormente por entender não ser possível a concessão de liminar ao caso.

Pois bem.

É o relatório. Passo a decidir.

1. Segundo a redação do art. 1º da Lei nº 12.016/2009, é cabível mandado de segurança para a proteção de direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, sempre que, ilegalmente, ou com abuso de poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la, podendo o juiz conceder a liminar se atendidos os requisitos previstos no art. 7º, III, do citado diploma legal.

O direito líquido e certo a que se refere a lei é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no momento da impetração, devendo estar expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições para sua aplicação, de modo que a certeza e liquidez do direito devem ser comprovadas de plano.

A concessão de liminar em mandado de segurança deve ser reservada àqueles casos em que se acumulem os dois requisitos previstos no art. 7º, III da Lei nº 12.016/2009, ou seja, além da relevância dos fundamentos expostos pela parte impetrante, é necessário que exista a demonstração inequívoca de risco de ineficácia da medida postulada caso venha a ser concedida apenas ao final do julgamento do processo:

Art. 7º Ao despachar a inicial, o juiz ordenará:

(...)

III - que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica.

Nada obstante a possibilidade de intervenção cautelar do juízo recursal, não é suficiente, portanto, que o direito invocado seja plausível, mas, também, que o indeferimento da liminar resulte no esvaziamento da impetração. Os requisitos são, pois, cumulativos, de maneira que a ausência de um deles desautoriza a suspensão do ato impugnado.

2. De plano, esclareça-se que não se está aqui a discutir o cumprimento ou não pelo Tribunal das políticas fixadas pela Lei nº 12.990/2014, previstas no edital de acordo com a legislação e com precedentes do Supremo Tribunal Federal.

Sob essa ótica, não são os atos administrativos sindicáveis, menos ainda em sede mandamental. Isso porque é inadequada a substituição do critério adotado pela Administração por aquele que o magistrado entender mais conveniente.

Contudo, limito-me, por ora, à necessidade ou não intervenção cautelar.

Discute-se, aqui, o critério adotado pela comissão para identificação de candidatos negros e pardos. Em face de tal premissa passo ao exame do pedido liminar e entendo não ser o caso de deferimento, porquanto até mesmo questionável a ação judicial que visa a adentrar no mérito administrativo, quando inexistente flagrante ilegalidade, abuso ou desvio de poder.

Conforme apontado na inicial, a impetrante prestou concurso para o cargo de técnico judiciário – área administrativa, da microrregião Nordeste de Santa Catatina, tendo optado por concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros ou pardos (conforme item 6 do edital). Restou classificado na 2ª colocação.

Posteriormente, submeteu-se à avaliação para identificação da condição exigida no edital.

A avaliação seguiu as regras estampadas no Edital nº 001/2019, lançadas em seu item "6. DAS INSCRIÇÕES PARA CANDIDATOS NEGROS" e nenhuma violação ao edital se extrai da decisão da Comissão Avaliadora, cabendo ressaltar, a insuficiência da autodeclaração para a finalidade pretendida.

Ademais, o recurso administrativo está devidamente fundamentado e, por esta estreita ótica, sequer seria o caso de determinar nova avaliação ou nova manifestação da Comissão de Recursos. Segundo a avaliação:

Prezado(a) Senhor(a)

Reportando-nos ao Recurso Administrativo interposto por Vossa Senhoria, transcrevemos resposta da banca examinadora:

“Preliminarmente, a Comissão de Heteroidentificação, constituída pela Fundação Carlos Chagas, considera que o sistema de pontuação diferenciada para pretos e pardos é uma ação afirmativa que esta vinculada de forma intrínseca a promoção da igualdade racial, ao considerar como destinatários da referida politica de ação afirmativa aos candidatos negros, entendendo-se como tal, pessoas pretas e pardas.

Cabe esclarecer, ainda, que o procedimento de heteroidentificação cuida-se de identificar o sujeito de direito da política de ação afirmativa, identificando os reais destinatários, a identidade dos candidatos permanecem, a autodeclaração não é retirada do candidato. Há um equívoco, no senso comum, entre os critérios utilizados pelo IBGE, que tem objetivo específico realizar uma pesquisa demográfica, com um recorte racial, tendo como referência a autodeclaração de cada cidadão, pautados em quesitos utilizados pelo recenseador ao perguntar ao cidadão como ele se autodeclara, constituição do sentimento de presença do indíviduo, que são absolutamente distintos dos critérios fenotípicos da Comissão de heteoidentificação, que não tem como objetivo classificar e sim de identificar o sujeito do qual se destina a referida ação afirmativa, considerando ainda que a autodeclaração não goza de presunção absoluta de veracidade.

A candidata ao alegar que: (...) Possuo a etnia negra sou filha de pai negro e mãe parda, logo me considero parda (...), percebe-se um equívoco conceitual, que a ascendência não foi considerada, vez que não há análise de consanguinidade, não se considera a ancestralidade e de sua família, conforme se depreende das normas estabelecidas em Edital do Concurso Público, especificamente no item 6.3.1, determinando que a Comissão avalie (...), os critérios de fenotipia do candidato.

É possível compreender que um candidato se declare como pertencente à população negra por pertencer a uma família que tenha negros em sua composição, mas quando da avaliação constata-se que ele, o candidato, não tem o fenótipo esperado para ser o destinatário da política de cotas, necessário portanto, não corroborar sua autodeclaração em benefício da própria ação afirmativa.

Cumpre-nos informar que habitualmente confunde-se a tonalidade de cútis, como fator preponderante para a associação da pessoa com população negra, não é a existência de um único traço da população negra que vincula o candidato a politica de ação afirmativa para as cotas raciais em Concursos Públicos.

Posto isto, considerando a reanálise das imagens da etapa da Comissão de Heteroidentificação, da Veracidade da Autodeclaração, verificou-se que a candidata, não apresenta traços fenotípicos negroide, como boca, nariz, cabelo e traços faciais que no seu conjunto ou isoladamente a remetem ao grupo destinatários da politica de cotas.

RECURSO IMPROCEDENTE.”

Importa destacar, ainda, que, a comissão examinadora foi composta por três especialistas em ações afirmativas e, conforme o item 6.3.4. do edital, "será considerado negro o candidato que assim for reconhecido por pelo menos um dos membros da Comissão de Verificação". Sendo assim, a juntada de fotos não confronta as conclusões do órgão encarregado, que realizou entrevista presencial, porque não se revestem da qualidade de prova pré-constituída válida.

Há que se ponderar que eventual acolhimento da tese da impetrante passaria necessariamente pela realização de perícia - o que é descabido no mandado de segurança - e não pela simples escolha, pelo magistrado, da solução que entende mais adequada entre aquela fundamentadamente apresentada pela comissão de especialistas avaliadores e a apresentada pela impetrante.

Também nesse aspecto, mostra-se duvidosa a impetração.

Ante o exposto, por entender incabível o deferimento do pedido liminar, voto por dar provimento ao agravo interno da União."

Dessarte, considerando que a matéria discutida no writ depende de dilação probatória, não podendo ser solucionada com base na prova pré-constituída contida nos autos, mostra-se inadequada a ação mandamental para o fim perseguido.

Ante o exposto, voto por negar provimento ao agravo interno.



Documento eletrônico assinado por CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40001779786v8 e do código CRC 5e61f64a.Informações adicionais da assinatura:
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Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300, Gab. Des. Federal Roger Raupp Rios - 6º andar - Bairro: Praia de Belas - CEP: 90010-395 - Fone: (51)3213-3277 - Email: groger@trf4.jus.br

Mandado de Segurança (Corte Especial) Nº 5007912-13.2020.4.04.0000/RS

RELATOR: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

IMPETRANTE: SABRICIA VIANA DE SOUZA

IMPETRADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4 REGIAO

IMPETRADO: FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS

VOTO-VISTA

Pelo Desembargador Federal Roger Raupp Rios:

Trata-se de agravo regimental contra indeferimento da inicial de mandado de segurança, em que se controverte a qualificação da impetrante como destinatária de política afirmativa em concurso público. A decisão terminativa agravada vislumbrou impossibilidade de comprovação líquida e certa quanto ao direito vindicado, donde a inadequação do instrumento processual.

Preliminarmente, afigura-se-me cabível a impetração de mandado de segurança discutindo a legitimidade de ato administrativo heteroidentificatório praticado por Comissão de Aferição de Autodeclaração, não se sendo hipótese de inadequação da via eleita; uma vez aforada a demanda mandamental, será examinado se os registros fotográficos mostram-se, caso a caso, suficientes para o acolhimento do pedido, sob o crivo dos requisitos da liquidez e certeza.

Com efeito, tenho que, em tese, o ato administrativo que rejeita a inclusão da impetrante dentre os destinatários da política configura ato vinculado, o que, em princípio, abre espaço para intervenção judicial na hipótese de inobservância do ordenamento jurídico; nestes casos, trata-se da regulação jurídica que confere direito subjetivo a pessoas negras, observada a identidade étnico-racial a partir do critério fenotípico, a figurarem em lista específica dentre os classificados no certame. Nesta condição, em tese, tal ato administrativo se sujeita a controle judicial mesmo em sede de mandado de segurança, sendo exigida, para tanto, prova documental pré-constituída, cujo teor seja apto a demonstrar erro grosseiro ou qualquer outro elemento que macule o ato administrativo.

Admitida a impetração, deve o mandamus ser processado, com a oitiva da autoridade impetrada e do Ministério Público Federal, razão pela qual deixo de apreciar o mérito.

Caso prevalece tal posição, analiso desde logo o mérito em atenção ao pedido de liminar.

A questão colocada ao tribunal diz respeito à exclusão da parte impetrante dentre os beneficiários da política de ação afirmativa destinada a candidatos autodeclarados pessoas negras (pretas ou pardas). Para tanto responder, este voto estrutura-se em seções: (1) sobre A política pública e o lugar da identidade étnico-racial em sua configuração, (2) sobre o tratamento jurídico da identidade étnica-racial, (3) sobre a atividade das comissões de aferição de autodeclaração étnico-racial em geral e a revisão judicial, (4) sobre a atividade das comissões de aferição e identidades étnico-racial no contexto nacional, especificamente diante da mestiçagem, da raça social e do critério fenótipico e (5) controle judicial da aplicação da norma jurídica antidiscriminatória afirmativa pela Comissão em casos concretos.

Discute-se a legitimidade de ato administrativo que excluiu a parte autora do certame público, ao fundamento de que não se enquadra dentre os destinatários da política pública afirmativa. Não obstante a identidade étnico-racial afirmada na inscrição, a comissão de aferição da autodeclaração étnico-racial concluiu pelo afastamento da parte autora dentre o universo dos albergados pela ação afirmativa, por não considerar atendido o requisito fenotípico. Trata-se de questão de extrema relevância, não só no âmbito jurídico, como também social na realidade brasileira. Como fundamentação deste voto, tomo parcialmente e prossigo na argumentação desenvolvida alhures ("PRETOS E PARDOS NAS AÇÕES AFIRMATIVAS: DESAFIOS E RESPOSTAS DA AUTODECLARAÇÃO E DA HETEROIDENTIFICAÇÃO", In: Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos/ Gleidson Renato Martins Dias e Paulo Roberto Faber Tavares Junior, organizadores. – Canoas: IFRS campus Canoas, 2018, disponível em https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/39/Documentos/Heteroidentificacao_livro_ed1-2018.pdf., acesso em 09março2021).

Não bastasse a polêmica em torno da constitucionalidade de ações afirmativas baseadas na identidade étnico-racial, já equacionada pelo Supremo Tribunal Federal (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186 – DF), remanescem várias questões na implementação dessas políticas, em especial quanto à identificação dos seus destinatários. De fato, antes mesmo do desenho da política pública (englobando, por exemplo, a oportunidade de adoção das ações afirmativas, os percentuais de vagas reservadas e a ordenação de candidatos aprovados simultaneamente em listas classificatórias distintas), a primeira pergunta a ser enfrentada é a definição dos beneficiários de tais medidas positivas. Essa resposta, que depende da compreensão do fenômeno identitário, revela-se assaz desafiadora, sobretudo em uma nação onde, ao mesmo tempo que a mestiçagem é fenômeno marcante, a injustiça racial é tão pronunciada. Neste contexto, não surpreende que se registrem litígios contestando a rejeição administrativa da identidade étnico-racial declarada. Nesses julgados, a controvérsia ultrapassa muito a legalidade dos ritos e procedimentos administrativos para a aferição da respectiva autodeclaração: o que está em questão é a identificação étnico-racial em si mesma.

Daí a pergunta sobre a identificação dos beneficiários de ações afirmativas fundadas no critério étnico-racial. Diante da experiência das ações afirmativas nas universidades públicas federais e dos efervescentes debates contemporâneos havidos na jurisprudência, nos movimentos sociais e na sociedade em geral, há que se compreender a questão identitária no contexto mais amplo da política pública, os elementos e conceitos fundamentais para o tratamento jurídico das ações afirmativas para, então, aquilatar-se sobre o papel dos comitês de aferição de autodeclaração étnico-racial e sobre a extensão da revisão judicial nesses casos

(1) Ações afirmativas: equacionando políticas públicas e identidades étnico-raciais

A relação entre a implementação de ações afirmativas com base em critérios étnico-raciais e a identificação de seus beneficiários pode ser proposta, pelo menos, de dois modos. O primeiro caminho inicia-se pela definição das identidades étnico-raciais em si mesmas que, uma vez estabelecidas, possibilitam a aplicação das medidas positivas intentadas; dito de outro modo e resumidamente, primeiro definem-se as identidades e depois vai-se para a execução da política pública. O segundo itinerário inverte, por assim dizer, esse percurso: parte-se da compreensão da política pública para, na sua concretização e em seu interior, identificar quem são, para a finalidade da política pública, seus beneficiários.

Tendo em mente a execução das medidas, trata-se de duas equações cuja ordem dos termos altera de modo significativo e dramático os desafios para sua concretização.

Iniciemos, portanto, pela explicitação dos objetivos das ações afirmativas, relacionando-os com o debate identitário. Como ora se propõe, esse roteiro parece revelar-se promissor, ainda que não seja panaceia, nem “receita de bolo” para toda a rica e complexa realidade social incrustada pelos fenômenos identitários étnico-raciais.

Ações afirmativas: objetivos

Ações afirmativas são medidas que, conscientes da situação de discriminação vivida por certos indivíduos e grupos, visam a combater tal injustiça, por meio da adoção de medidas concretas e benéficas (RIOS, R. R. 2008. Direito da Antidiscriminação. Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, p.156); como deflui desse conceito, no desenho das respectivas políticas públicas, a identificação de seus destinatários é elemento crucial, sem o que compromete-se a legitimidade e a efetividade das medidas positivas.

No campo do direito da antidiscriminação, a indicação dos indivíduos e dos grupos destinatários das medidas afirmativas dá-se a partir dos critérios proibidos de discriminação. Para os fins e o objeto desta reflexão, destaca-se o critério da identidade étnico-racial, encarnado na rica complexidade das relações sociais brasileiras, tópico que reclama visitar as principais proposições sobre os fenômenos identitários, possibilitando assim relacioná-los com as políticas públicas afirmativas.

O fenômeno identitário

Considerando o objetivo desta reflexão, adota-se, dentre as várias abordagens possíveis do fenômeno identitário, a dicotomia entre duas concepções de identidade: o essencialismo e o construcionismo. (JARDIM, I. R. . s.d. “Identidades e Narrativas”. Disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/4360/4360_6.PDF, acesso em 18jul2018). Em linhas muito amplas e apertadas, pode-se dizer que, na perspectiva essencialista, às diversas identidades correspondem certos traços distintivos, essenciais à identificação do indivíduo e do grupo, distinguíveis de modo imutável ao longo do tempo, em suma, a presença de algo presente na “natureza da coisa”. Umbilicalmente conectado ao projeto iluminista e da modernidade política, o essencialismo identitário, de base biológica ou histórica, tende a reificar, cristalizar e naturalizar as relações sociais e as posições que indivíduos e grupos nelas ocupam. Já a perspectiva construcionista percebe as identidades como resultantes da atribuição de significado a certos atributos que são tomados como diferenças relevantes, engendradas de acordo com os processos históricos concretos, onde certas características (biológicas ou históricas) estruturarão uma relação constitutiva do binômio identidade/diferença. Nesse diapasão, à afirmação da diversidade, no quadro do essencialismo identitário, corresponde a ênfase na diferença, no painel do construcionismo identitário.

Na esfera das relações étnico-raciais, com a primazia das ciências sociais para a compreensão dos conceitos de raça e de racismo, sem referência necessária a um “realismo ontológico” calcado em “biologias vulgares” (GUIMARÃES, A. S. F. 1999. Racismo e Anti-Racismo no Brasil, SP: Ed. 34, p. 28), importa avançar a consideração das ações afirmativas sob a ótica da perspectiva construcionista quanto ao fenômeno identitário étnico-racial.

Ações afirmativas, raça e racismo: uma questão sociológica

Superado o essencialismo biológico e assentada a dinâmica relacional, profundamente desigual, entre as identidades raciais branca e negra no Brasil, evidencia-se não só a propriedade, como a premente necessidade, da consideração das identidades étnico-raciais no desenho e na implementação das políticas públicas. No caso das ações afirmativas conhecidas como “cotas raciais” nas universidades públicas, pode-se então progredir por meio da afirmação de que são destinatários das medidas positivas todos os indivíduos racializados pretos e pardos na sociedade brasileira.

"Racialismo”, conforme Guimarães, é conceito sociológico que independe de realismos ontológicos, designando uma ideologia ou teoria taxonômica em que o conceito de raça faz sentido. Ele descreve o fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, “... um sistema de marcas físicas (percebidas como indeléveis e hereditárias), ao qual se associa uma ‘essência’, que consiste em valores morais, intelectuais e culturais.” Nesse sistema, apesar da necessidade da ideia de ‘sangue’ como transmissor dessa ‘essência’, “...as regras de transmissão podem variar, amplamente, segundo os diferentes racialismos.” (Guimarães, 1999: 28).

Nessa altura, pode-se prosseguir conjugando as duas premissas até aqui assentadas. A primeira, quanto ao objetivo da política pública, que é combater os efeitos do racismo, compreendido como todo preconceito e discriminação que pressupõem ou se referem à ideia de raça (Guimarães, 1999: 34); a segunda, que esse enfrentamento do racismo opera mediante medidas concretas conscientes que tomam por base a identidade racial para a distribuição de benefícios determinados, identidade racial essa resultante de um processo de racialização de indivíduos e grupos sociologicamente identificados como pretos e pardos. Da junção dessas ideias parece correto postular que sempre que os executores da política pública depararem-se com indivíduos racializados como pretos e pardos estaremos diante de destinatários das ações afirmativas.

Pode-se objetar que essa conclusão não passa de um truísmo: dizer que os destinatários são indivíduos racializados pretos e pardos é somente repetir, sem nada acrescentar, o que desde o início da colocação do problema já se sabe. Sem esquecer do acréscimo da ideia de racialização, nem querer abusar da leitura bondosa que me permito solicitar, retomo a segunda equação indicada nos primeiros parágrafos, caminho reflexivo mais promissor. Assim, uma vez mais explicitando o desafio da identificação racial, agora enfatizo um elemento central, cujo desenvolvimento servirá de bússola para a segunda parte deste esforço: a racialização sobreleva o caráter contextual do processo de identificação étnico-racial, cujo influxo informará o tratamento jurídico da identificação étnico-racial nas ações afirmativas.

(2) Sobre o tratamento jurídico da identificação étnico-racial

A percepção dos processos sociais de formação identitária é decisiva para a reflexão sobre o desenho e os critérios adotados na concretização das ações afirmativas. Dentre esses processos, a compreensão sociológica da raça e das identidades étnico-raciais depende da consideração da racialização de indivíduos pretos e pardos, de observância fundamental sejam quais forem o método pela política pública e o desenho institucional adotado. Sob essa ótica é que as técnicas da autodeclaração e da heteroidentificação devem ser realizadas, bem como a tomada de decisões sobre a enumeração de critérios (como o fenotípico), a adoção de medidas de aferição de autodeclaração, presença e composição de comitês, e até mesmo regras procedimentais e de distribuição de competências entre autoridades administrativas.

Todos esses são elementos a reclamar um adequado tratamento jurídico, informados a partir da compreensão sociológica da raça, da identidade étnico-racial e do processo de racialização. Nesse contexto é que ganharão mais consistência respostas diante de preocupações com falsidade de autodeclaração e, mais importante ainda, a praticabilidade das políticas no cenário da mestiçagem.

Técnicas de identificação étnico-racial: heteroidentificação e autodeclaração

Diante da necessidade de identificar os destinatários de ações afirmativas, prevalecem duas técnicas: a autodeclaração e a heteroidentificação.

A heteroidentificação é o método de identificação que utiliza a avaliação de um terceiro para a identificação étnico-racial de um indivíduo. Ela pode se valer de diversos critérios, tais como elementos biológicos, como o fenótipo e a cor da pele; ancestralidade, ou até mesmo servir-se do construcionismo identitário. Os partidários dessa técnica argumentam com (1) maior objetividade em relação à classificação racial e (2) maior efetividade às políticas públicas destinadas às minorias raciais, tendo em vista a adequada alocação desses benefícios, evitando casos de fraude (BALLENTINE, C. 1983. ‘Who is a Negro--Revisisted: Determining Individual Racial Status for Purposes of Affirmative Action’ .U.Fla. L. Rev., v. 35, p. 686); os opositores dessa técnica advertem para o perigo de (1) reforçar os estereótipos estigmatizantes de certas categorias raciais e de (2) criar a necessidade de enquadramento dos indivíduos analisados em padrões estabelecidos por terceiros, bem como (3) tratar-se de um modo de imposição das identidades raciais e (4) de circunstâncias em que a identificação seja vulnerável a influências externas (RODRIGUEZ, C. 2008. ‘Against Individualized Consideration’. Indiana Law Journal, v. 83, p. 1409).

Por sua vez, a autodeclaração étnico-racial é o método de identificação racial que tem como pressuposto a ideia de que a identidade racial relaciona-se à subjetividade, cabendo somente ao indivíduo atribuir-se identidade. Em favor da autodeclaração, argumenta-se que esse método (1) dá espaço para o reconhecimento do caráter social das identidades étnico-raciais; (2) respeita coerentemente direitos como a dignidade, a liberdade e a privacidade dos indivíduos (RICH, C. G. 2013. ‘Elective Race: Recognizing Race Discrimination in the Era of Racial Self-Identification’. Geo. LJ, v. 102, p. 1501) e (3) possibilita agência pelo próprio indivíduo diante de sua história e contexto social. Contrariamente, defende-se que tal método (1) não é adequado ao contexto de mestiçagem brasileiro (FRY, Peter. 2005. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 238); (2) pode deixar de alocar adequadamente os benefícios das ações afirmativas, favorecendo indevidamente quem não pertence ao grupo discriminado e (3) desconsidera a percepção de terceiros quanto à identidade étnico-racial.

Autodeclaração e heteroidentificação no direito brasileiro: prevalência e harmonia

Do ponto de vista normativo, o ordenamento jurídico brasileiro privilegia a autodeclaração como critério de reconhecimento de pertença a determinado grupo, seja no âmbito da raça, seja nas discussões sobre etnia, conforme a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (ORGANIZAÇÃO Internacional do Trabalho. 2003. Convenio n. 169 sobre pueblos indígenas y tribales: un manual. OIT: Genebra), de 1989, tudo dentro de uma perspectiva não assimilacionista. A Convenção 169 garante a proteção destes povos, o respeito a sua cultura, às formas de vida, às tradições e costumes próprios, prevendo seu direito a continuarem existindo e determinar suas formas de desenvolvimento (OIT, 2003). Esta perspectiva tem consequências na determinação de quem são os grupos protegidos pela Convenção. Este diploma internacional conjuga um critério objetivo (art. 1º), ao mesmo tempo que reconhece a autodeclaração como critério fundamental de pertencimento aos grupos por ela protegidos. (OIT, 2003). Ou seja, a “persona se identifica a sí misma como perteneciente a este grupo o pueblo; o bien el grupo se considera a sí mismo como indígena o tribal de conformidad con las disposiciones del Convenio” (OIT, 2003, p. 8). Esta é uma inovação no direito internacional, sendo o primeiro instrumento internacional que reconhece o direito à autodeclaração (OIT, 2003).

A autodeclaração também é prevista no Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 2010), com o objetivo de “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”. O parágrafo único do art. 1º do Estatuto da Igualdade Racial, ao trazer a definição de quem é a população negra, adota a autodeclaração como método de identificação do pertencimento étnico-racial:

Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:

[...]

IV - população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;

Ainda, a autodeclaração foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, que analisa a constitucionalidade da reserva de vagas para negros na Universidade de Brasília (UNB). Apesar de o objeto desta ADPF não versar especificamente sobre a autodeclaração, o seu uso foi discutido, tendo o Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, se manifestado pela possibilidade da autodeclaração nos sistemas de seleção para o ingresso do ensino superior, combinada ou não com sistemas de heteroidentificação.

Este quadro normativo é muito importante. Ele confere à autodeclaração um lugar especial, sem todavia descartar a possibilidade de identificação objetiva. Pode-se dizer que, sistematicamente, ao menos três conclusões se colocam: (1) a autodeclaração é preferida pelo ordenamento jurídico, não só pela sua previsão destacada no instrumento internacional e na legislação interna, como também pela concordância prática com outros direitos fundamentais, como a liberdade, da privacidade e a dignidade humana; (2) a autodeclaração, como a heteroidentificação, tem a mesma finalidade: materializar mecanismos de proteção antidiscriminatória, atuando conjuntamente, e não competindo, em face da maior proteção jurídica possível à igualdade e à dignidade; (3) dada a prevalência da autodeclaração, a combinação de técnicas de heteroidentificação é admitida, sempre visando à correta aplicação e concretização das políticas afirmativas.

Identidade étnico-racial: multiplicidade e “eletividade”

A proteção antidiscriminatória de grupos minoritários (sejam eles raciais, étnicos, sexuais) envolve um dilema constitucional: de um lado, os mecanismos de proteção dependem da institucionalização da definição de quem são estes grupos ou pessoas por eles protegidos; de outro, a determinação clara de pertença a grupos minoritários é um desafio, especialmente porque se parte da premissa equivocada de que para definir quem faz parte de um grupo minoritário deve-se levar em conta certas características fixas e imutáveis a ele associadas. Contudo, as características de um grupo que merecem especial proteção e reconhecimento variam de acordo com a história e com a sociedade em questão, estando, portanto, em constante transformação.

Ainda, a inclusão de um grupo na proteção às minorias depende de como as suas demandas são vistas e compatibilizadas com a cultura majoritária. Desta forma, a escolha de quais grupos ou características merecem proteção é uma questão política, mais do que uma análise objetiva de certos critérios (PAP, András L. 2014-2015. ‘Is there a legal right to free choice of ethno-racial identity? Legal and political difficulties in defining minority communities and membership boundaries’. Columbia Human Rights Law Review, n. 153, p. 153-232). Salienta-se, ademais, que a atribuição da identidade racial para determinado grupo traz consigo um perigo, pois pode servir a propósitos políticos diversos. Ou seja, pode ser utilizada tanto na luta por direitos, como para subordinar grupos.

Pap (2014-2015) analisa este dilema constitucional, partindo da tradicional tríade “minorias étnicas, raciais e nacionais”, para demonstrar que os conceitos de raça, etnia e minorias nacionais são difíceis de serem definidos e muitas vezes se confundem. Ademais, o conceito de minoria é, em verdade, fluido e ambíguo, não havendo um critério fixo e universal para estabelecer quem deve ou não ser reconhecido como pertencente a um grupo minoritário. Nos casos de demandas étnico-raciais antidiscriminatórias, por exemplo, as percepções externas são usadas como base de classificação do grupo. Já os pleitos por tratamento diferenciado ou por certos privilégios são analisados com base em critérios legais objetivos, somados à identificação subjetiva do grupo.

A percepção tradicional de raça, que a relaciona com critérios objetivos e determináveis de modo preciso, é incompatível com a compreensão de que a raça é um construto social e político e que pode ser exercida e avaliada de diversas formas.

Neste sentido, como alternativa ao modelo tradicional, Rich trabalha com a perspectiva da “raça eletiva”, que reconhece a possibilidade de mudança na definição e na compreensão da raça, abrindo espaço para compatibilizar a proteção antidiscriminatória com a definição da identidade racial pelos próprios indivíduos. Assim, na abordagem tradicional da discriminação por motivo de raça esta ocorre a partir do status inconteste entre dois grupos raciais bem definidos. Já a perspectiva da raça eletiva, pode solucionar casos que envolvem indivíduos que ocupam as margens das categorias raciais, cujas demandas se relacionam com o controle dos desdobramentos das definições de raça e dos termos em que seus corpos recebem sentidos raciais. Segundo seus termos, há quatro diferentes formas de reconhecimento racial: a raça documental, constante em documentos e formulários administrativos; a raça social, atribuída pela sociedade de forma heterônoma; a raça privada, que corresponde à visão da pessoa sobre a sua própria identidade e a raça pública, que é a identidade racial que a pessoa está preparada para ser reconhecida pelos outros. Todas estas formas de reconhecimento racial coexistem, especialmente levando-se em conta a realidade complexa de sujeitos multirraciais, fenotipicamente ambíguos ou que estão no limiar entre raças, e podem ser invocadas conforme o contexto específico (RICH, 2013).

A performatividade é um conceito chave para compreensão da raça eletiva, pois o ato de autodeclaração contribui para a construção da identidade racial de uma pessoa. Este ato pode ter efeitos sociais diversos, dependendo de como a pessoa o utilizará. Muitas vezes um sujeito declara sua raça levando em conta como é percebido pelos outros, como acha que se espera que se identifique ou mesmo de forma a se adequar a maioria, evitando o estigma e a discriminação. Desta forma, uma mesma pessoa pode declarar diferentes raças, conforme o modo usado para a sua identificação, sem que estas inconsistências comprometam a aplicação da legislação antidiscriminatória, nem sejam relacionadas a fraudes raciais. (RICH, 2013-2014). Apesar do reconhecimento de que os sujeitos podem declarar sua raça ora de um jeito, ora de outro, o enfoque da raça eletiva não impede que o Estado utilize uma forma de reconhecimento racial diversa daquela declarada pelo sujeito para fins de acesso a políticas afirmativas, para proteção deste sujeito contra a discriminação ou mesmo para alimentar registros de dados para consumo interno (RICH, 2013-2014). Esta movimentação fluida dos sujeitos entre as diversas identidades raciais se relaciona com a ideia de performatividade (BUTLER, J. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), na medida em que estas identidades vão sendo colocadas ao longo da vida das pessoas de forma voluntária e involuntária, a fim de identificá-las com um ou outro grupo. Ou seja, as diversas raças não são dadas e estanques, são produto das próprias forças de poder que criam e classificam os sujeitos.

Diante desta complexidade inerente à raça, percebe-se a insuficiência de modelos e compreensões que trabalham com conceitos rígidos e fixos. Assim, há a necessidade, do ponto de vista institucional, de que as normas e as decisões judiciais se adequem para dar conta destas identidades inconstantes, reconhecendo-as e protegendo-as da discriminação. (RICH, 2013).

Os aportes aqui arrolados (1 - os objetivos da ações afirmativas; 2 - a compreensão sociológica da raça, do racismo e do racialismo nas formações identitárias; 3 - as técnicas de identificação e sua relação; 4 - a multiplicidade (“eletividade”) das identidades a depender dos contextos em que experimentadas) subsidiam a compreensão da implementação das ações afirmativas no Brasil.

(3) Autodeclaração étnico-racial: comissões de aferição e revisão judicial

A regulação jurídica, no que tange ao reconhecimento de beneficiários das ações afirmativas, combina técnicas de autodeclaração e de heteroidentificação. No regime vigente, por “população negra” entende-se o “conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga” (Estatuto da Igualdade Racial, art. 1, p. único, III), ao lado da adoção da autodeclaração nas ações afirmativas para o acesso às universidades (Lei n. 12.711, de 2002, art. 3) e para os concursos públicos (Lei n. 12.990, de 2014, art. 2); ao mesmo tempo, prevê-se comissão de heteroidentificação complementar à autodeclaração, com função deliberativa (Orientação Normativa n. 4, de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão).

A preocupação com a possibilidade de declaração falsa é explícita, penalizada com eliminação do concurso (ou anulação de admissão no serviço público, conforme o caso), em procedimento sujeito ao contraditório e à ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. Com relação à heteroidentificação complementar da autodeclaração, a comissão só pode avaliar “exclusivamente o critério fenotípico”, de forma presencial ou, excepcionalmente e por decisão motivada, telepresencial, mediante utilização de recursos de tecnologia de comunicação”, e por “membros distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade”, nos termos da citada orientação normativa (respectivamente, art. 8, p. 1; art. 9; art. 6, p. 4).

Esses elementos fazem mais que dispor sobre o regime jurídico da identificação étnico-racial brasileiro, centrado na autodeclaração, sujeita a verificação heterônoma (heteroidentificação), por comissão plural e diversa em termos de gênero, cor e naturalidade; eles informam as diretrizes para o desenho administrativo e a praticabilidade das políticas públicas positivas. É da confluência dos aportes expostos nas seções anteriores com esse referencial normativo que devem ser respondidas as perguntas sobre as deliberações identitárias étnico-raciais das respectivas comissões e a repressão a eventual declaração falsa.

Comissões de verificação e deliberação sobre a identidade étnico-racial

A instituição e o funcionamento das comissões de verificação de autodeclaração, previstas na regulamentação do art. 2 da Lei n. 12.990/2014 (que institui a reserva de vagas para candidatos negros nos concursos), alcança não só a administração pública federal, como também os demais poderes além do Executivo, como exemplifica a Resolução n. 203, de 2015, do Conselho Nacional de Justiça. Cabe à comissão confirmar a autodeclaração de identidade preta ou parda (O.N. n. 4, de 2018, art. 3), de acordo com métodos de verificação previstos e detalhados no edital do respectivo concurso público (O.N. n. 4, de 2018, art. 4). Acerca dos métodos de verificação de veracidade da autodeclaração, a regulamentação avançou, ao dispor que “serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação”, desconsiderando explicitamente “quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais” (art. 9, p. 1 e 2).

No que respeita à identificação étnico-racial, e em especial à concorrência da autodeclaração pelo candidato e à atuação posterior da comissão, pode-se constatar o encontro de dois pontos de vista: um subjetivo, decorrente da participação do candidato; outro objetivo, respeitante à atribuição da comissão.

Essa divisão de papéis, relevantes e necessários para a concretização dos objetivos das ações afirmativas e dos direitos fundamentais dos indivíduos participantes, atende às necessidades de higidez da política pública, voltada para o enfrentamento e superação da discriminação, mediante o uso correto dos recursos públicos direcionado aos legítimos destinatários dos benefícios disponíveis (nesse sentido, a O.N. n. 4, art. 1, p. único, V e VI). De fato a compreensão equivocada das ações afirmativas, por parte de uns, e até mesmo a eventual intenção de beneficiar-se indevidamente por parte de outros, devem ser evitadas e reprimidas, seja pela proibição e repressão de comportamentos de má-fé, seja antes de mais nada pelos objetivos de combate à discriminação e de promoção da igualdade de oportunidades.

Num esforço sistematizador, pode-se assinalar:

I. a autodeclaração é ponto de partida legítimo para a definição identitária quanto ao pertencimento aos grupos destinatários das ações afirmativas;

II. a tarefa heteroidentificatória da comissão não implica derrogação da autodeclaração, mas atividade complementar e necessária, dissipando dúvidas e via de regra confirmatória da autodeclaração, visando à consecução dos objetivos das ações afirmativas;

III. no exercício de sua tarefa heteroidentificatória, a comissão deve corrigir eventual autoatribuição identitária equivocada, à luz dos fins da política pública, iniciativa que não se confunde com lugar para a confirmação de percepções subjetivas ou satisfação de sentimentos pessoais, cuja legitimidade não se discute nem menospreza, mas que não vinculam, nem podem dirigir, a política pública;

IV. na atividade de identificação étnico-racial, o que importa, tanto para a autodeclaração, quanto para a heteroidentificação, é a raça social, uma vez que a discriminação e a desigualdade de oportunidades atuam de modo relacional, no contexto das relações sociais e intersubjetivamente;

V. a previsão de consideração exclusiva dos aspectos fenotípicos, presente na política pública, deve ser compreendida contextualmente, uma vez que a compreensão da raça social, da identidade racial e do racismo subjacentes às ações afirmativas é sociológica, política, cultural e histórica, e não em investigações biológicas;

VI. a autodeclaração requer interpretação cuidadosa, livre de preconceitos ou desconfianças prévias de dolo maldoso ou simulação quando legitimamente questionada a identidade autoatribuída, dada a complexidade do fenômeno identitário, onde um mesmo indivíduo pode experimentar uma multiplicidade de identidades nos diversos ambientes em que vive e transita, num mesmo momento ou ao longo de sua trajetória de vida;

VII. a comissão pode deliberar por identidade étnico-racial diversa daquela inicialmente autodeclarada, com a consequente exclusão do certame do candidato autodeclarante, sem que esteja presente má-fé, em virtude de conclusão por identidade étnico-racial social diversa daquela autodeclarada;

VIII. a imputação de declaração falsa na autoatribuição identitária, decorrente do compromisso institucional com a higidez da política pública, deve ser reservada somente para a hipótese em que efetivamente o candidato tenha agido conscientemente de má-fé, em situações onde não paire dúvida;

IX. as decisões da comissão, sempre que concluírem por atribuição identitária diversa daquela autodeclarada, requerem decisão fundamentada, sempre possibilitando a presença, a ampla defesa e o contraditório pelo candidato;

Proposta essa síntese como contribuição para o debate sobre a praticabilidade da identificação étnico-racial nas ações afirmativas, resta avançar acerca da tarefa heteroidentificatória embasada, nos termos da regulamentação, “exclusivamente no critério fenotípico”. Esse tópico merece especial destaque, dada a intensidade do debate público e do desafio das comissões nele presente, apontado por uns inclusive como um aparente nó górdio da política pública.

(4) Pardos e identidade étnico-racial no Brasil: mestiçagem, raça social e fenótipo

Ao cumprir sua tarefa institucional, as comissões de verificação de autodeclaração são chamadas a pronunciarem-se diante de impugnações à identidade racial autoatribuída de candidatos às ações afirmativas. Tirante as hipóteses em que indivíduos ostentam fenótipo indiscutivelmente branco, e aquelas outras em que não paira qualquer controvérsia sobre a negritude daqueles que se apresentam como pretos, o desafio se apresenta em face da identidade étnico-racial de indivíduos pardos, cuja negritude autodeclarada é controvertida ou ao menos posta em dúvida.

As premissas para essa reflexão, acima explicitadas, podem ser assim resumidas: (a) os objetivos das políticas públicas positivas são enfrentar a discriminação e incrementar a igualdade de oportunidades, considerada a realidade social vivida pela população negra (pretos e pardos); (b) para esses fins, a identidade étnico-racial que importa vincula-se à raça social, pois é nessa esfera que o estar no mundo implica a indivíduos e grupos o preconceito e a discriminação, o que corresponde plenamente aos objetivos das ações afirmativas; (c) os aspectos fenotípicos são decisivos para o trabalho da comissão, pelo efeito que tem para a racialização subordinante de indivíduos pretos e pardos e pelo papel que desempenham na constituição do racismo.

Feito o encadeamento de tais premissas, o próximo passo é tentar desenlear o, para alguns invencível, nó górdio: como pode a Comissão concluir por identidades étnico-raciais pardas, quando contestadas, num Brasil mestiço e miscigenado? A mestiçagem brasileira implicaria, em muitos casos, uma ambiguidade insuperável, tornando a tarefa ingrata e arbitrária de aferir a “veracidade” da autodeclaração.

Antes de avançar nesse destrinchar nessa fiação intrincada, um esclarecimento. Quando a regulamentação da política pública fala de “aferir”, “verificar” a “veracidade”, não se se trata de uma pretensa “verdade sobre a raça”, no sentido de um realismo ontológico, apelando para dados biológicos, essências irredutíveis, fixas e cristalizadas, ou porta-vozes indiscutíveis e “donos da verdade”. Como visto, o que importa para as ações afirmativas é a “raça social”, resultante histórico, social e cultural, dos processos de racialização onde atribuídas identidades, socialmente engendradas, a indivíduos e grupos. Nada a ver, portanto, com oficializar “a verdade sobre a raça” (Hofbauer, 2003: 95), mas sim com a tarefa de investigar os sentidos que, ao longo da história e no presente, quando concretizada a política, são socialmente atribuídos mediante a construção social da identidade racial, como visto acima. Verificar a veracidade, portanto, encerra dupla tarefa: desvendar a que identidade racial (documental, privada, pública, social) referiu-se o autodeclarante, além de aferir se a vivência declarada atende, de modo concreto, à centralidade que os objetivos da política pública dão à raça social.

Desembaraçado esse primeiro fio, o desemaranhar agora se detém nos “aspectos fenotípicos”, notadamente referidos na regulamentação como critério exclusivo para a consideração da comissão. Assim como na “verificação da veracidade”, é preciso cautela: a indicação do fenótipo como elemento fundamental não deve ser mal entendida, para o que mais uma vez chamo o já citado A. S. A. Guimarães. Reconhecer ao fenótipo papel decisivo decorre da constatação de que, no racismo e na atribuição de identidades étnico-raciais, organiza-se uma taxinomia de indivíduos e de grupos humanos a partir da ideia de raça, fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, “... um sistema de marcas físicas (percebidas como indeléveis e hereditárias), ao qual se associa uma ‘essência’, que consiste em valores morais, intelectuais e culturais”, associação esta que se valeu, ao longo da história, de vários marcadores, desde a cor, até outras características antropofísicas e psíquicas).

A invocação do fenótipo, aqui, responde precisamente ao reconhecimento de uma dinâmica social, e não de uma tipologia de grupos humanos por caracteres biológicos em si mesmos, tais como pigmentação abdominal, cor e tipo de cabelo, formato nasal e labial; até porque, mesmo nesses, não há como fugir de avaliações subjetivas e de critérios arbitrários (Santos, 1996).

Desenleado o emprego do fenótipo no processo de atribuição de identidade étnico-racial, passa-se a desfiar outro dos fios que alegadamente impediriam qualquer conclusão razoável e não-arbitrária por parte das comissões: a ambiguidade insuperável decorrente da mestiçagem, ao menos em face de uma zona cinzenta tão extensa, de um gradiante tão esticado, onde a indeterminação cromática e fenotípica não se deixa encaixar na pureza da dicotomia branco/preto. Pelo fato de o Brasil não ter institucionalizado um sistema classificatório racial rígido e inequívoco, tal qual ocorreu em outros cantos do mundo (o caso do Estados Unidos, pela regra da “gota de sangue” é o perfeito contraste), pelo fato de a miscigenação aqui ter campeado como em nenhum outro lugar, resultando na “festejada” mestiçagem (ao menos a partir da metade do século XX, na pena de clássicos como Gilberto Freyre), por tudo isso e muito mais, teríamos desembocado numa “democracia racial” praticamente livre de racismo, e, daí decorrente, numa sociedade onde a raça não importaria, mas sim a classe, ao lado de outras formações identitárias (tais como sexo, região, idade, orientação sexual, etc.) para a promoção da igualdade de oportunidades.

Não me deterei aqui nas alegações sobre a inexistência de racismo, ou sobre o mito da “democracia racial”. Não porque não seja muito necessário e importante disputar o senso comum que não quer ver a presença e os efeitos mortais do racismo entre nós, o que para muitos é um obstáculo paralisante e desresponsabilizador que concorre para a manutenção da injustiça racial, nem porque a Constituição e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já tenham superado este estágio. Parte-se aqui da indiscutível presença do racismo e da falácia do mito da democracia racial; interessa agora examinar a alegada impossibilidade de aferir a negritude como identidade étnico-racial quando declarada por indivíduos pardos, em especial por aqueles que, situados em posição intermediária no espectro de cor no Brasil, são posicionados (ou se posicionam) mais perto da branquitude.

Retome-se o enredo para desfazer-se o nó górdio. Do estabelecer (a) os objetivos das ações afirmativas, (b) a compreensão de identidade étnico-racial e de racismo e (c) a raça social como identidade fundamental para a concretização da política pública, decorre a necessidade de aferir se à autoatribuição identitária proposta pelo candidato corresponde a identificação do lugar social que caracteriza a negritude. Para os fins da política pública, indivíduos negros são pretos e pardos, cujo posicionar da identidade étnico-racial, independente do subjetivismo próprio de cada ser humano, situa o indivíduo numa “cidadania de segunda classe”, subordinada em virtude de uma hierarquia racial a que corresponde, por sua vez, uma sistema classificatório étnico-racial.

Nesse desenleio, o fato de coexistirem diversos sistemas classificatórios de identidades étnico-raciais no Brasil contemporâneo (o oficial, o múltiplo e o bipolar; ver MOUTINHO, L. 2004 Razão," cor" e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais" inter-raciais" no Brasil e na África do Sul. Unesp, 2004, p. 192) em nada prejudica a tarefa da comissão. Ao contrário, enriquece e possibilita, de forma mais concreta, a avaliação, sempre contextual, de como a racialização dos indivíduos e grupos produz a negritude como raça social, inclusive para aqueles que se autodeclaram pardos. Desse modo, pode-se acompanhar a dinâmica social e política que articula ‘cor’, ‘raça’, ‘gênero’ e ‘sexualidade’ como aspectos de fundamental importância para o acesso a bens, status, serviços e prestígio social, o que nos auxilia “...a compreender alguns dos sentidos e significados relativos a ‘raça’, ‘cor’ e ‘racismo’, gênero e sexismo - e suas complexas dimensões e mais maléficas atuações.” (MOUTINHO, L. 2004. ‘"Raça", Sexualidade e Saúde: Discutindo Fronteiras e Perspectivas’. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14(2):191-196, p. 193).

Para os fins desta investigação, o que interessa para a política pública e perpassa todos os sistemas de classificação, é a persistência da negritude como condição identitária subordinada, razão legítima da adoção das ações afirmativas. De fato, um olhar mais atento à realidade e ao estado atual do debate nas ciências sociais demonstra que tais alegações de impraticabilidade e de impossibilidade de verificação de identidade étnico-racial, para os fins das ações afirmativas, não se sustentam. Basicamente, em virtude da (a) possibilidade de verificação de processos subordinantes e hierárquicos de formação de identidade étnico-racial parda, conforme o contexto em que situado o indivíduo e (b) a permanência de hierarquias raciais nos arranjos sociais da mestiçagem, em vez da superação do racismo. Inicio pela segunda, mais ampla e pano de fundo onde a primeira toma contornos mais nítidos.

Com efeito, admitir a mestiçagem interracial como dado da realidade brasileira, ilustrada pelas famosas 135 categorias de autoatribuições cromáticas e fenotípicas pelo IBGE, não significa, nem daí decorre logicamente, a superação de hierarquias raciais, muito menos a inexistência de racismo. Na linha de pesquisadores como Jacques d’Adesky (D’ADESKY, Jacques. 2001. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas.), Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (GUIMARÃES, A. S. F. 1999. Racismo e Anti-Racismo no Brasil, SP: Ed. 34) e Luiz Felipe de Alencastro (ALENCASTRO, L. F. 1985. ‘Geopolítica da mestiçagem’, Novos Estudos, São Paulo: CEBRAP.), trata-se de “uma forma de organização e de exclusão baseada na suposta existência de raças superiores e inferiores, de raças valorizadas e de raças depreciadas” (D`Adesky, 2001:36); trata-se, portanto, de “uma realidade concreta [...] que permite [...] reunir mulatos, morenos, sararás, jambos numa categoria única – negro – [que] é, exatamente, a relação de oposição entre dominadores e dominados, que impõe um modelo estético inadequado para o conjunto da população, bem como o critério de hierarquização que subvaloriza mulatos, morenos, sararás e jambos à categoria branco. Pode-se igualmente dizer que o que reúne louros, ruivos, castanhos, etc., na categoria única branco é essa mesma relação de dominação que, associada ao critério de hierarquização, valoriza os louros, ruivos, etc., em relação aos mulatos, sararás, etc.” (p. 35).

Colaboram para superar quaisquer dúvidas acerca da natureza hierarquizante inerente à ideia de mestiçagem as advertências quanto à forma como a mistura racial é representada, a perversa dimensão “arqueológica” da mestiçagem e o aprisionamento estereotipado da negritude que caracteriza esse discurso. Conforme alerta Moutinh), “a “mistura racial nunca é representada exatamente como fusão; opera, seja positivamente (no branqueamento) ou negativamente (quando pensada como enegrecimento), algum tipo de hierarquia”; Machado (MACHADO, I. J. R. 2002. ‘Mestiçagem arqueológica’. Estud. afro-asiát., Rio de Janeiro , v. 24, n. 2, p. 385-408. em 19 jul. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-546X2002000200007), ao analisar evento preparatório para as comemorações dos 500 anos do Brasil, desvenda a perversidade no discurso da miscigenação, “[como se ela]... tivesse, num passado remoto, resolvido e criado um povo brasileiro que, embora misturado, quer ter uma cara branca, europeia (a velha e conhecida ideia de branqueamento). Joga-se para um passado remoto o conflito e deixa-se implícito que a história o resolveu. Embora algumas poucas palavras tenham lembrado a situação atual de populações negras e indígenas, todas as situações de conflito foram sufocadas no encontro, com a mágica da expressão ‘águas passadas não movem moinhos’”; Sueli Carneiro (CARNEIRO, S. 2011. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, p. 70), por sua vez, diante da vivência de negros de pele clara, denuncia que “uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade. [Brancos]... são individualidades, são múltiplos, complexos, e assim devem ser representados. Isso é demarcado também no nível fenotípico, em que se valoriza a diversidade da branquitude: morenos de cabelos castanhos ou pretos, loiros, ruivos, são diferentes matizes da branquitude que estão perfeitamente incluídos no interior da racialidade branca, mesmo quando apresentam alto grau de morenice, como ocorre com alguns descendentes de espanhóis, italianos ou portugueses, os quais, nem por isso, deixam de ser considerados ou de se sentir brancos. A branquitude é, portanto, diversa e policromática. A negritude, no entanto, padece de toda sorte de indagações.”

Tudo isso ponderado e bem entendido, conclui-se que, especialmente em cenários de mestiçagem, é salutar a atuação de comissões de aferição de autodeclaração. Isso porque são necessários a aquisição e o acúmulo de expertise, conhecimentos e de experiência, diante da riqueza e da complexidade do mundo globalizado e da sociedade brasileira em particular. Sem esse conjunto de saberes e de práticas, a tarefa de empregar, de modo simultâneo e complementar, as técnicas de autodeclaração e de heteroidentificação, visando à constatação da identidade étnico-racial social, para o cumprimento das finalidades das ações afirmativas, fica dificultada de modo extremo.

A concretização das ações afirmativas requer, de modo inescapável, a capacidade de compreensão da raça, do racismo, dos processos de racialização, das nuanças e dinâmicas dos processos de subjetivação e constituição, no mundo social, das identidades étnico-raciais, de modo contextualizado, ou, como disse Oracy Nogueira ao introduzir seu estudo clássico sobre as relações raciais, “...a percepção da cor e outros traços negróides é ‘gestáltica’, dependendo, em grande parte, a tomada de consciência dos mesmos pelo observador, do contexto de elementos não-raciais (sociais, culturais, psicológicos, econômicos) a que estejam associados – maneiras, educação sistemática, formação profissional, estilo e padrão de vida – tudo isso obviamente ligado à posição de classe, ao poder econômico e à socialização daí decorrente.” (NOGUEIRA, O. 1985. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz, p. 6). Desse modo, atendem-se às exigências de não cair na tentação de uma taxinomia artificial, enrijecedora da dinâmica cultural, da fluidez e da transformação típicas das formações identitárias ao longo da história, bem como de possibilitar a praticabilidade das ações afirmativas, mantendo a higidez da política pública, empregando-se da forma mais efetiva e justa os recursos públicos destinados ao enfrentamento do racismo e à promoção da igualdade de oportunidades.

Muito importante salientar que, ao cabo de sua tarefa, a decisão pela confirmação ou não de autoatribuição de identidade racial social preta ou parda, firma-se, repita-se uma vez mais, no horizonte e para os fins da implementação da política pública; vale dizer, trata-se de uma definição operacional (AABBAGNANO, N. 1970. Dicionário de filosofia. São Paulo, Ed. Mestre Jou, p. 220), que expressa a compreensão das identidades étnico-raciais, particularmente pardas, no contexto das ações afirmativas dada a mestiçagem na sociedade brasileira contemporânea. Não se trata, de modo algum, de pretender legitimar ou instituir, no seio do Estado ou de ações afirmativas em iniciativas privadas, comissões encarregadas de dizer “a verdade sobre a raça”, ou desautorizar sentimentos e percepções subjetivas, ou afirmações identitárias positivas, vivenciadas em outros ambientes, espaços e dinâmicas.

(5) Controle judicial da aplicação da norma jurídica antidiscriminatória afirmativa pela Comissão

Bem compreendido o âmbito e o programa normativos em que situadas as políticas e a regulação jurídica das ações afirmativas, impende analisar o cabimento e os limites de revisão judicial das decisões das comissões, no que respeita à atribuição de identidade étnico-racial. O que se examina aqui diz respeito ao mérito das deliberações das comissões, uma vez que, tratando-se de atos administrativos inseridos num procedimento administrativo complexo, aspectos relativos a requisitos formais, andamento e regularidade procedimental, e atendimento de garantias processuais, como as expressamente aludidas ampla defesa e contraditório, sempre estarão sujeitas à revisão judicial.

Em primeiro lugar, assentada a natureza definitória operacional da identidade étnico-racial inerente à implementação das ações afirmativas, não estão em questão direitos fundamentais como a intimidade, a vida privada e a imagem, ou direitos de personalidade como o direito à identidade e ao respeito. Isso porque a tarefa da comissão limita-se a identificar, à luz dos fins e do horizonte da política pública, quem é destinatário das ações afirmativas como beneficiário, jamais proceder a classificações identitárias étnico-raciais ou atribuição delas para outros fins, para outras políticas ou para outras esferas. Como dito, a conclusão, sempre fundamentada, objetiva e cuidadosa, tomada em regular procedimento administrativo, quanto à atribuição de identidade étnico-racial para os fins e no horizonte da política pública não traduz manifestação ou classificação estatal heterônoma quanto à “verdadeira” identidade étnico-racial dos indivíduos. Não é objetivo, não está no âmbito da política pública, não há repercussões jurídicas perante terceiros, muito menos desautoriza a liberdade, a privacidade e a autoimagem do candidato, eventual deliberação da comissão em dissonância com a autopercepção identitária do indivíduo.

Daí que, não incorrendo em arbitrariedade (por qualquer vício material ou processual, tais como contradição, tratamento anti-isonômico em relação a outros candidatos, procedimento desrespeitoso ao indivíduo e à sua autopercepção, falta de fundamentação, inobservância de regramento procedimental e ou de garantias processuais), autoridades judiciais, no exercício da jurisdição, não podem em regra adentrar no mérito das deliberações relativas à qualidade de beneficiários das políticas públicas.

Acaso se entender que é possível revisão judicial do mérito da deliberação da comissão, relativa à identificação identitária necessária para a qualificação de determinado indivíduo como destinatário da política pública, será de rigor observar a finalidade restrita e circunscrita da atribuição identitária para os fins e nos limites da implementação da política pública. Também será impositiva a observância do regime jurídico vigente, onde as técnicas de autodeclaração e de heteroidentificação coexistem e se complementam visando ao mesmo fim antidiscriminatório por meio de ações afirmativas; nisso se incluem o acatamento do desenho administrativo institucional onde não só a compreensão de raça, racismo e identidade étnico-racial tomam sentido no saber trabalhado pelas ciências sociais, como também a atenção à raça social dentre os diversos tipos de identidade racial experimentadas pelos indivíduos em sociedade (aporte este que será fundamental também para juízo acerca de imputação de declaração falsa ou má compreensão quanto à multiplicidade de identidades experimentadas pelos indivíduos, por exemplo).

Dados estes contornos, admitida a revisão judicial do mérito da deliberação administrativa, o procedimento judicial há que se cercar de todas as cautelas inerentes à atividade jurisdicional, em especial a prudência na produção probatória, à distribuição dos ônus argumentativos (visto que a comissão tem caráter deliberativo na política pública) e à necessária fundamentação de mérito que não pode ser furtar a considerar os aportes das ciências sociais para a compreensão da rica, complexa e contextual realidade fática subjacente ao litígio, tudo, evidentemente, informado pelos comandos constitucionais antidiscriminatórios e indicativos na adoção e implementação de ações afirmativas.

No eventual cabimento de exame judicial de mérito, portanto, há que se empregar cautela e ponderação. Devem-se evitar juízos apressados ou simplistas, decorrentes da falta de formação nas questões étnico-raciais e as dificuldades culturais disseminadas no senso comum em face das políticas públicas positivas, no que não se distinguem, em geral, os operadores do direito.

O ato administrativo impugnado radica-se na conclusão da comissão de aferição da autodeclaração, cuja atividade contrasta com a declaração ofertada pela parte impetrante. O ato administrativo toma, portanto, o motivo (situação de fato e de direito que enseja a prática do ato) e a motivação (demonstração das razões que sustentam o ato). Concretamente, ao responder o recurso administrativo, a Comissão arrazoou que a parte impetrante não apresenta a fenotipia caracterizadora dos destinatários.

Em sua atividade decisória, o ato administrativo respeitante à qualificação da parte impetrante como destinatário da ação afirmativa é de sua esfera de atribuição, contribuindo para a cadeia de atos que resultarão no ato administrativo complexo ora impetrado. Ao decidir, a Comissão atua de modo vinculado, vale dizer, não há espaço quanto à conveniência e oportunidade para a prática do ato: a comissão deve decidir se, para os fins da política antidiscriminatória, a parte autora ostenta a identidade étnico-racial prevista como beneficiária da medida positiva.

Está-se, portanto, diante de atividade administrativa decisória pautada pela legalidade, que requer compreender se a parte impetrante preenche o pressuposto fático abstrato elencado no dispositivo, a saber, identidade étnica-racial negra, considerado seu fenótipo. Não obstante a sofisticada e profunda elaboração sobre a hermenêutica jurídica, destaco dois tópicos cujo conteúdo permite avançar na prática decisória judicial ora demandada. Um deles tomo emprestado de Robert Alexy, acerca da argumentação empírica presente na interpretação jurídica (Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2001); o outro, a ideia de interpretação sistemática.

Quanto ao primeiro, salienta-se que a argumentação jurídica envolve, tantas vezes, elementos empíricos, o que a "identidade étnico-racial" exemplifica e, nessa medida, reclama uma atividade de “cooperação interdisciplinar” (ALEXY, 2001, p. 226), o que foi desenvolvido acima, na seção sobre o estado da arte nas ciências sociais sobre racismo e mestiçagem; quanto ao segundo, a definição legislativa da finalidade da política pública, o que reafirma o objetivo de enfrentar discriminações étnico-raciais, sofridas na vida em sociedade por determinados indivíduos, qualificando-se assim como destinatários das ações afirmativas, ponto também desenvolvido anteriormente. Disso tudo pode-se concluir que é a percepção da identidade social negra, indicada socialmente pelo fenótipo que deflagra a discriminação, que é juridicamente relevante para a definição dos destinatários da política pública.

A prática decisória da comissão, particularmente em face de candidatos autodeclarados pardos, é desafiada pela compreensão de conceito jurídico empírico que carrega consigo margem de apreciação inevitável, ensejando com certa frequência diversidade de opiniões. O controle judicial, nesse quadro, há de observar a legitimidade de "decisões administrativas sustentáveis", afastando somente aquelas conclusões administrativas "insustentáveis", por incorrerem em apreciações indefensáveis.

Nessa linha, a ponderação de Almiro do Couto e Silva (PODER DISCRICIONÁRIO NO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO, Revista da Procuradoria-Geral do Estado [do Rio Grande do Sul]. - Porto Alegre : Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v. 27 n. 57 Supl. p. 1 - 387, 2004):

14. Bem por isso é que na doutrina e na jurisprudência tem sido sustentado que, em tais casos, pode haver um controle jurisdicional limitado da aplicação pela Administração Pública de conceitos jurídicos indeterminados. Reconhece-se, desse modo, em favor dos órgãos administrativos do Estado, a existência de uma “área de apreciação” (Beurteilungsspielraum) , como quer Bachof, ou a impossibilidade de o Judiciário substituir a decisão tomada pela Administração Pública ao eleger uma das várias soluções “sustentáveis” (Vertretbaren) ou razoáveis, como pretende Ule, pois em todas essas situações teria a Administração Pública o que Hans Julius Wolf chama de “prerrogativas de avaliação” (Einschützungsprärogative) .Nesses casos altamente duvidosos, como a Administração Pública está mais perto dos problemas e, de regra, está mais bem aparelhada para resolvê-los, parece que só a ela deve caber a decisão final, não indo, pois, excepcionalmente, o controle judicial ao ponto de modificar ou de substituir a decisão administrativa.

Essa impossibilidade relativa do controle judicial da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados pela Administração Pública não os transforma, entretanto, em fonte de poder discricionário. A diferença fundamental que há entre poder discricionário e conceito jurídico indeterminado, no que se liga ao controle jurisdicional, está em que, no primeiro o controle restringe-se aos aspectos formais, externos, do ato resultante do seu exercício, ou aos seus pressupostos de validade (competência do agente, forma, desvio de poder, etc.), mas não entra na apreciação do juízo de conveniência ou oportunidade da medida - no mérito do ato administrativo, como se costuma dizer no direito brasileiro. Todavia, no pertinente aos atos de aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, o controle judicial é, em princípio, total, só esbarrando na fronteira da impossibilidade cognitiva de declarar se a aplicação foi correta ou equivocada.

15. Em conclusão, relativamente à diferença, quanto à sindicabilidade judicial, dos atos administrativos que aplicam conceitos jurídicos indeterminados e dos que envolvem exercício de poder discricionário é possível resumir tudo do seguinte modo: (a) - O exame judicial dos atos administrativos de aplicação de conceitos jurídicos indeterminados não está sujeito a um limite a priori estabelecido na lei. O próprio julgador, no instante de decidir, é que verificará se há um limite, ou não, ao controle judicial. Haverá limite se, em face da complexidade do caso, da diversidade de opiniões e pareceres, não podendo ver com clareza qual a melhor solução, não lhe couber outra alternativa senão a de pronunciar um non liquet, deixando intocada a decisão administrativa.

Neste quadro, "decisões administrativas insustentáveis", a abrir espaço para revisão judicial, são, exemplificativamente, aquelas totalmente afastadas de qualquer consenso científico ou refutadas inequivocamente pelo estado da arte do conhecimento especializado, aquelas que incorrem em erro grosseiro, aquelas que desconsideram elementos inequívocos cuja presença resultaria em inversão da decisão, como também, decorrentes de desvio de finalidade.

A nota decisiva para a atividade da Comissão e, se for o caso, para eventual intervenção judicial, é a constatação da identidade étnico-racial a partir da fenotipia. Daí que, por mais sinceros e merecedores de respeito que sejam, percepções subjetivas, ascendência e outras circunstâncias disso apartadas, elas não se revelam pertinentes para a solução do litígio. A revisão judicial reserva-se, pelos motivos expostos, aos casos onde, diante dos elementos ofertados, a decisão administrativa mostra-se insustentável, ultrapassando o campo da eventual divergência razoável ou até mesmo da dúvida.

Em demandas como esta, o contraste entre a decisão administrativa impugnada e a sustentação da parte impetrante é apresentado mediante a indicação de imagens fotográficas, reproduzidas digitalmente nas peças processuais. Por se tratar de mandado de segurança, que exige direito líquido e certo, a prova deve ser robusta e pré-constituída. Ademais, a utilização de fotografias digitalizadas requer cautela redobrada, dadas as variações nas propriedades imagéticas presentes, dificuldade essa que desautoriza intervenção judicial cujo pressuposto é, como referido, a constatação de decisão administrativa insustentável.

No caso concreto, as fotografias ofertadas (foto id ev 1 anexospet14; anexospet15; anexospet16; anexospet17; anexospet18; RG19; anexospet23) não autorizam concluir por prolação de "decisão administrativa insustentável". Com a vênia da argumentação empreendida na inicial, tais elementos não conduzem à revisão judicial do ato impugnado. Ainda que possam desencadear divergência legítima de apreciação por parte de eventuais observadores, os registros fotográficos não se revelam elementos inequívocos que façam concluir por erro grosseiro, nem como elementos desprezados pela decisão que importariam em sua inversão, nem decisão insustentável.

A definição dos destinatários da política pública obedece à finalidade da ação afirmativa, cuja avaliação se prende à singularidade individual que desencadeia discriminação associada à percepção social de determinada identidade étnico-racial , donde a consideração da pessoa em sua singularidade, sem adentrar na árvore genealógica quando não vislumbradas na fenotipia individual características suficientes para a percepção da identidade social destinatária da política pública. Conforme a mesma lógica, atestado dermatológico não se presta a fundamentar avaliação da relação entre a fenotipia e a experiência da discriminação.

Neste quadro, sem em nenhum momento questionar a sinceridade e a percepção íntima da impetrante, muito menos a ancestralidade, o decisivo é a aferição da fenotipia atual da parte impetrante, cuja imagem, ainda que possa legitimamente fazer emergir percepções divergentes, não autoriza qualificar a decisão administrativa como insustentável. No mesmo diapasão, a conclusão de comissão vinculada a outro concurso não está em causa, sendo, em si mesma, insuficiente para a concessão da ordem.

Ante o exposto, voto por dar parcial provimento ao agravo regimental, para o fim de, admitindo a impetração, indeferir a liminar.



Documento eletrônico assinado por ROGER RAUPP RIOS, Desembargador Federal, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40002426786v3 e do código CRC a3ac0347.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): ROGER RAUPP RIOS
Data e Hora: 26/3/2021, às 17:6:41


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40002426786.V3


Conferência de autenticidade emitida em 04/08/2021 04:00:58.

Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300, Gab. Des. Federal Roger Raupp Rios - 6º andar - Bairro: Praia de Belas - CEP: 90010-395 - Fone: (51)3213-3277 - Email: groger@trf4.jus.br

Mandado de Segurança (Corte Especial) Nº 5007912-13.2020.4.04.0000/RS

RELATOR: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

IMPETRANTE: SABRICIA VIANA DE SOUZA

ADVOGADO: ADOLFO MAXWELL MOREIRA BEZERRA (OAB RR000890)

IMPETRADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4 REGIAO

IMPETRADO: FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS

MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

EMENTA

DIREITO CONSTITUCIONAL e processual civil. mandado de segurança. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÕES AFIRMATIVAS. AUTODECLARAÇÃO E HETEROIDENTIFICAÇÃO ÉTNICO-RACIAL. OBJETIVOS E DESTINATÁRIOS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS. POLÍTICAS PÚBLICAS E IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL NEGRA (PESSOAS PRETAS E PARDAS). MANDADO DE SEGURANÇA E CONTROLE JUDICIAL.

1. Preliminarmente, afigura-se-me cabível a impetração de mandado de segurança discutindo a legitimidade de ato administrativo heteroidentificatório praticado por Comissão de Aferição de Autodeclaração, não se sendo hipótese de inadequação da via eleita; uma vez aforada a demanda mandamental, será examinado se os registros fotográficos mostram-se, caso a caso, suficientes para o acolhimento do pedido, sob o crivo dos requisitos da liquidez e certeza.

2. Com efeito, tenho que, em tese, o ato administrativo que rejeita a inclusão da impetrante dentre os destinatários da política configura ato vinculado, o que, em princípio, abre espaço para intervenção judicial na hipótese de inobservância do ordenamento jurídico; nestes casos, trata-se da regulação jurídica que confere direito subjetivo a pessoas negras, observada a identidade étnico-racial a partir do critério fenotípico, a figurarem em lista específica dentre os classificados no certame. Nesta condição, em tese, tal ato administrativo se sujeita a controle judicial mesmo em sede de mandado de segurança, sendo exigida, para tanto, prova documental pré-constituída, cujo teor seja apto a demonstrar erro grosseiro ou qualquer outro elemento que macule o ato administrativo.

3. No âmbito do Direito Constitucional e do Direito da Antidiscriminação, ações afirmativas são medidas que, conscientes da situação de discriminação vivida por certos indivíduos e grupos, visam a combater tal injustiça, por meio da adoção de medidas concretas.

4. A tarefa da comissão é identificar, à luz dos fins e do horizonte da política pública, quem é destinatário das ações afirmativas como beneficiário, jamais proceder a classificações identitárias étnico-raciais ou atribuição delas para outros fins, para outras políticas ou para outras esferas.

5. A autodeclaração é ponto de partida legítimo para a definição identitária quanto ao pertencimento aos grupos destinatários das ações afirmativa.

6. A tarefa heteroidentificatória da comissão não implica derrogação da autodeclaração, mas atividade complementar e necessária, dissipando dúvidas e via de regra confirmatória da autodeclaração, visando à consecução dos objetivos das ações afirmativas.

7. No exercício de sua tarefa heteroidentificatória, a comissão deve corrigir eventual autoatribuição identitária dissonante dos fins da política pública, iniciativa que não se confunde com lugar para a confirmação de percepções subjetivas ou satisfação de sentimentos pessoais, cuja legitimidade não se discute nem menospreza, mas que não vinculam, nem podem dirigir, a política pública.

8. Na atividade de identificação étnico-racial, o que importa, tanto para a autodeclaração, quanto para a heteroidentificação, é a “raça social”, uma vez que a discriminação e a desigualdade de oportunidades atuam de modo relacional, no contexto das relações sociais e intersubjetivamente.

9. A previsão de consideração exclusiva dos aspectos fenotípicos, presente na política pública, deve ser compreendida contextualmente, uma vez que a compreensão da raça social, da identidade racial e do racismo subjacentes às ações afirmativas é sociológica, política, cultural e histórica, e não em investigações biológicas.

10. A autodeclaração requer interpretação cuidadosa, livre de preconceitos ou desconfianças prévias de dolo ou simulação quando legitimamente questionada a identidade autoatribuída, dada a complexidade do fenômeno identitário, onde um mesmo indivíduo pode experimentar uma multiplicidade de identidades nos diversos ambientes em que vive e transita, num mesmo momento ou ao longo de sua trajetória de vida.

11. A comissão pode concluir por identidade étnico-racial diversa daquela inicialmente autodeclarada, sem que esteja presente má-fé, em virtude de conclusão por identidade étnico-racial social diversa daquela autodeclarada.

12. A imputação de declaração falsa na autoatribuição identitária, decorrente do compromisso institucional com a higidez da política pública, deve ser reservada para a hipótese em que efetivamente o candidato tenha agido conscientemente de má-fé, em situações onde não paire dúvida.

13. Nas ações afirmativas, não está em questão pretensa “verdade sobre a raça”, muito menos atuação de “tribunal racial”; a função da comissão é, atenta às dinâmicas concretas de discriminação, identificar os destinatários da política pública.

14. A invocação de “mestiçagem” étnico-racial, antes de inviabilizar, reforça a importância da tarefa das comissões, pois este fenômeno, ao contrário de dissolver, perpetua discriminações (“a mistura racial nunca é representada exatamente como fusão; opera, seja positivamente (no branqueamento) ou negativamente (quando pensada como enegrecimento), algum tipo de hierarquia”).

15. No controle judicial da atividade das comissões há que observar a legitimidade das decisões administrativas, sendo insubsistentes juridicamente “conclusões administrativas insustentáveis", tais como aquelas afastadas de qualquer consenso científico ou refutadas inequivocamente pelo estado da arte do conhecimento especializado, aquelas que incorrem em erro grosseiro e aquelas que desconsideram elementos inequívocos cuja presença resultaria em inversão da decisão, como também, decorrentes de desvio de finalidade.

16. Agravo regimental parcialmente provido, para admitir a impetração; indeferida a liminar.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por maioria, vencido o relator, dar parcial provimento ao agravo regimental, para o fim de, admitindo a impetração, indeferir a liminar, nos termos do voto do Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS, que lavrará o acórdão. Vencidos, também, alémn do relator, os Desembargadores Federais LUÍS ALBERTO D AZEVEDO AURVALLE, CLAUDIA CRISTINA CRISTOFANI, JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, MARGA INGE BARTH TESSLER, MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, LUIZ CARLOS CANALLI e SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Porto Alegre, 18 de junho de 2021.



Documento eletrônico assinado por ROGER RAUPP RIOS, Relator do Acórdão, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40002654033v4 e do código CRC 8df311e2.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): ROGER RAUPP RIOS
Data e Hora: 27/7/2021, às 12:22:43


5007912-13.2020.4.04.0000
40002654033 .V4


Conferência de autenticidade emitida em 04/08/2021 04:00:58.

Poder Judiciário
Tribunal Regional Federal da 4ª Região

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO Virtual DE 16/07/2020 A 23/07/2020

Mandado de Segurança (Corte Especial) Nº 5007912-13.2020.4.04.0000/RS

INCIDENTE: AGRAVO INTERNO

RELATOR: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

PRESIDENTE: Desembargador Federal VICTOR LUIZ DOS SANTOS LAUS

PROCURADOR(A): MARCELO VEIGA BECKHAUSEN

IMPETRANTE: SABRICIA VIANA DE SOUZA

ADVOGADO: ADOLFO MAXWELL MOREIRA BEZERRA (OAB RR000890)

IMPETRADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4 REGIAO

IMPETRADO: FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS

MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 16/07/2020, às 00:00, a 23/07/2020, às 16:00, na sequência 4, disponibilizada no DE de 07/07/2020.

Certifico que a Corte Especial, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:

APÓS O VOTO DO DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ NO SENTIDO DE NEGAR PROVIMENTO AO AGRAVO INTERNO, NO QUE FOI ACOMPANHADO PELOS DESEMBARGADORES FEDERAIS LUÍS ALBERTO D'AZEVEDO AURVALLE, CLAUDIA CRISTINA CRISTOFANI, JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, LUIZ CARLOS CANALLI, MARGA INGE BARTH TESSLER, MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE E LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, PEDIU VISTA O DESEMBARGADOR FEDERAL ROGER RAUPP RIOS. AGUARDAM OS DESEMBARGADORES FEDERAIS JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, LUCIANE AMARAL CORRÊA MÜNCH, VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, VÂNIA HACK DE ALMEIDA, SALISE MONTEIRO SANCHOTENE E PAULO AFONSO BRUM VAZ.

Votante: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

Votante: Desembargador Federal LUÍS ALBERTO D AZEVEDO AURVALLE

Votante: Desembargadora Federal CLAUDIA CRISTINA CRISTOFANI

Votante: Desembargador Federal JOÃO PEDRO GEBRAN NETO

Pedido Vista: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS

Votante: Desembargador Federal LUIZ CARLOS CANALLI

Votante: Desembargadora Federal MARGA INGE BARTH TESSLER

Votante: Desembargadora Federal MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE

Votante: Desembargador Federal LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO

IMPEDIDO: Desembargador Federal VICTOR LUIZ DOS SANTOS LAUS

PAULO ANDRÉ SAYÃO LOBATO ELY

Secretário



Conferência de autenticidade emitida em 04/08/2021 04:00:58.

Poder Judiciário
Tribunal Regional Federal da 4ª Região

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO Virtual DE 18/03/2021 A 25/03/2021

Mandado de Segurança (Corte Especial) Nº 5007912-13.2020.4.04.0000/RS

INCIDENTE: AGRAVO INTERNO

RELATOR: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

PRESIDENTE: Desembargador Federal VICTOR LUIZ DOS SANTOS LAUS

PROCURADOR(A): MARCELO VEIGA BECKHAUSEN

IMPETRANTE: SABRICIA VIANA DE SOUZA

ADVOGADO: ADOLFO MAXWELL MOREIRA BEZERRA (OAB RR000890)

IMPETRADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4 REGIAO

IMPETRADO: FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS

MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 18/03/2021, às 00:00, a 25/03/2021, às 16:00, na sequência 37, disponibilizada no DE de 09/03/2021.

Certifico que a Corte Especial, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:

PROSSEGUINDO NO JULGAMENTO, APÓS O VOTO-VISTA DO DESEMBARGADOR FEDERAL ROGER RAUPP RIOS DIVERGINDO PARA DAR PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO REGIMENTAL, PARA O FIM DE, ADMITINDO A IMPETRAÇÃO, INDEFERIR A LIMINAR, OS VOTOS DOS DESEMBARGADORES FEDERAIS PAULO AFONSO BRUM VAZ, JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, CELSO KIPPER, LUCIANE AMARAL CORRÊA MÜNCH, VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA E LEANDRO PAULSEN NO MESMO SENTIDO, A RETIFICAÇÃO DE VOTO DO DESEMBARGADOR FEDERAL LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO PARA TAMBÉM ACOMPANHAR A DIVERGÊNCIA, E O VOTO DO DESEMBARGADOR FEDERAL SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ ACOMPANHANDO O RELATOR, TENDO SIDO VERIFICADO EMPATE NA VOTAÇÃO E TENDO SIDO COLHIDOS 16 VOTOS, A CORTE ESPECIAL DECIDIU SOBRESTAR O JULGAMENTO E CONVOCAR UM MEMBRO SUPLENTE PARA COMPLEMENTAÇÃO DA VOTAÇÃO.

VOTANTE: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS

Votante: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ

Votante: Desembargador Federal JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA

Votante: Desembargador Federal CELSO KIPPER

Votante: Desembargadora Federal LUCIANE AMARAL CORRÊA MÜNCH

Votante: Desembargadora Federal VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA

Votante: Desembargador Federal LEANDRO PAULSEN

Votante: Desembargador Federal SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ

Votante: Desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA

PAULO ANDRÉ SAYÃO LOBATO ELY

Secretário

MANIFESTAÇÕES DOS MAGISTRADOS VOTANTES

Acompanha a Divergência - GAB. 92 (Des. Federal CELSO KIPPER) - Desembargador Federal CELSO KIPPER.

Acompanho o voto parcialmente divergente do Des. Roger, no sentido de admitir a impetração, mas indeferir a liminar.



Conferência de autenticidade emitida em 04/08/2021 04:00:58.

Poder Judiciário
Tribunal Regional Federal da 4ª Região

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO Virtual DE 11/06/2021 A 18/06/2021

Mandado de Segurança (Corte Especial) Nº 5007912-13.2020.4.04.0000/RS

INCIDENTE: AGRAVO INTERNO

RELATOR: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

PRESIDENTE: Desembargador Federal VICTOR LUIZ DOS SANTOS LAUS

PROCURADOR(A): MARCELO VEIGA BECKHAUSEN

IMPETRANTE: SABRICIA VIANA DE SOUZA

ADVOGADO: ADOLFO MAXWELL MOREIRA BEZERRA (OAB RR000890)

IMPETRADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4 REGIAO

IMPETRADO: FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS

MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 11/06/2021, às 00:00, a 18/06/2021, às 16:00, na sequência 2, disponibilizada no DE de 01/06/2021.

Certifico que a Corte Especial, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:

PROSSEGUINDO NO JULGAMENTO, APÓS O VOTO DA DESEMBARGADORA FEDERAL SALISE MONTEIRO SANCHOTENE ACOMPANHANDO A DIVERGÊNCIA, A CORTE ESPECIAL DECIDIU, POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR, DAR PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO REGIMENTAL, PARA O FIM DE, ADMITINDO A IMPETRAÇÃO, INDEFERIR A LIMINAR, NOS TERMOS DO VOTO DO DESEMBARGADOR FEDERAL ROGER RAUPP RIOS, QUE LAVRARÁ O ACÓRDÃO. VENCIDOS, TAMBÉM, ALÉMN DO RELATOR, OS DESEMBARGADORES FEDERAIS LUÍS ALBERTO D AZEVEDO AURVALLE, CLAUDIA CRISTINA CRISTOFANI, JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, MARGA INGE BARTH TESSLER, MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, LUIZ CARLOS CANALLI E SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS

Votante: Desembargadora Federal SALISE MONTEIRO SANCHOTENE

PAULO ANDRÉ SAYÃO LOBATO ELY

Secretário



Conferência de autenticidade emitida em 04/08/2021 04:00:58.

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