Pedi vista dos presentes autos para melhor me ater à matéria veiculada no agravo interno interposto pela parte autora, que pretende a concessão do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição sem a incidência do fator previdenciário.
Trata-se de agravo interno interposto por Inaldo Severino Beajoni da Silva, em ação previdenciária em face do INSS, objetivando a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição.
Em razões de agravo interno pleiteou a agravante o reconhecimento do período de atividade rural a partir dos 10 anos de idade, a fim de lhe possibilitar a obtenção de benefício de aposentadoria integral por tempo de contribuição mais vantajoso, sem a incidência do fator previdenciário.
Em seu voto, o ilustre Relator houve por bem negar provimento ao recurso, ao fundamento de que na Constituição Federal de 1967 proibiu-se o trabalho de menores de 12 (doze) anos, nos termos do inciso X, do artigo 165, de forma que se deve tomar como parâmetro para a admissão do trabalho rural tal limitação.
Nesse passo, com a devida vênia do ilustre Relator, o meu entendimento é pela aceitação do trabalho rural aos 10 anos de idade.
A respeito, tenho assim reiterado:
Do trabalho prestado pelo menor de 12 anos
É controversa na jurisprudência a possibilidade de o trabalhador, urbano ou rural, poder computar tempo de serviço prestado quando ainda criança, antes de implementados doze anos de idade.
Nesse sentido, tanto a Constituição Federal, quanto a legislação pátria infraconstitucional, em especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8.079/90 - e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, resguardam os direitos dos menores, com o escopo de sua proteção como indivíduo hipossuficiente e ainda em formação.
De acordo com o IBGE, são inúmeras as situações de trabalho infantil ainda registradas no Brasil, não se limitando apenas ao trabalhador rural, devendo ser destacado também crianças colocadas por seus próprios pais em atividades domésticas, agricultura, pesca, silvicultura, e até mesmo em atividades urbanas, tais como, venda de bens de consumo, meio artístico e televisivo, entre várias outras atividades.
Dessa forma, não me parece razoável que ao infante seja imposta dupla punição: a perda da plenitude de sua infância, tendo que trabalhar enquanto deveria estar brincando e estudando, e, por outro lado, não poder ter reconhecido o direito de computar o período trabalhado para fins previdenciários.
Assim, com maior razão, ao trabalho árduo e penoso do infante, como ocorre com a lida rural, deve a lei ampliar ainda mais a proteção das crianças e dos adolescentes, tendo em vista o elevado desgaste físico, mental e emocional gerado a essas pessoas nessa espécie laborativa, com manifesto ferimento a preceitos fundamentais, como o da dignidade humana e o direito da criança a vivenciar com plenitude a sua infância.
Sobre o tema, cito precedente do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, que, ao julgar ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal, trouxe à baila dados estatísticos importantes, reveladores da grande exploração do trabalho infantil ainda vigente no Brasil, especialmente, no meio rural:
"(...) 11. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) no ano de 2014, o trabalho infantil no Brasil cresceu muito em comparação com os anos anteriores, quando estava em baixa. 12. E, de acordo com o IBGE, no ano de 2014 havia 554 mil crianças de 5 a 13 anos trabalhando. Na atividade agrícola, nesta mesma faixa etária, no ano de 2013 trabalhavam 325 mil crianças, enquanto no ano de 2014 passou a ser de 344 mil, um aumento de 5,8%. Já no ano de 2015, segundo o PNAD (IBGE) houve novamente uma diminuição de 19,8%. No entanto, constatou-se o aumento de 12,3% do 'trabalho infantil na faixa entre 5 a 9 anos'. 13. O Ministério do Trabalho e Previdência Social - MPTS noticia que em mais de sete mil ações fiscais realizadas no ano de 2015, foram encontradas 7.200 crianças em situação de trabalho irregular. Dos 7.200 casos, 32 crianças tinham entre 0 e 4 - todas encontradas no Amazonas. Outras 105 estavam na faixa etária de 5 a 9 anos e foram encontradas, também, no Amazonas (62) e nos estados de Pernambuco (13), Pará (7) Roraima (5), Acre (4) Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul (3 em cada Estado), Bahia e Sergipe (2 em cada Estado). Na Paraíba, Rio de Janeiro, Rondônia e Tocantins encontrou-se uma criança em cada Estado com essa faixa etária de 5 a 9 anos. 14. Insta anotar que a realidade fática revela a existência de trabalho artístico e publicitário com nítido objetivo econômico e comercial realizados com a autorização dos pais, com a anuência do Poder Judiciário, de crianças recém nascidas, outras com 01, 2, 3, 4 e 5 anos de idade. Aliás, é possível a proteção previdenciária nesses casos? No caso de eventual ocorrência de algum acidente relacionado a esse tipo de trabalho, a criança teria direito a algum benefício previdenciário, tal como o auxílio acidente? Apelação do MPF provida" (APELAÇÃO CÍVEL 5017267-34.2013.4.04.7100/RS, Rel. HERMES SIEDLER DA CONCEIÇÃO JÚNIOR. DJe 13.4.2018).
Cito, ademais, precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, o último deles julgado em junho de 2020, "verbis":
AGRAVO INTERNO. PREVIDENCIÁRIO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. PREQUESTIONAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. INOVAÇÃO NO ÂMBITO DO AGRAVO INTERNO. IMPOSSIBILIDADE. RURÍCOLA. LABOR DE MENOR DE 12 ANOS DE IDADE. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
1. É assente nesta Corte que a via especial não se presta à apreciação de alegação de ofensa a dispositivo da Constituição da República, ainda que para fins de prequestionamento, não sendo omisso o julgado que silencia acerca da questão. 2. Impossível o conhecimento de questão não suscitada nas razões do recurso especial, no âmbito do agravo interno, sob pena de inovação recursal. 3. É firme neste Superior Tribunal de Justiça o entendimento no sentido da possibilidade de cômputo do labor rural comprovadamente desempenhado por menor de doze anos de idade.
4. Agravo ao qual se nega provimento (AgRg no REsp. 1.150.829/SP, Rel. Min. CELSO LIMONGI, DJe 4.10.2010) - grifei.
AGRAVO INTERNO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. RECONHECIMENTO DE ATIVIDADE RURAL. MENOR DE 12 ANOS. CÔMPUTO. POSSIBILIDADE. INOVAÇÃO RECURSAL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL ANÁLISE. IMPOSSIBILIDADE. 1. É inadmissível, no agravo interno, a apreciação de questão não suscitada anteriormente, como, no caso, a incidência do disposto nos artigos 7°, XXXIV, e 201, todos da Constituição da República. 2. A análise de suposta ofensa a dispositivos constitucionais compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, inciso III, da Constituição da República, sendo defeso o seu exame em âmbito de recurso especial. 3. Consoante entendimento firmado neste Superior Tribunal de Justiça, o exercício da atividade empregatícia rurícola, abrangida pela previdência social, por menor de 12 (doze) anos, impõe-se o cômputo, para efeitos securitários, desse tempo de serviço. 4. Agravo a se nega provimento (AgRg no REsp. 1.074.722/SP, Rel. Min. JANE SILVA, DJe 17.11.2008).
PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. TRABALHADOR URBANO. CÔMPUTO DO TRABALHO RURAL ANTERIOR À LEI 8.213/1991 SEM O RECOLHIMENTO DAS CONTRIBUIÇÕES. POSSIBILIDADE DE CÔMPUTO DO TRABALHO RURAL ANTERIOR AOS 12 ANOS DE IDADE. INDISPENSABILIDADE DA MAIS AMPLA PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES. POSSIBILIDADE DE SER COMPUTADO PERÍODO DE TRABALHO PRESTADO PELO MENOR, ANTES DE ATINGIR A IDADE MÍNIMA PARA INGRESSO NO MERCADO DE TRABALHO. EXCEPCIONAL PREVALÊNCIA DA REALIDADE FACTUAL DIANTE DE REGRAS POSITIVADAS PROIBITIVAS DO TRABALHO DO INFANTE. ENTENDIMENTO ALINHADO À ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL DA TNU. ATIVIDADE CAMPESINA DEVIDAMENTE COMPROVADA. AGRAVO INTERNO DO SEGURADO PROVIDO.
1. Cinge-se a controvérsia em reconhecer a excepcional possibilidade de cômputo do labor de menor de 12 anos de idade, para fins previdenciários. Assim, dada a natureza da questão envolvida, deve a análise judicial da demanda ser realizada sob a influência do pensamento garantístico, de modo a que o julgamento da causa reflita e espelhe o entendimento jurídico que confere maior proteção e mais eficaz tutela dos direitos subjetivos dos hipossuficientes.
2. Abono da legislação infraconstitucional que impõe o limite mínimo de 16 anos de idade para a inscrição no RGPS, no intuito de evitar a exploração do trabalho da criança e do adolescente, ancorado no art. 7o., XXXIII da Constituição Federal. Entretanto, essa imposição etária não inibe que se reconheça, em condições especiais, o tempo de serviço de trabalho rural efetivamente prestado pelo menor, de modo que não se lhe acrescente um prejuízo adicional à perda de sua infância.
3. Nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o art. 7o., XXXIII, da Constituição não pode ser interpretado em prejuízo da criança ou adolescente que exerce atividade laboral, haja vista que a regra constitucional foi criada para a proteção e defesa dos Trabalhadores, não podendo ser utilizada para privá-los dos seus direitos (RE 537.040/SC, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe 9.8.2011). A interpretação de qualquer regra positivada deve atender aos propósitos de sua edição; no caso de regras protetoras de direitos de menores, a compreensão jurídica não poderá, jamais, contrariar a finalidade protetiva inspiradora da regra jurídica.
4. No mesmo sentido, esta Corte já assentou a orientação de que a legislação, ao vedar o trabalho infantil, teve por escopo a sua proteção, tendo sido estabelecida a proibição em benefício do menor e não em seu prejuízo. Reconhecendo, assim, que os menores de idade não podem ser prejudicados em seus direitos trabalhistas e previdenciário, quando comprovado o exercício de atividade laboral na infância.
5. Desta feita, não é admissível desconsiderar a atividade rural exercida por uma criança impelida a trabalhar antes mesmo dos seus 12 anos, sob pena de punir duplamente o Trabalhador, que teve a infância sacrificada por conta do trabalho na lide rural e que não poderia ter tal tempo aproveitado no momento da concessão de sua aposentadoria. Interpretação em sentido contrário seria infringente do propósito inspirador da regra de proteção.
6. Na hipótese, o Tribunal de origem, soberano na análise do conjunto fático-probatório dos autos, asseverou que as provas materiais carreadas aliadas às testemunhas ouvidas, comprovam que o autor exerceu atividade campesina desde a infância até 1978, embora tenha fixado como termo inicial para aproveitamento de tal tempo o momento em que o autor implementou 14 anos de idade (1969).
7. Há rigor, não há que se estabelecer uma idade mínima para o reconhecimento de labor exercido por crianças e adolescentes, impondo-se ao julgador analisar em cada caso concreto as provas acerca da alegada atividade rural, estabelecendo o seu termo inicial de acordo com a realidade dos autos e não em um limite mínimo de idade abstratamente pré-estabelecido. Reafirma-se que o trabalho da criança e do adolescente deve ser reprimido com energia inflexível, não se admitindo exceção que o justifique; no entanto, uma vez prestado o labor o respectivo tempo deve ser computado, sendo esse cômputo o mínimo que se pode fazer para mitigar o prejuízo sofrido pelo infante, mas isso sem exonerar o empregador das punições legais a que se expõe quem emprega ou explora o trabalho de menores.
8. Agravo Interno do Segurado provido.
(AgInt no AREsp 956.558/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 17/06/2020) - grifei.
No caso dos autos, a parte autora nascida em 19/01/1962 pleiteou o reconhecimento de atividade rural a partir de 19/01/1972, aos 10 anos de idade.
Conforme consta do voto do E. Relator, "há início de prova material da condição de rurícola do autor, consistente na cópia de Escritura Pública de compra e venda de imóvel, no município de Queimadas-PB, lavrada em 1961, cópia de certidão de casamento, celebrado em 01/12/1976, e carteira do INAMPS, emitida em 1988, nas quais seu genitor foi qualificado profissionalmente como agricultor/trabalhador rural, além de cópia da Carteira do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Queimadas-PB, de seu pai, contando com contribuições sindicais, dos anos de 1979 a 1986 (Id. 292753712 - Pág. 17/18, 292753712 - Pág. 24). Por sua vez, as testemunhas ouvidas complementaram plenamente esse início de prova material ao asseverarem, perante o juízo de primeiro grau, sob o crivo do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sem contraditas, que a parte autora exercia atividade rural até aproximadamente os 18 (dezoito) anos".
Diante da limitação legal adotada pelo ilustre Relator, houve o reconhecimento no voto do período rural em regime de economia familiar no período de 19/01/1974 (aos 12 anos de idade) até 25/08/1980, julgando parcialmente provida a apelação da parte autora, para, reformando a sentença, condenar o INSS reconhecer o labor rural no período de 19/01/1974 a 25/08/1980 e conceder o benefício aposentadoria por tempo de contribuição, desde a data do requerimento administrativo, com correção monetária e juros de mora, além da verba honorária advocatícia.
No presente caso, entendo que razão assiste ao agravante.
Em audiência de instrução e julgamento o autor foi ouvido (ID. 292754032), ocasião na qual disse que nasceu no Sítio Oiti de Queimadas, propriedade de seu genitor, e começou a trabalhar com 7/8 anos de idade; que plantava milho, feijão, algodão, carpa, trabalhava no carvoeiro e cuidava de cabritos; só a família trabalhava no sítio para a sobrevivência; eram muitos irmãos e todos trabalhavam na propriedade; foi estudar com 7/8 anos de idade, mas saiu porque tinha que trabalhar; que ficou no sítio até os 18 anos e oito meses de idade e veio a São Paulo para trabalhar como porteiro, faxineiro, etc., para ajudar a família.
A testemunha Creuza Barbosa Vieira prestou declarações, conforme ID.292754033.
Afirmou que era vizinha do sítio e conheceu o autor e os pais dele; que o autor trabalhava na roça desde pequeno, em queimadas.
A testemunha Josefa Firmino de Lima, em declarações constante do ID. 292754034 asseverou que era vizinha do sítio e foi professora do autor no ensino fundamental; disse que as crianças paravam de estudar para trabalhar e que o autor estudava no período da noite; com 10 anos de idade já trabalhava; a escola era dentro do sítio.
A testemunha Marisa da Costa, em declarações constantes do ID. 292754035, disse que foi professora do autor quando ele tinha 9 para dez anos de idade na segunda série, quando o autor já trabalhava na roça e depois ele parou de estudar para trabalhar; o sítio era da família; eram 13 filhos e trabalhavam no roçado e plantação para manutenção do próprio sustento; que o autor também fazia fibra das folhas para a sobrevivência.
Nessa toada, destaco que o E. Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP nº 1348633/SP sedimentou o entendimento de que é possível o reconhecimento de tempo de serviço rural exercido em momento anterior àquele retratado no documento mais antigo juntado aos autos como início de prova material, desde que tal período esteja evidenciado por prova testemunhal idônea, o que ocorre no caso.
Esse entendimento sedimentou-se em 2016, com a aprovação da Súmula 577 do Superior Tribunal de Justiça, "in verbis":
"É possível reconhecer o tempo de serviço rural anterior ao documento mais antigo apresentado desde que amparado em convincente prova testemunhal colhida sob contraditório."
Destarte, com a devida vênia do E. Relator, aplico o entendimento aos autos, para o fim de reconhecer o período rural do autor em regime de economia familiar desde os 10 anos de idade (19/01/1972) a 25/08/1980 e a contagem de tempo de serviço resulta da seguinte forma:
Diante do exposto, com a devida vênia do E. Relator, dou provimento ao agravo interno interposto pelo autor, para lhe conceder aposentadoria por tempo de contribuição, a partir do requerimento administrativo, sem a incidência do fator previdenciário, conforme a planilha supra.
É como voto.
LOUISE FILGUEIRAS
Desembargadora Federal