
POLO ATIVO: Ministério Público Federal (Procuradoria)
POLO PASSIVO:MANOEL GUSMAO MORAES e outros
RELATOR(A):WILSON ALVES DE SOUZA

Gab. 07 - DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA
Processo Judicial Eletrônico
R E L A T Ó R I O
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ofereceu denúncia em desfavor de FERNANDO FERREIRA DE MORAES e MANOEL GUSMÃO MORAES, imputando-lhes a prática dos crimes tipificados pelos artigos 203, caput, e 297, § 4º, ambos do Código Penal, bem como pelos artigos 45 e 60, ambos da Lei n. 9.605/98, na forma do artigo 69 do CP.
Consta da exordial acusatória, em síntese, que, em ação de fiscalização móvel do Grupo Especial de Combate ao Trabalho Escravo, realizada entre os dias 9 a 21 de setembro de 2009, no Assentamento Nossa Senhora Aparecida, Zona Rural de Abel Figueiredo/PA, foram encontrados 3 (três) empregados trabalhando no local sem qualquer registro ou formalização do vínculo empregatício e sem suas CTPSs anotadas. Os obreiros estariam alojados em precários barracões construídos com pedaços de madeira e destituídos de condições dignas de habitação. Ademais, a equipe teria apurado que o empreendimento da responsabilidade dos Denunciados operava atividade clandestina de carvoejamento, comercializando, irregularmente, sua produção com a siderúrgica COSIPAR.
A denúncia foi recebida em 28/5/2012.
Em 11/9/2017, o MPF aditou a denúncia, imputando também aos acusados a prática do delito inserto no artigo 149, caput, do Código Penal.
No dia 6/10/2017, foi recebido o aditamento da denúncia, bem como declarada a extinção da punibilidade dos Réus quanto aos delitos tipificados pelos artigos 203, caput, do CP, 45 e 60, ambos da Lei n. 9.605/98, dada a ocorrência da prescrição.
Após regular instrução, sobreveio a sentença (publicada em 13/3/2020), que julgou improcedente o pedido, para absolver os Réus.
O MPF interpôs apelação, pugnando pela reforma da sentença, sustentando, em síntese, que a conduta narrada é típica e existem elementos bastantes a demonstrar a materialidade e a autoria dos crimes imputados aos Réus.
Contrarrazões apresentadas.
A Procuradoria Regional da República, em parecer, opinou pelo provimento do recurso.
É o Relatório.
Ao Revisor.
Relator

Processo Judicial Eletrônico
Tribunal Regional Federal da 1ª Região
Gab. 07 - DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA
V O T O
I – DA PRELIMINAR DE MÉRITO. DA ATIPICIDADE DA CONDUTA
Cuida-se de apelação criminal interposta pelo Ministério Público Federal em face da sentença que julgou improcedente a denúncia, absolvendo os Acusados FERNANDO FERREIRA DE MORAES e MANOEL GUSMÃO MORAES da prática dos delitos tipificados pelos artigos 149, caput, e 297, § 4º, ambos do Código Penal.
Como se vê, os Recorridos foram absolvidos da conduta descrita no dispositivo legal que assim dispõe:
CP, Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei n. 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei n. 10.803, de 11.12.2003)
Trata-se, portanto, de tipo penal de ação múltipla ou conteúdo variado, considerando-o praticado se quaisquer dos verbos nucleares estiverem presentes, ainda que isoladamente. Está, assim, caracterizado o crime, quer seja pela submissão a trabalhos forçados; quer seja pela existência de jornada exaustiva; pela sujeição a condições degradantes de trabalho; ou, ainda, pela restrição de sua liberdade em razão de dívida contraída.
Não por outro motivo, o Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão no sentido de que “o crime de redução a condição análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única. O referido tipo penal prevê outras condutas que podem ofender o bem juridicamente tutelado, isto é, a liberdade de o indivíduo ir, vir e se autodeterminar, dentre elas submeter o sujeito passivo do delito a condições degradantes de trabalho” (AgRg no REsp n. 1.969.868/MT, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 18/9/2023).
A rubrica expressa no tipo penal – redução a condição análoga à de escravo – sugere o grau de violação exigido pela norma. Refere-se o crime à redução a condições de trabalho e de vida semelhantes a que os escravos eram submetidos. Não se exige a exata identificação com a situação de escravidão, porém deve estar presente alguma proximidade entre a situação fática narrada na denúncia e algumas condições típicas de desumanização.
Cumpre ressaltar que, em 2012, o assunto foi objeto de exame perante o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito 3412/AL. Na ocasião, o Plenário considerou que o crime de redução a condição análoga à de escravo só se configura quando há reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerabilizando a dignidade do indivíduo como ser humano. Confira-se a ementa do acórdão:
PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais. (Inq 3412, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 29/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-222 DIVULG 09-11-2012 PUBLIC 12-11-2012 RTJ VOL-00224-01 PP-00284) (g.n.)
Desse modo, trabalhos forçados, jornadas exaustivas e trabalhos prestados sob condições degradantes podem aniquilar a capacidade de cognição ou de tomada de decisão, o que importaria na subtração da liberdade ou na captura do livre arbítrio, isto é, em tese, é possível o aniquilamento da liberdade de forma indireta ou reflexa por meio de trabalhos forçados, jornadas exaustivas e degradantes.
Contudo, essa violação, como afirmado no julgamento acima transcrito, deve ocorrer de forma intensa (forte, contundente, veemente) e persistente (permanente, duradoura, prolongada), para que se possa falar na perda da liberdade física ou psíquica.
O Apelante lastreou sua peça acusatória com base em relatório que fora produzido pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no qual consta que, em fiscalização ocorrida entre os dias 9 e 21 de setembro de 2009, foi constatado que, na Carvoaria do Fernando e do “Seu Neo”, situada no PA Nossa Senhora Aparecida, no município de Abel Figueiredo/PA, os denunciados mantinham 3 (três) trabalhadores sem registro na CTPS, com salários atrasados, alojados em barracões precários, sem instalações sanitárias, água potável e condições de segurança para o trabalho. Ainda, registrou que as circunstâncias de trabalho a que estavam submetidos os obreiros resgatados eram degradantes.
No caso concreto, não é possível falar-se em relação de trabalho, eis que, consoante consta da preambular acusatória, a fiscalização foi realizada de 9/9/2009 a 21/9/209 e os trabalhadores JOÃO BATISTA FERREIRA DOS SANTOS e JOSÉ DIVINO SILVA, os quais, segundo narra a denúncia, não teriam percebido remuneração, iniciaram, respectivamente, o labor em 4/6/2009 e 18/8/2009.
Assim, as irregularidades verificadas pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego não ocorreram de forma persistente ou duradoura, de maneira a culminar na subtração da liberdade física ou psíquica. Portanto, como constou da objurgada sentença, apesar de inapropriadas as condições descritas na denúncia, não foram duradouras a ponto de configurar o crime de redução a condição análoga à de escravo.
Por conseguinte, não foram satisfeitos os elementos objetivos do tipo penal da permanência ou duração e, ainda, de trabalhos forçados, jornadas exaustivas e/ou trabalhos prestados sob condições degradantes de forma intensa, sendo a conduta imputada aos Réus atípica.
II – DO MÉRITO PROPRIAMENTE DITO
II.I – DA IMPUTAÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 149 DO CP
Quanto às condições degradantes de trabalho, em comentários à indigitada modalidade delitiva, cabe aqui transcrever o escólio de Guilherme de Souza Nucci:
Condições degradantes de trabalho: Degradação significa rebaixamento, indignidade ou aviltamento de algo. No sentido do texto, é preciso que o trabalhador seja submetido a um cenário humilhante de trabalho, mais compatível a um escravo do que um ser humano livre e digno. Logo, apesar de se tratar de tipo aberto, dependente, pois, da interpretação do juiz, o bom senso está a indicar o caminho a ser percorrido, inclusive se valendo o magistrado da legislação trabalhista, que preserva as condições mínimas apropriadas do trabalho humano.
Por outro lado, também já existem julgados no sentido de que condições precárias de acomodações, descumprimento de normas de proteção ao trabalho e omissão de registros de contrato de trabalho, além de censuráveis, são irregularidades trabalhistas e previdenciárias a serem sanadas na via própria:
A submissão do trabalhador a condições precárias de acomodações [...] é censurável, mas não configura o crime do art. 149 do Código Penal. (TRF 1ª Região, ACR 2321-05.2004.4.01.4300/TO)
O simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho não é conducente a se concluir pela configuração do trabalho escravo. (STF, RE 466508.) 3. Crime de omissão de registro de contrato de trabalho. CP, Art. 297, § 4º. Esta Corte tem decidido que "[a] omissão consistente em deixar de registrar contrato de trabalho em Carteira de Trabalho e Previdência Social é mera irregularidade administrativa, que enseja a aplicação de multa, mas não se adéqua ao tipo penal previsto no art. 297, § 4º, do Código Penal, que exige o propósito direto de fraudar a Previdência Social, o que não restou comprovado nos autos." (TRF 1ª Região, ACR 0005433-06.2009.4.01.4300/TO; ACR 0001271-98.2009.4.01.3901/PA; RSE 0003965-18.2015.4.01.3905/PA.) 4. Apelação dos Acusados provida. Apelação do MPF que se julga prejudicada. (APELAÇÃO 00003447120144013606, DESEMBARGADOR FEDERAL MÁRIO CÉSAR RIBEIRO, TRF1 - TERCEIRA TURMA, e-DJF1 DATA:02/02/2018)
Delineada essa moldura, não se verifica, do exame dos autos, standard probatório condizente com juízo de certeza que exclua qualquer dúvida razoável quanto à materialidade, autoria delitiva e elemento subjetivo.
Como reconhecido pelo Juízo a quo, não foram produzidas provas suficientes acerca da existência de subjugação humana dos trabalhadores em virtude de submissão a jornadas extenuantes de trabalho, sendo que aqueles, inclusive, exerciam suas atribuições sem supervisão.
Demais disso, não ficou comprovado que os trabalhadores sofriam restrição de sua liberdade em razão de dívida contraída com os Apelados.
Nesta senda, assim bem lançou o Magistrado:
Da análise das provas produzidas, conclui-se, que não houve comprovação da existência de subjugação humana em razão de endividamento dos trabalhadores, ou seja, não foi demonstrado que os obreiros estavam submetidos ao denominado “sistema de servidão por dívidas”.
(...)
In casu, não se observou que dos fatos investigados tenha havido utilização de instrumento para limitar as liberdades de ir e vir dos obreiros. Assim refiro porque nenhum dos obreiros resgatados relatou qualquer impedimento nesse sentido, seja durante a fiscalização ou em juízo.
(...) compulsando as anotações exaradas no acervo de provas produzidos por ocasião da fiscalização extrajudicial, não se depreendem mínimos indícios da prática de servidão por preço ou de preços abusivos.
(...)
Importante ainda destacar que não foi demonstrada a ocorrência de ameaças ou mesmo de limitações imperiosas de deslocamento, sob qualquer condição então imposta pelos empregadores, impedindo que os obreiros desistissem do emprego e desertassem seus contratos de trabalho. Assim refiro porque não foi relatado qualquer tipo de vigilância ostensiva ou a imposição de qualquer condicionante para o afastamento do local de labor.
Resta claro, portanto, que o acusado não impunham, de forma alguma, qualquer restrição à liberdade de locomoção daqueles que se encontravam laborando na propriedade, tampouco praticavam, de qualquer forma, regime de servidão por dívidas a cercear os obreiros em seu direito ambulatória.
(...)
No caso vertente, é inconteste que foram comprovadas algumas irregularidades trabalhistas; entretanto, apesar de que as condições ofertadas pelos réus não fossem as ideais, não se pode afirmar que os trabalhadores estavam subjugados a condições degradantes de trabalho sob a ótica do direito penal.
De início, cumpre observar que o relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego descreve que as instalações onde habitavam os trabalhadores traduziam condições irregulares (...). Contudo, é notório que tais deficiências logísticas representam muito mais um retrato do local de prestação de serviços (meio rural) e tipo de trabalho realizado (produção de carvão vegetal), em que o empregador deixa de cumprir regras eminentemente trabalhistas, do que o dolo de ter seres humanos subjugados ao seu poder econômico, então reduzidos à condição de escravos.
(...) Diante do referido cenário, eventual ação punitiva, no campo criminal, revela-se desproporcional, verdadeira maximização da norma penal. (sic) (ID 178712540, Págs. 16-32)
Com efeito, o acervo probatório sob o crivo do Judiciário não fora bastante a demonstrar que os trabalhadores eram submetidos a condições degradantes de trabalho, ainda que atestadas algumas irregularidades trabalhistas.
Na hipótese vertente, embora o relatório da fiscalização tenha descrito as condições das instalações utilizadas pelos trabalhadores, registrando que não dispunha de água potável, além da moradia precária, o referido documento, de per si, sem que seja corroborado por outras provas, não se mostra bastante a condenar os Acusados pela prática do delito tipificado pelo artigo 149, caput, do CP.
Os Auditores Fiscais do Trabalho KLINGER FERNANDES SANTOS MOREIRA e MARIA INÊS CHAGAS DE ALMEIDA limitaram-se, em Juízo, a repetir os termos do relatório por eles anteriormente elaborado, assim mencionando na via judicial:
(...) Alojamento precário; não havia instalações sanitárias; não havia água potável; eles se deslocavam para obter água para um local bem distante da, da, do local onde eles estavam loteados; eles uma, uma, tipo uma caixa d’água para pegar água do rio; então, eles iam num tratorzinho, colhiam a água desse local e trazia; se não me engano, eram aproximadamente 5 km do local onde eles estavam; (...) necessidades fisiológicas eram feitas em qualquer lugar; (...); com relação à trabalhista em si, eles não tinham carteira assinada; não havia nenhum controle de jornada de trabalho, de pagamento de salários; nós apuramos que eles não eram pagos; inclusive, nós colhemos termos dos trabalhadores; (...) eram poucos, eram três; e, se não me engano, um deles estava lá há oito meses; (...) não era muito distante da BR, mas eles não tinham salário, dinheiro; eles não tinham nada para se locomover, a não ser um tratorzinho; então, coação/restrição para eles permanecerem no local, não; seria mais uma restrição por falta de recursos para que eles pudessem se deslocar, sair e ir embora; isso eles não tinham; (...) na realidade, eles se sujeitam a essa situação porque é melhor eles receberem alimentação do que estar numa cidade, sem ter o que comer, sem ter onde morar; então, para eles, pela própria condição social em que eles estão vivendo, marginalizados, eles se submetem a essa situação; (...) (sic) (Depoimento da testemunha Klinger Fernandes Santos Moreira em Juízo – ID 178712541)
Por sua vez, a testemunha MARIA INÊS CHAGAS DE ALMEIDA prestou o seguinte relato na via judicial:
(...) eu, pessoalmente, não cheguei a ir até a carvoaria; (...) como nós dividimos o trabalho, os colegas que foram, eles me passaram o material e o coordenador na época, eu era sub-coordenadora, ele me passou o material para eu fazer o relatório; então, eu lembro que o Dr. Luiz Alessandro, Procurador do Trabalho, foi com dois auditores até a carvoaria e eles constataram a situação degradante; era um barraco muito precário nas imediações do forno; os empregadores, segundo as informações dos colegas, tão pobres quanto os trabalhadores; e eles não tinham condições de arcar com os ônus das verbas rescisórias; (...) os colegas deduziram e comentaram (...) que não havia má-fé desses empregadores; a terra era muito pequena (...); então, era um meio de sobrevivência, de subsistência deles também; então, não havia a intenção de mantê-los naquela situação como reféns, como retidos ali em função de alguma coisa; (...) (sic) (Depoimento da testemunha Maria Inês Chagas de Almeida em Juízo – ID 178712542)
Ademais, as supostas vítimas, DEJANES DA CONCEIÇÃO, JOSÉ DIVINO SILVA e JOÃO BATISTA FERREIRA DOS SANTOS, não foram ouvidas em sede judicial.
Do mesmo modo, os Apelados negaram as acusações.
Observa-se, pois, que não fora produzida prova suficiente a demonstrar que os trabalhadores eram submetidos ao “sistema de servidão por dívidas”, assim como não se afigura a possibilidade de afirmar que as condições em que se encontravam aqueles eram degradantes, a ponto de provocar lesão à sua dignidade.
A par disso, para a configuração do delito de redução a condição análoga à de escravo, faz-se imperiosa a comprovação inequívoca do dolo, ou seja, o agente, consciente e voluntariamente, tem a intenção de cometer atos que violem os princípios, regras e normas de convivência pacífica, com esteio no texto constitucional e nas demais normas supraconstitucionais que regulam os direitos fundamentais, mormente, a liberdade individual, corolário do princípio da dignidade humana. Sucede que também não houve prova da presença do elemento subjetivo, como se observa, sobretudo, dos depoimentos dos Auditores Fiscais do Trabalho ouvidos na segunda fase da persecutio criminis.
Desse modo, o contexto fático probatório acima mencionado, aliado ao plexo normativo referente à matéria, impõe a absolvição dos Acusados quanto ao delito acima mencionado, não merecendo reparo, pois, a vergastada sentença.
No ponto, relembre-se que “no sistema acusatório adotado no processo penal brasileiro, é ônus da acusação provar que o denunciado praticou as elementares do tipo penal” (AgRg no AgRg no HC n. 696.867/SC, relator Ministro Olindo Menezes (desembargador Convocado do Trf 1ª Região), Sexta Turma, DJe de 20/5/2022).
Com efeito, "[n]ão se admite, ainda, nenhum tipo de inversão de carga probatória, sendo censuráveis – por violadores da presunção de inocência – todos os dispositivos legais neste sentido. Mas não basta “qualquer” prova, é preciso que seja lícita, buscada, produzida e valorada dentro dos padrões constitucionais e legais (...) "norma probatória: no processo penal não existe “distribuição de cargas probatórias”, como no processo civil, senão mera “atribuição” de carga ao acusador (James Goldschmidt), de modo que a carga da prova é inteiramente do acusador” (from "Direito Processual Penal - 19ª edição 2022" by Aury Celso Lima Lopes Junior).
Enfático, ainda, Guilherme de Souza Nucci para quem: “[c]uidando-se de um desdobramento natural do princípio constitucional da presunção de inocência, todos são inocentes até prova em contrário, produzida pelo Estado-acusação e confirmada por decisão judicial condenatória com trânsito em julgado. Por isso, é de curial relevância afirmar e fazer cumprir que o ônus da prova é da acusação; jamais do acusado” (NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 2020) grifamos.
Afinal, a análise das provas colhidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa não revelam induvidosamente que o caso sob análise configura o crime do artigo 149, caput, do Código Penal.
O Ministério Público Federal deixou de apresentar elementos probatórios convincentes, acima de dúvida razoável, para impor uma condenação. Deve-se aplicar ao caso o princípio in dubio pro reo, mantendo-se a absolvição.
II.II – DO CRIME TIPIFICADO PELO ARTIGO 297, § 4º, DO CP
A denúncia também aponta o cometimento do crime omissivo descrito no artigo 297, § 4º, do Código Penal, cujo teor é o seguinte:
CP, Art. 297. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.
(...)
§ 4º Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços. (Incluído pela Lei n. 9.983, de 2000)
Argumenta o Apelante que a simples omissão da anotação do contrato de trabalho na CTPS já configura o crime do artigo 297, § 4º, do Código Penal, de modo que, não tendo sido feitas as anotações referentes ao vínculo empregatício dos trabalhadores encontrados na fiscalização, o cometimento do referido crime está comprovado.
Entrementes, esta Corte Regional tem adotado o entendimento de que a mera falta de anotação de uma CTPS pelo empregador não é considerada crime, mas tão somente falta administrativa ou trabalhista.
O crime de falsificação do artigo 297 do Código Penal tem por objeto a fé pública expressa na veracidade dos documentos destinados à Previdência Social, o que significa que a caracterização do aludido delito depende da demonstração do dolo de atingir a confiabilidade desses documentos, o que não se evidencia, de pronto, pela pura e simples ausência de anotação da Carteira de Trabalho.
A Lei n. 9.983/2000 não teve como propósito incriminar toda e qualquer falta de anotação da CTPS, pois se assim o quisesse seria expressa ao constituir crime a ausência total de registro do empregado pelo empregador. Não é o que se vê; o que revela que a mens legis é outra. Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente deste Regional:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149, C/C 297, §4º, DO CP. CRIMES DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. OFENSA À ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO. OMISSÃO CTPS. FRUSTRAÇÃO DE DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA. TRABALHO RURAL. PROVIMENTO DA APELAÇÃO. HIPÓTESE DE ABSOLVIÇÃO. ELEMENTO SUBJETIVO NÃO DEMONSTRADO. ACUSADO HOSPITALIZADO À EPOCA DOS FATOS. 1. As provas colhidas demonstram um quadro não ideal quanto às condições gerais de trabalho, porém, insuficiente para configurar o crime de redução dos trabalhadores à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do CP. 2. Diante de toda a estrutura física verificada na fazenda, bem como da harmoniosa alegação de que o acusado, que desenvolvia a administração da fazenda, no curto período em que se deram os fatos, 14 e 23 de julho de 2010, estava hospitalizado em outra unidade da federação, não é razoável pressupor seu dolo de submeter trabalhadores a condições degradantes. Imperioso, pois, afastar a responsabilidade penal, sob pena de se torná-la objetiva. 3. A figura típica do § 4º do art. 297 do Código Penal ("Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do o contrato de trabalho ou de prestação de serviços.") não se identifica, em termos penais, com a simples falta de anotação da CTPS, pois, tendo como objeto jurídico a fé pública nos documentos relacionados com a previdência social, imprescinde do propósito direto de fraudá-la. 4. Apelação provida. (ACR 0008243-30.2013.4.01.4100, JUIZ FEDERAL SAULO JOSÉ CASALI BAHIA (CONV.), TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 09/07/2021 PAG.) (g.n.)
PENAL E PROCESSUAL PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO (ART. 149 DO CP). FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO (ART. 297, §§ 3º, II, E 4º, DO CP). FRUSTRAÇÃO DE DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA (ART. 203 DO CP). ABSOLUTÓRIA. AUSÊNCIA DE PROVAS INEQUÍVOCAS PARA IMPOSIÇÃO DE UMA CONDENAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. 1. Apelação interposta pelo Ministério Público Federal contra a sentença que julgou improcedente a pretensão punitiva estatal e absolveu o réu da prática dos delitos tipificados nos arts. 149, 297, § 4°, e 203, caput, todos do Código Penal, com fulcro no art. 386, III, do Código de Processo Penal. 2. Narra a denúncia que, entre os dias 21/10/2008 a 04/11/2008, auditores do trabalho, Polícia Rodoviária Federal e Ministério Público do Trabalho, deslocaram-se até a Fazenda Geandro, de propriedade do réu, a fim de apurar denúncia ofertada pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, em que relatou a existência de submissão de trabalhadores (seis) a condições de trabalho análogas a de escravo. 3. A denúncia está embasada em fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, realizada no local dos fatos, onde foram colhidos elementos sobre a suposta ocorrência do delito em apreciação. 4. No caso, como bem posto na sentença, de acordo com a prova produzida nos autos, não se pode concluir que houve a prática de trabalho em condições degradantes. Os depoimentos das testemunhas prestados na fase inquisitorial e em juízo não confirmam as condições degradantes de trabalho. Também não ficou comprovada a servidão por dívida, os trabalhos forçados, a jornada exaustiva e a restrição da liberdade de locomoção. 5. O acervo probatório demonstra que ocorreram irregularidades e violações à legislação trabalhista, entretanto, tais irregularidades não são suficientes para caracterizar o crime capitulado no art. 149 do CP, pois não ficou comprovada a presença de uma das elementares do tipo em discussão, qual seja: a prestação de trabalhos forçados; ou a existência de jornada exaustiva; ou a restrição à liberdade de locomoção em razão de dívida com o patrão; ou condições degradantes de trabalho. 6. No tocante ao crime do art. 297, §§ 3º e 4º, do Código Penal (Omissão de dados referentes ao vínculo empregatício dos trabalhadores na CTPS), a jurisprudência desta Corte já assentou que (cito): "A figura típica do § 4º do art. 297 do Código Penal ('Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do o contrato de trabalho ou de prestação de serviços') não se identifica, em termos penais, com a simples falta de anotação da CTPS, pois, tendo como objeto jurídico a fé pública nos documentos relacionados com a previdência social, imprescinde do propósito direto de fraudá-la." (ACR 0008243-30.2013.4.01.4100, JUIZ FEDERAL SAULO JOSÉ CASALI BAHIA (CONV.), TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 09/07/2021). Além disso, de acordo com o acervo probatório, não ficou demonstrado nos autos que o réu tinha o dolo e consciência de fraudar a Previdência Social, ao omitir informações dos trabalhadores em suas CTPS ou documento equivalente. 7. O delito do art. 203 do CP (Frustração de direito assegurado pela lei trabalhista) também não ficou comprovado, pois o acervo probatório não demonstra que tenha havido violência contra pessoa ou fraude, com o intuito de frustrar os direitos dos trabalhadores. Do mesmo modo, não se encontra provado que os trabalhadores tiveram documentos pessoais ou contratuais retidos ou que deveriam usar mercadorias de determinado estabelecimento, impossibilitando assim o desligamento por dívidas dos serviços para os quais foram contratados. 8. O conjunto probatório constante dos autos não oferece elementos de prova hábeis a demonstrar, com a necessária segurança a fundamentar uma condenação, que os acusados teriam praticado ou concorrido, consciente e voluntariamente, para a prática dos delitos em análise. Assim, ante a fragilidade das provas, a sentença absolutória merece ser mantida. 9. Apelação desprovida. (ACR 0002534-51.2012.4.01.3905, DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES, TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 18/04/2022 PAG.) (g.n.)
PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149, DO CP. CRIME DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TIPO MISTO ALTERNATIVO. CONDIÇÕES DEGRADANTES. DEMONSTRAÇÃO PROBATÓRIA INSUFICIENTE. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO. OMISSÃO CTPS. FRUSTRAÇÃO DE DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA. TRABALHO RURAL. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. 1. Segundo a denúncia, foi constatado que o acusado submeteu 11 (onze) funcionários de sua carvoaria a trabalhos em condições degradantes e a jornadas exaustivas de trabalho, restringindo a liberdade de 1 (um) deles em razão de dívida contraída com o empregador. 2. Ainda que as condições de trabalho ofertadas pelo acusado não fossem as ideais, e a despeito das irregularidades descritas, não ficou demonstrado, com suficiência penal, nenhum dos núcleos do art. 149 do Código Penal, os quais exigem relações de trabalho em estado patológico, onde o empregador desrespeita os direitos mais elementares do empregado. 3. As condições de trabalho no meio rural, usualmente braçal, duras pela própria natureza da atividade, não podem, em si mesmas, ser confundidas com redução à condição análoga à de escravo. A condenação somente se justifica em casos graves e extremos, sem razoabilidade, quando a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, alçando-se a níveis gritantes, tudo sob o crivo da prova judicial. 4. A figura típica do § 4º do art. 297 do CP ("Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços.") não se identifica, em termos penais, com a simples falta de anotação da CTPS, pois, tendo como objeto jurídico a fé pública nos documentos relacionados com a previdência social, imprescinde do propósito direto de fraudá-la. 5. Apelação desprovida. (ACR 0004548-54.2011.4.01.3901, DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES, TRF1 - QUARTA TURMA, PJe 04/05/2023 PAG.) (g.n.)
Por conseguinte, a ausência de anotação da CTPS configura, em qualquer circunstância, falta grave contra os direitos sociais do empregado, mas não se ajusta, por si só, à figura típica prevista no § 4º do artigo 297 do Código Penal, já que não é possível extrair da mera falta de registro na Carteira de Trabalho a intenção direta do empregador de fraudar o sistema previdenciário.
No caso em exame, além de não ter sido juntada a cópia das carteiras de trabalho dos trabalhadores, enfraquecendo a materialidade delitiva, o acervo probatório dos autos não revela que os Réus tivessem o dolo de fraudar a Previdência Social, ao omitirem informações dos trabalhadores em suas CTPSs, de modo que a manutenção da sentença, também neste ponto, é medida que se impõe.
Ante o exposto, nega-se provimento à apelação.
É como voto.
Relator

PODER JUDICIÁRIO
Gab. 07 - DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA
Processo Judicial Eletrônico
APELAÇÃO CRIMINAL (417)0003483-87.2012.4.01.3901
Processo referência: 0003483-87.2012.4.01.3901
VOTO REVISOR
A EXMA. SRA. JUÍZA FEDERAL ALESSANDRA GOMES FARIA BALDINI (Revisora Convocada):
Cuida-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal contra sentença prolatada pelo Juízo da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Marabá/PA, que absolveu os réus Manoel Gusmão Moraes e Fernando Ferreira Moares da imputação da prática dos crimes previstos nos artigos 297, § 4º, e 149, ambos do Código Penal.
Após analisar os autos, entendo no sentido de acompanhar o voto do eminente Relator, que nega provimento ao recurso ministerial, pois ausentes provas contundentes acerca do dolo na conduta dos réus.
A materialidade delitiva é indene de dúvidas, como demonstra o Relatório de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, no sentido de que, entre os dias 09 a 21 de setembro de 2009, na Carvoaria do Fernando e do Neo, situada no Assentamento Nossa Senhora Aparecida, no Município de Abel Figueiredo/PA, se constatou que os réus mantinham 03 (três) trabalhadores sem registro na CTPS, com salários atrasados, alojados em barracões precários, sem instalações sanitárias e água potável e sem condições de segurança para o labor.
A despeito da prova da materialidade delitiva, o contexto probatório não é claro quanto ao elemento subjetivo do tipo penal. Ao contrário, os elementos de prova apontam que os réus, proprietários da carvoaria, não ostentavam situação financeira que os possibilitassem atender os direitos trabalhistas dos respectivos empregados.
Os próprios Auditores Fiscais do Trabalho, responsáveis pela fiscalização na propriedade, foram seguros em afirmar que, a despeito das condições degradantes a que estavam submetidos os trabalhadores, todo o contexto indicava a ausência de má-fé por parte dos réus.
Nesse sentido, as declarações prestadas por Klinder Fernandes Santos Moreira e Maria Inês Chagas de Almeida, uníssonos no sentido de que os réus eram pessoas sem qualquer privilégio financeiro e que, igualmente, não tinham recursos para manter os empregados em situação diversa daquela que foi encontrada na respectiva propriedade.
Nesse aspecto, merece destaque o que disse o Auditor Fiscal do Trabalho Klinder Fernandes Santos Moreira, a respeito do pagamento das verbas rescisórias devidas aos trabalhadores. Segundo o depoente, provada impossibilidade de os réus quitarem as verbas rescisórias devidas aos seus empregados, a Companhia Siderurgica do Pará (COSIPAR), destinatária final do carvão produzido na propriedade dos acusados, promoveu a quitação dos valores.
O contexto probatório dos autos, portanto, revela a ausência de má-fé dos réus. Não existiu dolo, no sentido de manter os empregados em situação análoga à de escravo e, tampouco, de deixar de formalizar vínculo empregatício e anotações nas CTPS.
Em verdade, o que se verifica dos autos é que a situação degradante vivenciada pelos trabalhadores, bem como a ausência de anotação nas respectivas CTPS, não foi impingida de forma dolosa pelos réus, mas decorreu da inviabilidade financeira da contratação dos trabalhadores em conformidade com as normas legais.
As provas dos autos não são suficientes para concluir, com a segurança necessária, o elemento subjetivo dos tipos dos previstos nos artigos 297, § 4º, e 149, ambos do Código Penal.
Portanto, deve ser mantida a absolvição dos réus.
Ante o exposto, acompanho o eminente Relator e nego provimento ao recurso do Ministério Público Federal.
É o voto revisor.
Juíza Federal ALESSANDRA GOMES FARIA BALDINI
Relatora Convocada

Tribunal Regional Federal da 1ª Região
Gab. 07 - DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA
Processo Judicial Eletrônico
PROCESSO: 0003483-87.2012.4.01.3901 PROCESSO REFERÊNCIA: 0003483-87.2012.4.01.3901
CLASSE: APELAÇÃO CRIMINAL (417)
POLO ATIVO: Ministério Público Federal (Procuradoria)
POLO PASSIVO:MANOEL GUSMAO MORAES e outros
E M E N T A
PROCESSUAL PENAL E PENAL. APELAÇÃO. CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. SERVIDÃO POR DÍVIDA. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. ABSOLVIÇÃO. RECURSO DESPROVIDO.
1. Trata-se de apelação criminal interposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face da sentença que julgou improcedente a denúncia, absolvendo os Acusados da prática dos delitos tipificados pelos artigos 149, caput, e 297, § 4º, ambos do Código Penal.
2. DA PRELIMINAR DE MÉRITO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. O Plenário do STF, no julgamento do Inquérito 3412/AL, considerou que o crime de redução à condição análoga à de escravo só se configura quando há reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerabilizando a dignidade do indivíduo como ser humano. Desse modo, trabalhos forçados, jornadas exaustivas e trabalhos prestados sob condições degradantes podem aniquilar a capacidade de cognição ou de tomada de decisão, o que importaria na subtração da liberdade ou na captura do livre arbítrio, isto é, em tese, é possível o aniquilamento da liberdade de forma indireta ou reflexa por meio de trabalhos forçados, jornadas exaustivas e degradantes.
3. No caso concreto, não é possível falar-se em relação de trabalho, eis que, consoante consta da preambular acusatória, a fiscalização foi realizada de 9/9/2009 a 21/9/2009 e os trabalhadores que, segundo narra a denúncia, não teriam percebido remuneração, iniciaram, respectivamente, o labor em 4/6/2009 e 18/8/2009. Assim, não foram satisfeitos os elementos objetivos do tipo penal da permanência ou duração e, ainda, de trabalhos forçados, jornadas exaustivas e/ou trabalhos prestados sob condições degradantes de forma intensa, sendo a conduta imputada aos Réus em relação àqueles trabalhadores atípica.
4. DO MÉRITO PROPRIAMENTE DITO. Quanto mérito propriamente dito, não se verifica, do exame dos autos, standard probatório condizente com juízo de certeza que exclua qualquer dúvida razoável quanto à materialidade, autoria delitiva e elemento subjetivo.
5. Como reconhecido pelo Juízo a quo, não foram produzidas provas suficientes acerca da existência de subjugação humana dos trabalhadores em virtude de submissão a jornadas extenuantes de trabalho, sendo que aqueles, inclusive, exerciam suas atribuições sem supervisão. Demais disso, não ficou comprovado que os trabalhadores sofriam restrições de sua liberdade em razão de dívida contraída com os Apelados.
6. Embora o relatório da fiscalização tenha descrito as condições das instalações utilizadas pelos trabalhadores, registrando que não dispunha de água potável, além das condições da moradia oferecida, o referido documento, de per si, sem que seja corroborado por outras provas, não se mostra bastante a condenar os Acusados pela prática do delito tipificado pelo artigo 149, caput, do CP. Ademais, as supostas vítimas não foram ouvidas em sede judicial. Do mesmo modo, os Apelados negaram as acusações.
7. Não fora produzida prova a demonstrar que os trabalhadores eram submetidos ao “sistema de servidão por dívidas”, assim como não se afigura a possibilidade de afirmar que as condições em que se encontravam eram degradantes, a ponto de provocar lesão à sua dignidade.
8. A par disso, para a configuração do delito de redução a condição análoga à de escravo, faz-se imperiosa a comprovação inequívoca do dolo, ou seja, o agente, consciente e voluntariamente, tem a intenção de cometer atos que violem os princípios, regras e normas de convivência pacífica, com esteio no texto constitucional e nas demais normas supraconstitucionais que regulam os direitos fundamentais, mormente, a liberdade individual, corolário do princípio da dignidade humana. Sucede que também não houve prova da presença do elemento subjetivo.
9. O Ministério Público Federal deixou de apresentar elementos probatórios convincentes, acima de dúvida razoável, para impor uma condenação. Deve-se aplicar ao caso o princípio in dubio pro reo, mantendo-se a absolvição.
10. A mera falta de anotação de uma CTPS pelos empregadores não é considerada crime, mas tão somente falta administrativa ou trabalhista, já que não é possível extrair da mera falta de registro na Carteira de Trabalho a intenção direta dos empregadores de fraudar o sistema previdenciário.
11. Não foi possível inferir da prova amealhada o emprego de violência ou fraude para eventual frustração de direito assegurado pela legislação do trabalho.
12. Apelação desprovida.
A C Ó R D Ã O
Decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do voto do Relator.
Brasília,
