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PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
10ª TurmaAPELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5014223-25.2020.4.03.6183 RELATOR: Gab. 34 - DES. FED. MAURICIO KATO APELANTE: IDALISE MANETTI Advogado do(a) APELANTE: MARKO YAN PERKUSICH NOVAES - SP433999-A APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I OTrata-se de apelação interposta por IDALISE MANETTI em face da r. sentença (ID 174942541) que, em ação de procedimento comum ajuizada contra o INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, julgou improcedentes os pedidos de restabelecimento de aposentadoria por idade, declaração de inexigibilidade de débito e indenização por danos morais. O juízo de 1º grau fundamentou a decisão na legitimidade do ato administrativo que suspendeu o benefício da autora, considerando os robustos indícios de fraude na sua concessão. Concluiu que a autora não produziu prova material suficiente para comprovar a regularidade da prestação dos serviços que embasaram as contribuições questionadas. Em suas razões recursais (ID 174942545), a apelante sustenta, em síntese, que compete ao INSS o ônus da prova da ocorrência de fraude e que sua boa-fé é presumida. Requer a reforma da sentença para que a ação seja julgada totalmente procedente, com o restabelecimento do benefício, a declaração de inexigibilidade do débito e a condenação do INSS por danos morais. O INSS, embora devidamente intimado, não apresentou contrarrazões (ID 174942550). É o relatório.
V O T OJuízo de AdmissibilidadeO recurso é tempestivo e preenche os demais pressupostos de admissibilidade, razão pela qual dele conheço. Do Mérito RecursalA controvérsia cinge-se à legalidade do ato administrativo que cessou o benefício de aposentadoria por idade da autora e à eventual obrigação de restituir os valores recebidos. 2.1. Da Manutenção da Cessação do Benefício A apelante sustenta que o ônus de provar a fraude seria exclusivamente do INSS, uma vez que o ato de concessão de sua aposentadoria gozaria de presunção de legitimidade. Com efeito, os atos administrativos são, de fato, dotados de presunção de legitimidade. Todavia, tal presunção é relativa, e pode ser afastada diante de prova em contrário. No caso dos autos, a presunção inicial de legalidade do ato concessório foi abalada por um conjunto de indícios de fraude de notável gravidade, apurados pelo INSS em procedimento administrativo que garantiu o contraditório e a ampla defesa. O procedimento revisional (ID 216650176) não se baseou em meras conjecturas, mas em elementos fáticos concretos e objetivos: a inserção no CNIS de 10 anos e 11 meses de contribuições como contribuinte individual, todas no teto previdenciário, por meio de GFIPs transmitidas de forma extemporânea e concentradas em período muito próximo à DER (15/09/2017) e à concessão (06/12/2017). Tais fatos, associados ao contexto da "Operação Cronocinese" da Polícia Federal, que investigou o mesmo modus operandi fraudulento, constituem mais do que simples indícios; formam um robusto conjunto probatório que justifica a fundada suspeita de ilegalidade e impõe a revisão do ato. Diante de um quadro de suspeita tão bem delineado, caberia à segurada comprovar a regularidade do tempo de contribuição. Não se trata de exigir a produção de prova negativa ou diabólica, mas de requerer a demonstração da veracidade dos fatos que alegou e que deram origem ao seu direito. Cabia à autora, portanto, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, apresentar prova material idônea e contemporânea da efetiva prestação dos serviços como autônoma para a empresa SKY BLUE COMÉRCIO DE BEBIDAS E DEDETIZADORA LTDA durante o longo período de 01/10/2006 a 31/08/2017, bem como da regularidade do recebimento das remunerações declaradas. Contudo, a documentação apresentada pela segurada (recibos de pagamento simples, IDs 174942371 e ss.) é frágil e não se mostra suficiente para tal fim, pois não possui a contemporaneidade necessária para corroborar uma relação de trabalho contínua por mais de uma década. Não foram trazidos aos autos extratos bancários da época, declarações de imposto de renda ou quaisquer outros documentos que pudessem conferir verossimilhança às suas alegações. Assim, não tendo a autora se desincumbido do ônus de comprovar a regularidade e a veracidade dos vínculos e contribuições que embasaram a concessão de seu benefício, a manutenção do ato administrativo que o cessou é medida que se impõe. 2.2. Da Irrepetibilidade dos Valores Recebidos de Boa-fé Ainda que seja lícita a cessação do benefício, a questão da devolução dos valores recebidos demanda análise distinta, focada no elemento subjetivo da conduta da segurada e na proteção da confiança e da segurança jurídica. É princípio geral de direito, universalmente aceito e consagrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, cristalizado no Tema 243, a parêmia milenar de que"a boa-fé se presume, a má-fé se prova". No âmbito previdenciário, essa premissa é aplicada com especial rigor, dado o caráter alimentar das prestações. A devolução de valores recebidos a título de benefício previdenciário só é cabível quando comprovada inequivocamente a má-fé do segurado, ônus probatório que recai integralmente sobre a Administração Pública, não podendo ser transferido ao beneficiário. Tal entendimento se alinha com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: "Este Supremo Tribunal firmou jurisprudência no sentido da desnecessidade de serem devolvidos valores recebidos de boa-fé por aposentados ou pensionistas, decorrentes de decisões judiciais ou administrativas proferidas em concessão ou revisão de benefícios previdenciários ou assistenciais mantidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS." (STF, RE 1.310.781, Rel. Min. Carmen Lúcia, decisão monocrática, PJe Divulgado em 24/11/2023). No caso concreto, o próprio INSS, no relatório que concluiu o processo administrativo de apuração (ID 216650176, pág. 156, item 9.1), reconheceu expressamente a ausência de provas para afastar a presunção de boa-fé da segurada, ao afirmar:"De fato, com os dados que temos no processo administrativo não temos elementos para afirmar que a interessada não agiu de boa-fé...". Ora, se a própria autarquia admite não ter conseguido comprovar a má-fé da beneficiária, não pode o Judiciário presumi-la. A fraude objetiva, perpetrada por terceiros para a inserção de dados no sistema, não se confunde com a má-fé subjetiva da segurada, que não teve sua participação dolosa demonstrada nos autos. Portanto, em estrita observância ao princípio da presunção de boa-fé e diante da confissão administrativa do INSS quanto à ausência de provas em contrário, os valores de caráter alimentar recebidos pela autora até a data da cessação do benefício são irrepetíveis. Neste ponto, a sentença merece reforma para que seja declarada a inexigibilidade do débito. 2.3. Da Indenização por Danos Morais Sendo lícita a cessação do benefício, por se tratar de regular exercício do poder de autotutela da Administração, não há ato ilícito a ensejar reparação por danos morais. Dos Ônus SucumbenciaisConsiderando o resultado do julgamento, em que a autora sagrou-se vencedora no pedido de inexigibilidade do débito, mas foi vencida nos pedidos de restabelecimento do benefício e de indenização por danos morais, reconheço a sucumbência recíproca, nos termos do art. 86 do CPC, suspensa, contudo, a exigibilidade em relação à parte autora, termos do art. 98, § 3º, do CPC. Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO, apenas para determinar a irrepetibilidade dos valores indevidamente recebidos. É o voto. E M E N T AEmenta: PREVIDENCIÁRIO. APELAÇÃO CÍVEL. RESTABELECIMENTO DE APOSENTADORIA. BENEFÍCIO CESSADO EM RAZÃO DE INDÍCIOS DE FRAUDE. AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA. LEGALIDADE DA CESSAÇÃO. DEVOLUÇÃO DE VALORES. BOA-FÉ DO SEGURADO PRESUMIDA. MÁ-FÉ NÃO COMPROVADA PELO INSS. IRREPETIBILIDADE DAS PARCELAS. RECURSO DA PARTE AUTORA PARCIALMENTE PROVIDO. I. Caso em exame Apelação interposta pela segurada em face de sentença que julgou improcedente o pedido de restabelecimento de aposentadoria por idade e manteve a obrigação de devolução dos valores recebidos, após cessação do benefício por indícios de fraude. II. Questão em discussão Análise da legalidade do ato de cessação do benefício e da obrigatoriedade de devolução dos valores recebidos, considerando a presunção de boa-fé da segurada e o ônus da prova da má-fé a cargo do INSS. III. Razões de decidir A Administração Pública possui o poder-dever de anular seus próprios atos quando eivados de ilegalidade (Súmula 473/STF). A existência de robustos indícios de fraude objetiva na concessão do benefício torna lícita a sua cessação, após regular processo administrativo. A devolução de valores recebidos a título de benefício previdenciário exige a comprovação da má-fé do segurado, ônus probatório que incumbe ao INSS. A boa-fé é presumida. Tendo a própria autarquia admitido, em sede administrativa, a ausência de elementos para comprovar a má-fé da segurada, e não produzindo prova nesse sentido nos autos judiciais, são irrepetíveis as verbas de caráter alimentar recebidas até a cessação do benefício. IV. Dispositivo e tese Apelação da parte autora parcialmente provida para declarar a inexigibilidade do débito. A C Ó R D Ã OVistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Décima Turma, por unanimidade, decidiu dar parcial provimento à apelação da parte autora., nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
MAURICIO KATO
Desembargador Federal |
