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PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
9ª TurmaAPELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000977-33.2024.4.03.6114 RELATOR: Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN APELANTE: TAIS CRISTINA DOS SANTOS Advogado do(a) APELANTE: AILTON DE FARIA - SP437271-A APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, MARIA APARECIDA COSTA LARA Advogados do(a) APELADO: AMANDA DOS SANTOS SILVA - SP375904-A, CESAR HENRIQUE POLICASTRO CHASSEREAUX - SP346909-A, JHONNY BARBOSA FERREIRA - SP344493-A OUTROS PARTICIPANTES: ASSISTENTE: MARIA APARECIDA COSTA LARA R E L A T Ó R I OTrata-se de apelação interposta em ação ajuizada por TAIS CRISTINA DOS SANTOS em face do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS e de MARIA APARECIDA COSTA LARA, objetivando o benefício de pensão por morte, em decorrência do falecimento de Esnoque Lara, ocorrido em 03 de julho de 2020, com quem alega haver convivido em união estável. A r. sentença recorrida julgou improcedente o pedido, ao reputar não configurada a união estável supostamente havida entre a parte autora e o falecido segurado (id. 337433732 – p. 1/3). Em suas razões recursais, pugna a parte autora pela reforma da sentença, com o decreto de procedência do pleito. Aduz ter logrado comprovar os requisitos necessários à concessão do benefício, salientando que as provas documentais carreadas aos autos, as quais foram corroboradas pelas testemunhas, evidenciam o convívio marital de forma pública e duradoura, por cerca de 22 anos, o qual se prorrogou até a data do falecimento do segurado. Sustenta que o de cujus era separado de fato da corré, o que ilide qualquer vedação legal à configuração da união estável (id. 337433735 – p. 1/6). Contrarrazões da corré (id. 337433736 – p. 1/10). Devidamente processado o recurso, subiram os autos a esta instância para decisão. É o relatório. serg
V O T OTempestivo o recurso e respeitados os demais pressupostos de admissibilidade recursais, passo ao exame da matéria objeto de devolução. DA PENSÃO POR MORTE O primeiro diploma legal brasileiro a prever um benefício contra as consequências da morte foi a Constituição Federal de 1946, em seu art. 157, XVI. Após, sobreveio a Lei n.º 3.807, de 26 de agosto de 1960 (Lei Orgânica da Previdência Social), que estabelecia como requisito para a concessão da pensão o recolhimento de pelo menos 12 (doze) contribuições mensais e fixava o valor a ser recebido em uma parcela familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria que o segurado percebia ou daquela a que teria direito, e tantas parcelas iguais, cada uma, a 10% (dez por cento) por segurados, até o máximo de 5 (cinco). A Constituição Federal de 1967 e sua Emenda Constitucional n.º 1/69, também disciplinaram o benefício de pensão por morte, sem alterar, no entanto, a sua essência. A atual Carta Magna estabeleceu em seu art. 201, V, que: "A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei a: V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º." A Lei n.º 8.213, de 24 de julho de 1991 e seu Decreto Regulamentar n.º 3048, de 06 de maio de 1999, disciplinaram em seus arts. 74 a 79 e 105 a 115, respectivamente, o benefício de pensão por morte, que é aquele concedido aos dependentes do segurado, em atividade ou aposentado, em decorrência de seu falecimento ou da declaração judicial de sua morte presumida. Depreende-se do conceito acima mencionado que para a concessão da pensão por morte é necessário o preenchimento de dois requisitos: ostentar o falecido a qualidade de segurado da Previdência Social, na data do óbito e possuir dependentes incluídos no rol do art. 16 da supracitada lei. A qualidade de segurado, segundo Wladimir Novaes Martinez, é a: "denominação legal indicativa da condição jurídica de filiado, inscrito ou genericamente atendido pela previdência social. Quer dizer o estado do assegurado, cujos riscos estão previdenciariamente cobertos." (Curso de Direito Previdenciário. Tomo II - Previdência Social. São Paulo: LTr, 1998, p. 594). Mantém a qualidade de segurado aquele que, mesmo sem recolher as contribuições, conserve todos os direitos perante a Previdência Social, durante um período variável, a que a doutrina denominou "período de graça", conforme o tipo de segurado e a sua situação, nos termos do art. 15 da Lei de Benefícios, a saber: "Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições: I - sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício; II - até 12 (doze) meses após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração; III - até 12 (doze) meses após cessar a segregação, o segurado acometido de doença de segregação compulsória; IV - até 12 (doze) meses após o livramento, o segurado retido ou recluso; V - até 3 (três) meses após o licenciamento, o segurado incorporado às Forças Armadas para prestar serviço militar; VI - até (seis) meses após a cessação das contribuições, o segurado facultativo." É de se observar, ainda, que o § 1º do supracitado artigo prorroga por 24 (vinte e quatro) meses tal período de graça aos que contribuíram por mais de 120 (cento e vinte) meses. Em ambas as situações, restando comprovado o desemprego do segurado perante o órgão do Ministério do Trabalho ou da Previdência Social, os períodos serão acrescidos de mais 12 (doze) meses. A comprovação do desemprego pode se dar por qualquer forma, até mesmo oral, ou pela percepção de seguro-desemprego. Convém esclarecer que, conforme disposição inserta no § 4º do art. 15 da Lei nº 8.213/91, c.c. o art. 14 do Decreto Regulamentar nº 3.048/99, com a nova redação dada pelo Decreto nº 4.032/01, a perda da qualidade de segurado ocorrerá no 16º dia do segundo mês seguinte ao término do prazo fixado no art. 30, II, da Lei nº 8.212/91 para recolhimento da contribuição, acarretando, consequentemente, a caducidade de todos os direitos previdenciários. Conforme já referido, a condição de dependentes é verificada com amparo no rol estabelecido pelo art. 16 da Lei de Benefícios, segundo o qual possuem dependência econômica presumida o cônjuge, o(a) companheiro(a) e o filho menor de 21 (vinte e um) anos, não emancipado ou inválido. Também ostentam a condição de dependente do segurado, desde que comprovada a dependência econômica, os pais, e o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido. De acordo com o § 2º do supramencionado artigo, o enteado e o menor tutelado são equiparados aos filhos mediante declaração do segurado e desde que comprovem a dependência econômica. DO CASO DOS AUTOS O óbito de Esnoque Lara, ocorrido em 03 de julho de 2020, está demonstrado pela respectiva Certidão (id. 337433507 – p. 10). Também restou superado o requisito da qualidade de segurado, uma vez que o de cujus era titular de aposentadoria especial (NB 46/1026544588), desde 01 de julho de 1996, cuja cessação decorreu de seu falecimento. Na seara administrativa, a pensão por morte (NB 21/190.641.306-9) foi deferida, exclusivamente, em prol de Maria Aparecida Costa Lara, na condição de cônjuge supérstite do falecido segurado (id. 337433705 – p. 28). Citada a integrar a lide, em litisconsórcio passivo necessário, Maria Aparecida Costa Lara contestou o pedido, sustentando sua dependência exclusiva, na condição de esposa do falecido segurado (id. 337433684 – p. 1/12). No Código Civil, a união estável está disciplinada pelo artigo 1723, segundo o qual “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. No mesmo sentido, é o artigo 1º da Lei 9.278/96, estabelecendo que “é reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”. Após a introdução no ordenamento jurídico da Medida Provisória n. 871/2019, publicada em 18/01/2019, posteriormente convertida na Lei n. 13.846, de 18 de julho de 2019, não mais é possível o reconhecimento da união estável com base na jurisprudência que preconizava ser bastante a prova testemunhal. Desde então, o art. 16 da Lei nº 8.213/91 sofreu alteração e passou a exigir início de prova material que comprove união estável por pelo menos 2 (dois) anos imediatamente anteriores ao óbito do segurado. A fim de comprovar a união estável havida com o falecido segurado, a autora carreou aos autos documentos a indicar a identidade de endereço de ambos, situado na Rua José Dias Donadelli, nº 710, em São Bernado do Campo – SP, dentre os quais merecem destaque: - Pedido de venda efetuado pelo segurado, perante o estabelecido comercial Lojas Bahia, em 29 de dezembro de 2004; - Nota Fiscal de venda a consumidor, emitida pelas Casas Bahia, em nome do segurado, em 31 de dezembro de 2004, da qual consta a assinatura de Tais Cristina dos Santos como recebedora da mercadoria; - Nota Fiscal de venda a consumidor, emitida por Ponto Frio, em nome do segurado, em 27 de agosto de 2006, atinente à compra de uma lavadora de roupas; - Pedido de venda efetuado pelo segurado, perante o estabelecido comercial Lojas Bahia, em 14 de julho de 2007; - Nota Fiscal de venda a consumidor, emitida por Casas Bahia, em nome do segurado, em 21 de julho de 2007; - Documento auxiliar da nota fiscal – DANFE, emitido por Wal Mart, em nome do segurado, em 05 de fevereiro de 2013; - Pedido de venda efetuado pelo segurado, perante o estabelecido comercial C & C, em 01 de março de 2014; - Documento auxiliar da nota fiscal – DANFE, emitido por Magazine Luiza, em nome do segurado, em 16 de agosto de 2014. As diversas fotografias que instruem a exordial retratam a parte autora e o segurado em ambiente familiar e, conquanto não estejam datadas, revelam a cronologia do relacionamento, ao longo dos anos (id. 337433507 – p. 24/41). Por outro lado, na certidão de óbito, a qual teve como declarante um dos filhos do segurado, havido com a corré (Igor Lara), restou consignado que Esnoque Lara contava 67 anos, era casado com Maira Aparecida Costa Lara, de cuja relação marital deixava três filhos. No mesmo documento deixou consignado que o de cujus tinha por endereço a Rua José Gomes Moreno, nº 275, no Jardim Terra Nova II, em São Bernardo do Campo – SP. Outros documentos apresentados em contestação pela corré constituem indicativo de que a relação marital se estendeu de forma ininterrupta até a data do falecimento. Nesse sentido, a certidão de casamento, atinente ao matrimônio celebrado em 07 de agosto de 1982, não contém qualquer averbação acerca de eventual separação ou divórcio (id. 337433688 – p. 1). Nas declarações de imposto de renda, apresentadas à Receita Federal pelo contribuinte Esnoque Lara, atinentes aos exercícios fiscais de 2018 a 2020, apenas o nome da corré (Maria Aparecida Costa Lara) foi inserido no campo destinado à declaração dos dependentes. Dos mesmos documentos, se verifica a identidade de endereços do segurado e de sua esposa: Rua José Gomes Moreno, nº 275, em São Bernardo do Campo – SP (id. 337433700 – p. 1/7; 337433701 – p. 1/7; 337433702 – p. 1/7). A fatura de energia elétrica, emitida pela empresa Enel S/A., em nome do segurado, atinente ao mês de março de 2020, também o vincula ao endereço da corré: Rua José Gomes Moreno, nº 275, em São Bernardo do Campo – SP (id. 337433696 – p. 1). O contrato de serviços hospitalares, celebrado entre a corré Maria Aparecida Costa Lara e o Hospital São Luiz da Rede Dor, em 13 de junho de 2019, a vincula ao endereço do marido (Rua José Gomes Moreno, nº 275, em São Bernardo do Campo – SP). Ainda instruem os autos os documentos atinentes aos filhos havidos pela corré e o segurado, na constância do casamento, nascidos em 18 de março de 1982, 08 de dezembro de 1985 e 07 de abril de 1989. Em audiência realizada em 07 de maio de 2025, foram colhidos os depoimentos pessoais da parte autora e da corré. A autora Tais Cristina dos Santos esclareceu ter conhecido o segurado em 1994, ocasião em que começaram a namorar, quando ambos eram funcionários de uma mesma empresa. Na sequência, formalizou seu divórcio com o marido anterior. Por volta de 1997, Esnoque Lara construiu uma casa para a autora, onde antes esta possuía um barraco. Logo na sequência, ele se mudou para o local e passaram a conviver juntos. Admitiu que, às vezes, ele deixava a casa onde moravam e retornava à casa da esposa, a fim de resolver problemas familiares relacionados aos filhos, onde pernoitava por no máximo duas noites seguidas. Ele prometia que iria se separar da esposa, mas justificava que ela era como uma irmã para ele, em termos de relacionamento conjugal. Esclareceu que não tiveram filhos, mas que ele teve três filhos havidos com a corré. Acrescentou que nos dias que precederam o falecimento, Esnoque constatou que tinha contraído o vírus da Covid-19, porque falava que estava sem paladar. Na sequência, ele procurou um hospital para fazer exames, ocasião na qual lhe enviou uma mensagem, dizendo que estava tudo bem. No entanto, seu quadro se agravou, ele acabou sendo entubado e faleceu dias depois. O filho da corré (Igor) foi quem se encarregou de todos os trâmites relacionados ao falecimento e à cremação. Em seu depoimento pessoal, a corré, Maria Aparecida Costa Lara, afirmou ter se casado com o segurado, em 1982. Desde então, conviveram maritalmente de forma ininterrupta, sem que nunca tivesse havido qualquer tipo de separação. Admitiu ter conhecido a autora, porque em certa ocasião, há muitos anos, quando estave adoentada, ele a levou na residência da autora, alegando que ela era faxineira na mesma empresa onde ele trabalhava. Em outras ocasiões, ele voltou à casa para fazer faxinas. Esclareceu que o esposo dizia que tinha amizade com a autora, justificando que se tratava de uma família muito pobre, e ele a ajudava. Quando foi acometido por Codid-19, nos dias imediatamente anteriores ao óbito, Esnoque estava em casa e foi levado ao Hospital Assunção pelo filho do casal, de nome Hugo. Na primeira vez, ele não foi internado, mas como seu quadro se agravou, ele retornou ao hospital e acabou sendo entubado. Decorridos cerca de quarenta dias desde a internação, Esnoque faleceu. Os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela parte autora confirmam que ela conviveu maritalmente com o segurado, durante longo período, o qual se estendeu até a data do falecimento, se não vejamos: A testemunha Maria José dos Santos afirmou ter conhecido a autora há cerca de vinte anos, ocasião em que ela morava com os pais, na mesma rua que a depoente. Quando ela conheceu o companheiro “Lara”, ele construiu uma casa para ela, a qual também estava situada na mesma rua onde a depoente morava. Na casa, a autora e “Lara” passaram a conviver maritalmente. Não frequentava casa da autora, mas às vezes passava e a cumprimentava, quando ele estava juntamente com o companheiro. Sabe que a autora e “Lara” não tiveram filhos, mas que ela teve quatro filhos de um relacionamento anterior. Nunca soube de separação, esclarecendo que eles estiveram juntos até a data do falecimento. A depoente Carolina Gonçalves Verçoza dos Santos afirmou conhecer a autora, desde a infância, já que moravam na mesma rua e tinha amizade com a filha dela. Nas ocasiões em que frequentava a casa, percebia a presença do marido dela no local, conhecido por “Lara”. Sempre via “Lara” no local e nunca soube que tivesse havido separação, esclarecendo que ele faleceu na época da pandemia de Covid-19. Nunca tinha ouvido dizer que “Lara” fosse casado com outra mulher, não conhecendo a pessoa da corré. Da mesma forma, as testemunhas arroladas pela corré afirmaram que ela era casada com o segurado e terem vivenciado que eles moravam com os três filhos, na mesma casa, sem que nunca tivesse havido separação até a data do óbito. A testemunha Andréia Torres de Albuquerque Devido afirmou ter conhecido a corré, por volta do ano 2000, porque naquela ocasião sua irmã era vizinha dela, sendo que, depois a própria depoente passou a ocupar a referida casa e se tornou vizinha dela e da família. Afirmou ter vivenciado que Maria Aparecida era casada com Esnoque Lara, com quem teve três filhos, citando os nomes deles. Quando o conheceu, ele já era aposentado, enquanto a esposa não exercia atividade laborativa remunerada e cuidava apenas da casa e dos filhos. Esclareceu não conhecer a autora Tais e saber que Esnoque faleceu no início da pandemia de Covid-19, em 2020. Naquela ocasião, ele ainda era seu vizinho, pois morava no local com Maria Aparecida e se referia a ela como sendo esposa. Acrescentou que nunca soube de separação e ter vivenciado que o casal esteve junto até a data em que ele faleceu. A depoente Maria Graça Gonçalves Oura afirmou conhecer a corré desde 1990, quando passou a ser sua cabeleireira. No início a atendia em seu salão, depois passou a atendê-la na casa dela, razão porque frequentava a casa da família. Quando a conheceu, ela já era casada com Esnoque, enquanto os três filhos do casal já eram nascidos. Ele trabalhava em uma grande empresa, enquanto ela se dedicava ao trabalho da casa. Em algumas vezes em que estave na casa, se deparava com Esnoque Lara chegando do trabalho. Ele sempre a tratou com respeito e nunca ouviu falar sobre separação, tendo vivenciado que estiveram juntos até a data em que ele faleceu. Esclareceu que, ao tempo do óbito, foi até a casa de Maria Aparecida para fazer-lhe as unhas, quando ficou sabendo que o marido dela não estava passando bem. Na semana seguinte, quando retornou a casa, já soube que ele havia sido internado. Na sequência, veio a notícia de que ele tinha falecido de Covid-19. Maria de Lourdes do Valle Xavier afirmou ter conhecido a corré há cerca de vinte anos, quando começou a vender-lhe perfumes e cosméticos, visitando-a em casa. Naquela ocasião, percebeu que ela era casada e tinha três filhos. Em algumas ocasiões, quando compareceu à casa da autora se deparou com o marido dela no local. Nunca soube que eles pretendessem se separar. Soube que ele faleceu na época da Covid-19, ocasião em que ainda morava com a corré. O que se infere do acervo probatório é que, conquanto mantivesse um relacionamento duradouro com a parte autora, o segurado nunca abandonou sua esposa, convivendo com ambas, de forma concomitante. Com o julgamento do leading case RE 1045273/SE, o Supremo Tribunal Federal, no Tema nº 529, analisou a possibilidade de reconhecimento jurídico de casamento e união estável concomitantes, com o consequente rateio de pensão por morte, fixando a seguinte tese: “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalva a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro” (Plenário, Sessão Virtual de 11.12.2020 a 18.12.2020). Na análise do RE 1045273/SE, assim decidiu o Colendo Supremo Tribunal Federal: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 529. CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. RATEIO ENTRE COMPANHEIRA E COMPANHEIRO, DE UNIÕES ESTÁVEIS CONCOMITANTES. IMPOSSIBILIDADE. 1. A questão constitucional em jogo neste precedente com repercussão geral reconhecida é a possibilidade de reconhecimento, pelo Estado, da coexistência de duas uniões estáveis paralelas, e o consequente rateio da pensão por morte entre os companheiros sobreviventes - independentemente de serem relações hétero ou homoafetivas. 2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL tem precedentes no sentido da impossibilidade de reconhecimento de união estável, em que um dos conviventes estivesse paralelamente envolvido em casamento ainda válido, sendo tal relação enquadrada no art. 1.727 do Código Civil, que se reporta à figura da relação concubinária (as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato ). 3. É vedado o reconhecimento de uma segunda união estável, independentemente de ser hétero ou homoafetiva, quando demonstrada a existência de uma primeira união estável, juridicamente reconhecida. Em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, movidos pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e da união estável, subsistem em nosso ordenamento jurídico constitucional os ideais monogâmicos, para o reconhecimento do casamento e da união estável, sendo, inclusive, previsto como deveres aos cônjuges, com substrato no regime monogâmico, a exigência de fidelidade recíproca durante o pacto nupcial (art. 1.566, I, do Código Civil). 4. A existência de uma declaração judicial de existência de união estável é, por si só, óbice ao reconhecimento de uma outra união paralelamente estabelecida por um dos companheiros durante o mesmo período, uma vez que o artigo 226, § 3º, da Constituição se esteia no princípio de exclusividade ou de monogamia, como requisito para o reconhecimento jurídico desse tipo de relação afetiva inserta no mosaico familiar atual, independentemente de se tratar de relacionamentos hétero ou homoafetivos. 5. Tese para fins de repercussão geral: “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”. 6. Recurso extraordinário a que se nega provimento". (STF, Tribunal Pleno, RE 1045273/SE, Relator Ministro Alexandre de Moraes, julgamento 21/12/2020, publicação 09/04/2021). O concubinato e a união estável não se confundem e produzem efeitos jurídicos diferentes, especialmente no Direito de Família, no Direito das Sucessões e no Direito Previdenciário. O concubinato é a união entre homem e mulher impedidos para o casamento, de acordo com o art. 1.727 do Código Civil: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”. O § 3º do artigo 16 da Lei nº 8.213/91 dispõe que “considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal”. O artigo 226, § 3º, da Constituição Federal preceitua que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Portanto, a legislação previdenciária expressamente segue o preceito constitucional, não se pode reconhecer a dependência de pessoa impedida de casar com o segurado, tampouco conferir proteção à situação ilegal de concubinato, o que foi reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal, no Tema nº 529. Cumpre salientar a ressalva mencionada no Tema nº 529 do STF, na hipótese de estar configurada a separação de fato, replicando os dispositivos do Código Civil, in verbis: “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1 A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente” (grifei). Na situação vertente não foi comprovada a separação de fato entre a corré e o segurado falecido, o que a torna única titular do benefício de pensão por morte. Nesse contexto, torna-se inviável o acolhimento do pedido inicial, sendo de rigor a manutenção do decreto de improcedência do pleito. Em razão da sucumbência recursal, majoro em 100 % os honorários fixados em sentença, observando-se o limite máximo de 20% sobre o valor da causa, a teor dos §§ 2º e 11 do art. 85 do CPC/2015, ficando suspensa sua execução, em razão de ser beneficiário da Justiça Gratuita, enquanto persistir sua condição de miserabilidade. DISPOSITIVOAnte o exposto, nego provimento à apelação da parte autora, mantendo o decreto de improcedência do pleito e, em razão da sucumbência recursal, majoro em 100% os honorários fixados em sentença, observando-se o limite máximo de 20% sobre o valor da causa, a teor dos §§ 2º e 11 do art. 85 do CPC/2015. É o voto.E M E N T A
Ementa: DIREITO PREVIDENCIÁRIO. APELAÇÃO CÍVEL. PENSÃO POR MORTE. UNIÃO ESTÁVEL NÃO RECONHECIDA. EXISTÊNCIA DE CASAMENTO VÁLIDO E NÃO DESFEITO. CONCUBINATO. IMPOSSIBILIDADE DE RATEIO DO BENEFÍCIO. RECURSO DESPROVIDO. I. Caso em exame 1. Apelação interposta pela parte autora contra sentença que julgou improcedente pedido de pensão por morte, a qual não reconheceu configurada a união estável, em virtude de o segurado ter sido casado com a corré até a data de seu falecimento. 2. A autora alega convivência pública, contínua e duradoura com o falecido por cerca de 22 anos, sustentando que o relacionamento configurou união estável e que o segurado se encontrava separado de fato da corré. II. Questão em discussão 3. A questão em discussão consiste em saber se é possível o reconhecimento de união estável entre a autora e o falecido segurado, para fins previdenciários, quando comprovada a existência de casamento válido e não desfeito com terceira pessoa. III. Razões de decidir 4. O art. 16 da Lei nº 8.213/1991 exige início de prova material da união estável por, no mínimo, dois anos anteriores ao óbito, vedando o reconhecimento apenas com base em prova testemunhal. 5. As provas colacionadas aos autos demonstram coexistência de vínculos afetivos: o falecido manteve relacionamento com a autora, mas permaneceu convivendo com a esposa, sem comprovação de separação de fato. 6. Nos termos do Tema 529 do STF (RE 1045273/SE), a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude do dever de fidelidade e do princípio da monogamia. 7. Ausente comprovação de separação de fato do segurado em relação à corré, o relacionamento paralelo com a autora caracteriza concubinato, que não gera efeitos previdenciários. IV. Dispositivo e tese 8. Recurso desprovido. "Tese de julgamento": “1. A coexistência de casamento válido e relação paralela impede o reconhecimento de união estável, em observância ao princípio da monogamia; 2. O concubinato não gera direito à pensão por morte.” "Dispositivos relevantes citados": CF/1988, art. 226, § 3º; CC, arts. 1.521, 1.723 e 1.727; Lei nº 8.213/1991, art. 16. "Jurisprudência relevante citada": STF, RE 1045273/SE, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário, j. 21.12.2020, DJe 09.04.2021. A C Ó R D Ã OVistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Nona Turma, por unanimidade, decidiu negar provimento à apelação da parte autora, mantendo o decreto de improcedência do pleito, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
GILBERTO JORDAN
Relator | ||||||
