Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP
5176505-08.2020.4.03.9999
Relator(a)
Desembargador Federal NEWTON DE LUCCA
Órgão Julgador
8ª Turma
Data do Julgamento
16/09/2020
Data da Publicação/Fonte
Intimação via sistema DATA: 18/09/2020
Ementa
E M E N T A
ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO PREVISTO NO ART. 203, INC. V, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA E MISERABILIDADE DEMONSTRADAS.
TERMO INICIAL. TUTELA DE URGÊNCIA MANTIDA.
I- O benefício previsto no art. 203, inc. V, da CF é devido à pessoa portadora de deficiência ou
considerada idosa e, em ambas as hipóteses, que não possua meios de prover a própria
subsistência ou de tê-la provida por sua família.
II- Para a verificação da incapacidade, foi realizada perícia médica judicial.
Afirmou o esculápio encarregado do exame, com base no exame clínico e análise da
documentação médica dos autos, que o periciando de 2 anos (nascido em 24/2/17) é portador de
sequelas neurológicas definidas como hidrocefalia discreta diagnosticada por ultrassonografia
transfontanela em 6/9/17, e distúrbio irritativo difuso, conforme exame de eletroencefalograma
clínico digital, em 28/8/18. Apresenta retardo no desenvolvimento motor, pois ainda não anda e
não consegue sentar-se sozinho, sendo totalmente dependente dos pais. Concluiu pela
constatação da incapacidade total e permanente para desenvolver-se sem estimulação
adequada. Esclareceu o expert que devido à pouca idade, não há possibilidade de "definir se ele
terá condições de frequentar escolas, de desenvolver suas habilidades cognitivas e sociais, e se
tornar um elemento produtivo na sociedade. Ele pode ser reavaliado dentro de 4 anos para
verificar a evolução de seu desenvolvimento psicomotor social." (fls. 59 – id. 125540783 – pág. 6).
Assim, comprovado o requisito da deficiência desde a data do nascimento.
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
III- Pela análise de todo o conjunto probatório dos autos, não se restringindo ao critério da renda
mensal per capita, o requisito da miserabilidade encontra-se demonstrado no presente feito. O
estudo social revela que o autor de 2 anos reside com a genitora Carolina Cristina Silva Ignácio,
de 29 anos, desempregada e cuidando dos afazeres domésticos, e Paulo Natanael Ignácio, de 35
anos, em imóvel financiado, construído com piso frio e forro de laje, constituído por quatro
cômodos, sendo 2 quartos, sala e cozinha conjugados e banheiro, guarnecido por mobiliário e
eletrodomésticos simples. A família possui um automóvel de marca Ford Del Rey a álcool, ano de
1985, porém inutilizado (quebrado). Segundo relato da genitora à assistente social, o autor faz
uso de órteses, dieta especial, em razão do diagnóstico de hidrocefalia e deficiência visual,
realizando tratamento médico no Hospital das Clínicas em Ribeirão Preto/SP e no ambulatório de
saúde auditiva na cidade de Franca, sendo acompanhado, também, pela equipe técnica
multiprofissional do Centro Especializado em Reabilitação (CER) no município de Morro
Agudo/SP. A renda familiar é proveniente da remuneração recebida pelo genitor na função de
soldador I, "no valor bruto de R$ 1.621,48 e líquido de R$ 876,27 por mês, conforme verificamos
(da) CTPS nº 011980 série 00270-SP, data de emissão em 09/04/2019 e holerite referente a
julho/2019" (fls. 73 – id. 125540806 – pág. 3). Os gastos mensais totalizam R$ 1.240,45, sendo
R$ 15,86 em água (inadimplente dois meses), R$ 90,71 em energia elétrica, R$ 18,98 em
IPTU/2019 (inadimplente), R$ 350,00 em alimentação (incluindo açougue, padaria e leite), R$
35,00 em gás (um botijão a cada dois meses), R$ 180,00 em farmácia, R$ 500,00 em
financiamento da casa e R$ 49,90 em celular pós-pago. Há que se registrar que não foram
mencionados os gastos com fraldas, transportes e outros para os deslocamentos referentes aos
tratamentos médicos, e com equipe multidisciplinar de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia
ocupacional em outros municípios. Ademais, documento acostado a fls. 21 (id. 125540735 – pág.
1), revela orçamento de órtese suropodálica bilateral (par), no valor de R$ 480,00, órtese
abdutora de polegar de polipropileno unilateral (R$ 180,00) e órtese de posicionamento unilateral
(R$ 180,00), totalizando R$ 840,00. Verifica-se que as despesas mensais superam a receita,
cujos gastos tendem a se elevar, haja vista encontrar-se o autor em fase de crescimento,
surgindo novas despesas, como a troca de órteses, sendo forçoso concluir ser insuficiente a
renda familiar para suprir suas necessidades básicas.
IV- Conforme verificado no sistema Plenus, a parte autora formulou pedido de amparo social à
pessoa portadora de deficiência em 13/12/17, motivo pelo qual o termo inicial de concessão do
benefício deve ser mantido na data do pedido na esfera administrativa, conforme jurisprudência
pacífica do C. STJ (AgRg no AREsp nº 377.118/CE, 2ª Turma, Relator Ministro Humberto Martins,
v.u., j. 10/9/13, DJe 18/9/13).
V- Deve ser mantida a antecipação dos efeitos do provimento jurisdicional final, já sob a novel
figura da tutela de urgência, uma vez que evidenciado nos presentes autos o preenchimento dos
requisitos do art. 300, do CPC/15.
VI- Rejeitada a matéria preliminar e, no mérito, apelação do INSS improvida.
Acórdao
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5176505-08.2020.4.03.9999
RELATOR:Gab. 26 - DES. FED. NEWTON DE LUCCA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: M. H. S. I.
REPRESENTANTE: CAROLINA CRISTINA SILVA IGNACIO
Advogados do(a) APELADO: ARTHUR ALCANTARA PRESOTTO - SP355480-N, TABATA TAIS
AMARAL - SP348142-N, GABRIELLA PARZEWSKI HENRIQUE SILVA - SP348855-N,
EDUARDO MICHARKI VAVAS - SP304153-N,
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5176505-08.2020.4.03.9999
RELATOR:Gab. 26 - DES. FED. NEWTON DE LUCCA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: M. H. S. I.
REPRESENTANTE: CAROLINA CRISTINA SILVA IGNACIO
Advogados do(a) APELADO: ARTHUR ALCANTARA PRESOTTO - SP355480-N, TABATA TAIS
AMARAL - SP348142-N, GABRIELLA PARZEWSKI HENRIQUE SILVA - SP348855-N,
EDUARDO MICHARKI VAVAS - SP304153-N,
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON DE LUCCA (RELATOR):Trata-se de ação
ajuizada em 20/9/18 em face do INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, visando à concessão
do benefício previsto no art. 203, inc. V, da Constituição Federal de 1988, sob o fundamento de
serpessoa portadora de deficiênciae não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-
la provida por sua família. Pleiteia, ainda, a tutela de urgência.
Foram deferidos à parte autora os benefícios da assistência judiciária gratuita.
O Juízoa quo, em 23/9/19, julgouprocedenteo pedido, concedendo o benefício requerido ao autor,
representado pela sua genitora, no valor de um salário mínimo mensal, a partir de 13/12/17, data
do requerimento administrativo formulado. Determinou o pagamento dos valores atrasados, de
uma única vez, acrescidos de correção monetária pelo IPCA-E, a partir da data em que cada uma
das prestações deveria ter sido paga, e juros moratórios, de acordo com o disposto no art. 1º-F
da Lei nº 9.494/97, nos termos do decidido pelo C. STF no RE nº 870.947/SE. Os honorários
advocatícios foram fixados em 10% sobre o valor das prestações vencidas até a data da prolação
da sentença, e os honorários periciais foram arbitrados no valor máximo previsto na Resolução
em vigor do CJF. Isentou o réu da condenação em custas processuais. Deferiu a antecipação dos
efeitos da tutela.
Inconformada, apelou a autarquia, sustentando em síntese:
a) Preliminarmente:
- a necessidade de suspensão do cumprimento da decisão, no tocante à tutela antecipada
deferida, pela possibilidade de ocorrer lesão grave e de difícil reparação ao erário, ante à
possibilidade de provimento do recurso, haja vista a renda familiar per capita ser superior a ½
salário mínimo.
b) No mérito:
- a ausência de demonstração da miserabilidade do núcleo familiar, vez que a renda familiar per
capita supera ½ salário mínimo, motivo pelo qual deve ser reformada a R. sentença.
- Caso não sejam acolhidas as alegações mencionadas, pleiteia a fixação do termo inicial do
benefício na data da juntada do último laudo pericial aos autos. Por fim, argui o
prequestionamento da matéria.
Com contrarrazões, nas quais o demandante requer a majoração dos honorários advocatícios
para 20 % sobre o proveito econômico, subiram os autos a esta E. Corte.
Parecer do Ministério Público Federal a fls. 136/139 (id. 132537160 – págs. 1/4), opinando pelo
parcial provimento do recurso do INSS, fixando o termo inicial do benefício em 1º/3/20, quando
houve o rompimento do vínculo laboral do genitor.
É o breve relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5176505-08.2020.4.03.9999
RELATOR:Gab. 26 - DES. FED. NEWTON DE LUCCA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: M. H. S. I.
REPRESENTANTE: CAROLINA CRISTINA SILVA IGNACIO
Advogados do(a) APELADO: ARTHUR ALCANTARA PRESOTTO - SP355480-N, TABATA TAIS
AMARAL - SP348142-N, GABRIELLA PARZEWSKI HENRIQUE SILVA - SP348855-N,
EDUARDO MICHARKI VAVAS - SP304153-N,
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON DE LUCCA (RELATOR): Cumpre
assinalar que o pedido formulado em contrarrazões não será conhecido, em razão da via
inadequada utilizada pela parte autora para pleitear a reforma da R. sentença.
Passo à análise da apelação do INSS.
Dispõe o art. 203, inc. V, da Constituição Federal, in verbis:
"Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente da
contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I -a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II -o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III -a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV -a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por
sua família, conforme dispuser a lei." (grifos meus)
Para regulamentar o dispositivo constitucional retro transcrito, foi editada a Lei nº 8.742 de
7/12/1993.
Cumpre ressaltar, ainda, que em 8/12/95 sobreveio o Decreto nº 1.744 regulamentando a Lei da
Assistência Social supramencionada.
Da leitura dos dispositivos legais, depreende-se que o benefício previsto no art. 203, inc. V, da CF
é devido à pessoa portadora de deficiência ou considerada idosa e, em ambas as hipóteses, que
não possua meios de prover a própria subsistência ou de tê-la provida por sua família.
Com relação ao requisito etário, observo que a idade de 70 (setenta) anos prevista no caput do
art. 20, da Lei nº 8.742/93, foi reduzida para 67 (sessenta e sete), conforme a Lei nº 9.720/98 e,
posteriormente, para 65 (sessenta e cinco), nos termos do art. 34 da Lei nº 10.741/2003.
No que concerne à incapacidade para a vida independente, conforme disposto no art. 20, da Lei
nº 8.742/93, não me parece ter sido o intuito do legislador conceituar pessoa portadora de
deficiência como aquela que necessita da assistência permanente de outra para a realização das
atividades básicas do ser humano. Nem seria razoável que o fizesse. Há de se entender como
incapacidade para a vida independente, sim, aquela que não dispõe de recursos para promover,
por seus próprios meios, condições para sobreviver com um mínimo de dignidade. Cumpre
registrar que a Súmula nº 30 da AGU, de 9 de junho de 2008, dispõe que: "A incapacidade para
prover a própria subsistência por meio do trabalho é suficiente para a caracterização da
incapacidade para a vidaindependente, conforme estabelecido no art. 203, V, da Constituição
Federal, e art. 20, II, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993" (grifei). Ademais, a redação do
referido artigo foi alterada pela Lei nº 13.146/15: "Para efeito de concessão do benefício de
prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de
longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou
mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas."
No tocante ao segundo requisito, qual seja, a comprovação de a parte autora não possuir meios
de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família, o Plenário do C. Supremo
Tribunal Federal, em sessão de 27/8/1998, havia julgado improcedente o pedido formulado na
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232-1/DF, considerando constitucional o § 3º, do art. 20,
da Lei nº 8.742/93.
No entanto, o referido Plenário, em sessão de 18/4/2013, apreciando o Recurso Extraordinário nº
567.985/MT, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do mencionado
§ 3º, do art. 20, da Lei nº 8.742/93, nos termos do voto do E. Ministro Gilmar Mendes, in verbis:
"Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da
Constituição.
A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da
Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário
mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir
meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
2. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo
Tribunal Federal na ADI 1.232.
Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que 'considera-se incapaz de prover a manutenção da
pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4
(um quarto) do salário mínimo'.
O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao
fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem
consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente.
Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal
declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS.
3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de
inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à
aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS.
Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de se contornar o critério objetivo e
único estipulado pela LOAS e de se avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias
com entes idosos ou deficientes.
Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão
de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei
10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que
criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro
a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações
socioeducativas.
O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores
posicionamentos acerca da intransponibilidade dos critérios objetivos.
Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças
fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos
patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais
por parte do Estado brasileiro).
4. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei
8.742/1993.
5. Recurso extraordinário a que se nega provimento."
(STF, Recurso Extraordinário nº 567.985/MT, Plenário, Relator para acórdão Ministro Gilmar
Mendes, j. em 18/4/13)
Asseverou o E. Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, que "o critério de ¼ do salário mínimo
utilizado pela LOAS está completamente defasado e mostra-se atualmente inadequado para aferir
a miserabilidade das famílias que, de acordo com o art. 203, V, da Constituição, possuem o
direito ao benefício assistencial."
Quadra mencionar, adicionalmente, que o C. Superior Tribunal de Justiça também analisou a
questão da miserabilidade por ocasião do julgamento proferido no Recurso Especial Repetitivo
Representativo de Controvérsia nº 1.112.557-MG (2009/0040999-9), in verbis:
"RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA
CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA,
QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO
MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e
ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98, dispõe
que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de
deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua
renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade
dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para o
acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana,
especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse
dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente ao cidadão social e
economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se
comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la
provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou
seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior
a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art.
131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do
valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de
miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a
determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido."
(STJ, REsp. nº 1.112.557/MG, 3ª Seção, Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28/10/09,
v.u., DJ 20/11/09)
Dessa forma, pacificou-se o entendimento no sentido de que a comprovação de a parte autora
possuir (ou não) meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família deve
ser analisada pelo magistrado, em cada caso, de acordo com as provas apresentadas nos autos.
Outrossim, nos termos do art. 34, do Estatuto do Idoso, deve-se descontar outro benefício no
valor de um salário mínimo já concedido a qualquer membro da família, para fins de cálculo da
renda familiar per capita a que se refere a LOAS.
Embora a lei refira-se a outro benefício assistencial, nada impede que se interprete a lei
atribuindo-se à expressão também o sentido de benefício previdenciário, de forma a dar-se
tratamento igual a casos semelhantes. A avaliação da hipossuficiência tem caráter puramente
econômico, pouco importando o nomen juris do benefício recebido: basta que seja no valor de um
salário mínimo. É o que se poderia chamar de simetria ontológica e axiológica em favor de um ser
humano que se ache em estado de penúria equivalente à miserabilidade de outrem.
Nesse sentido, aliás, já decidiu essa E. Terceira Seção conforme ementa abaixo transcrita, in
verbis:
"EMBARGOS INFRINGENTES. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. INVÁLIDA. CUMPRIMENTO DOS
REQUISITOS LEGAIS. PREVALÊNCIA DO VOTO VENCEDOR.
I - A extensão dos embargos é adstrita aos limites da divergência que, no caso dos autos, recai
unicamente sobre a verificação da hipossuficiência econômica da parte autora.
II - É de se manter a concessão do benefício assistencial à autora, hoje com 61 anos, total e
definitivamente incapaz para o trabalho, que vive com uma filha e o marido, já idoso, o qual
percebe aposentadoria no valor de um salário mínimo.
III - As testemunhas ouvidas afirmam enfaticamente que a autora reside em casa muito simples e
faz uso diário de medicamentos.
IV - O rigor na aplicação da exigência quanto à renda mínima, tornaria inócua a instituição desse
benefício de caráter social, tal o grau de penúria em que se deveriam encontrar os beneficiários,
além do que, faz-se necessário descontar o benefício de valor mínimo, a que teria direito a parte
autora, para o cálculo da renda mensal per capita.
V - O conceito de unidade familiar foi esclarecido com a nova redação do § 1º do artigo 21 da Lei
nº 9.720/98, que remete ao art. 16 da Lei nº 8.213/91.
VI - Há no conjunto probatório, elementos que induzem à convicção de que a autora está entre o
rol dos beneficiários descritos na legislação.
VII - Embargos infringentes não providos."
(EAC nº 2002.03.099.026301-6, Rel. Des. Federal Marianina Galante, j. em 22/9/04, DJU de
05/10/04, grifos meus)
Passo à análise do caso concreto.
In casu, para a verificação da incapacidade, foi realizada perícia judicial em 3/4/19, tendo sido
elaborado o respectivo parecer técnico e juntado a fls. 54/59 (id. 1125540783 – págs. 1/6).
Afirmou o esculápio encarregado do exame, com base no exame clínico e análise da
documentação médica dos autos, que o periciando de 2 anos (nascido em 24/2/17) é portador de
sequelas neurológicas definidas como hidrocefalia discreta diagnosticada por ultrassonografia
transfontanela em 6/9/17, e distúrbio irritativo difuso, conforme exame de eletroencefalograma
clínico digital, em 28/8/18. Apresenta retardo no desenvolvimento motor, pois ainda não anda e
não consegue sentar-se sozinho, sendo totalmente dependente dos pais. Concluiu pela
constatação da incapacidade total e permanente para desenvolver-se sem estimulação
adequada. Esclareceu o expert que devido à pouca idade, não há possibilidade de "definir se ele
terá condições de frequentar escolas, de desenvolver suas habilidades cognitivas e sociais, e se
tornar um elemento produtivo na sociedade. Ele pode ser reavaliado dentro de 4 anos para
verificar a evolução de seu desenvolvimento psicomotor social." (fls. 59 – id. 125540783 – pág. 6).
Assim, comprovado o requisito da deficiência desde a data do nascimento.
Com relação à miserabilidade, observo que o estudo social (elaborado em 22/8/19, data em que o
salário mínimo era de R$ 998,00) demonstra que o autor de 2 anos reside com a genitora
Carolina Cristina Silva Ignácio, de 29 anos, desempregada e cuidando dos afazeres domésticos,
e Paulo Natanael Ignácio, de 35 anos, em imóvel financiado, construído com piso frio e forro de
laje, constituído por quatro cômodos, sendo 2 quartos, sala e cozinha conjugados e banheiro,
guarnecido por mobiliário e eletrodomésticos simples. A família possui um automóvel de marca
Ford Del Rey a álcool, ano de 1985, porém inutilizado (quebrado). Segundo relato da genitora à
assistente social, o autor faz uso de órteses, dieta especial, em razão do diagnóstico de
hidrocefalia e deficiência visual, realizando tratamento médico no Hospital das Clínicas em
Ribeirão Preto/SP e no ambulatório de saúde auditiva na cidade de Franca, sendo acompanhado,
também, pela equipe técnica multiprofissional do Centro Especializado em Reabilitação (CER) no
município de Morro Agudo/SP. A renda familiar é proveniente da remuneração recebida pelo
genitor na função de soldador I, "no valor bruto de R$ 1.621,48 e líquido de R$ 876,27 por mês,
conforme verificamos (da) CTPS nº 011980 série 00270-SP, data de emissão em 09/04/2019 e
holerite referente a julho/2019" (fls. 73 – id. 125540806 – pág. 3). Os gastos mensais totalizam R$
1.240,45, sendo R$ 15,86 em água (inadimplente dois meses), R$ 90,71 em energia elétrica, R$
18,98 em IPTU/2019 (inadimplente), R$ 350,00 em alimentação (incluindo açougue, padaria e
leite), R$ 35,00 em gás (um botijão a cada dois meses), R$ 180,00 em farmácia, R$ 500,00 em
financiamento da casa e R$ 49,90 em celular pós-pago.
Há que se registrar que não foram mencionados os gastos com fraldas, transportes e outros para
os deslocamentos referentes aos tratamentos médicos, e com equipe multidisciplinar de
fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional em outros municípios. Ademais, documento
acostado a fls. 21 (id. 125540735 – pág. 1), revela orçamento de órtese suropodálica bilateral
(par), no valor de R$ 480,00, órtese abdutora de polegar de polipropileno unilateral (R$ 180,00) e
órtese de posicionamento unilateral (R$ 180,00), totalizando R$ 840,00. Verifica-se que as
despesas mensais superam a receita, cujos gastos tendem a se elevar, haja vista encontrar-se o
autor em fase de crescimento, surgindo novas despesas, como a troca de órteses, sendo forçoso
concluir ser insuficiente a renda familiar para suprir suas necessidades básicas.
Dessa forma, ficou comprovada a alegada hipossuficiência do núcleo familiar. Quadra ressaltar
que, no presente caso, foi levado em consideração todo o conjunto probatório apresentado nos
autos, não se restringindo ao critério da renda mensal per capita.
Cumpre salientar que o amparo social deve ser revisto a cada dois anos, haja vista a expressa
disposição legal prevista no art. 21 da Lei nº 8.742/93.
Ressalto, ainda, ser vedada a acumulação do benefício assistencial de prestação continuada com
qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência médica,
nos termos do art. 20, §4º, da Lei nº 8.742/93, devendo ser deduzidos na fase de execução do
julgado os pagamentos feitos pela autarquia na esfera administrativa.
Conforme verificado no sistema Plenus, a parte autora formulou pedido de amparo social à
pessoa portadora de deficiência em 13/12/17, motivo pelo qual o termo inicial de concessão do
benefício deve ser mantido na data do pedido na esfera administrativa, conforme jurisprudência
pacífica do C. STJ (AgRg no AREsp nº 377.118/CE, 2ª Turma, Relator Ministro Humberto Martins,
v.u., j. 10/9/13, DJe 18/9/13).
Quadra consignar que os eventuais pagamentos das diferenças pleiteadas já realizadas pela
autarquia na esfera administrativa devem ser deduzidos na fase de execução do julgado.
No tocante ao prequestionamento da matéria, para fins de interposição de recursos aos tribunais
superiores, não merece prosperar a alegação do INSS de ofensa aos dispositivos legais e
constitucionais, tendo em vista que houve análise da apelação em todos os seus aspectos.
Por derradeiro, deve ser mantida a antecipação dos efeitos do provimento jurisdicional final, já
sob a novel figura da tutela de urgência, uma vez que evidenciado nos presentes autos o
preenchimento dos requisitos do art. 300, do CPC/15.
Inequívoca a existência da probabilidade do direito, tendo em vista o reconhecimento à percepção
do benefício pleiteado. Quanto ao perigo de dano, parece-me que, entre as posições
contrapostas, merece acolhida aquela defendida pela parte autora porque, além de desfrutar de
elevada probabilidade, é a que sofre maiores dificuldades de reversão. Outrossim, o perigo da
demora encontrava-se evidente, tendo em vista o caráter alimentar do benefício.
Ante o exposto, rejeito a matéria preliminar e, no mérito, nego provimento à apelação do INSS.
É o meu voto.
E M E N T A
ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO PREVISTO NO ART. 203, INC. V, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA E MISERABILIDADE DEMONSTRADAS.
TERMO INICIAL. TUTELA DE URGÊNCIA MANTIDA.
I- O benefício previsto no art. 203, inc. V, da CF é devido à pessoa portadora de deficiência ou
considerada idosa e, em ambas as hipóteses, que não possua meios de prover a própria
subsistência ou de tê-la provida por sua família.
II- Para a verificação da incapacidade, foi realizada perícia médica judicial.
Afirmou o esculápio encarregado do exame, com base no exame clínico e análise da
documentação médica dos autos, que o periciando de 2 anos (nascido em 24/2/17) é portador de
sequelas neurológicas definidas como hidrocefalia discreta diagnosticada por ultrassonografia
transfontanela em 6/9/17, e distúrbio irritativo difuso, conforme exame de eletroencefalograma
clínico digital, em 28/8/18. Apresenta retardo no desenvolvimento motor, pois ainda não anda e
não consegue sentar-se sozinho, sendo totalmente dependente dos pais. Concluiu pela
constatação da incapacidade total e permanente para desenvolver-se sem estimulação
adequada. Esclareceu o expert que devido à pouca idade, não há possibilidade de "definir se ele
terá condições de frequentar escolas, de desenvolver suas habilidades cognitivas e sociais, e se
tornar um elemento produtivo na sociedade. Ele pode ser reavaliado dentro de 4 anos para
verificar a evolução de seu desenvolvimento psicomotor social." (fls. 59 – id. 125540783 – pág. 6).
Assim, comprovado o requisito da deficiência desde a data do nascimento.
III- Pela análise de todo o conjunto probatório dos autos, não se restringindo ao critério da renda
mensal per capita, o requisito da miserabilidade encontra-se demonstrado no presente feito. O
estudo social revela que o autor de 2 anos reside com a genitora Carolina Cristina Silva Ignácio,
de 29 anos, desempregada e cuidando dos afazeres domésticos, e Paulo Natanael Ignácio, de 35
anos, em imóvel financiado, construído com piso frio e forro de laje, constituído por quatro
cômodos, sendo 2 quartos, sala e cozinha conjugados e banheiro, guarnecido por mobiliário e
eletrodomésticos simples. A família possui um automóvel de marca Ford Del Rey a álcool, ano de
1985, porém inutilizado (quebrado). Segundo relato da genitora à assistente social, o autor faz
uso de órteses, dieta especial, em razão do diagnóstico de hidrocefalia e deficiência visual,
realizando tratamento médico no Hospital das Clínicas em Ribeirão Preto/SP e no ambulatório de
saúde auditiva na cidade de Franca, sendo acompanhado, também, pela equipe técnica
multiprofissional do Centro Especializado em Reabilitação (CER) no município de Morro
Agudo/SP. A renda familiar é proveniente da remuneração recebida pelo genitor na função de
soldador I, "no valor bruto de R$ 1.621,48 e líquido de R$ 876,27 por mês, conforme verificamos
(da) CTPS nº 011980 série 00270-SP, data de emissão em 09/04/2019 e holerite referente a
julho/2019" (fls. 73 – id. 125540806 – pág. 3). Os gastos mensais totalizam R$ 1.240,45, sendo
R$ 15,86 em água (inadimplente dois meses), R$ 90,71 em energia elétrica, R$ 18,98 em
IPTU/2019 (inadimplente), R$ 350,00 em alimentação (incluindo açougue, padaria e leite), R$
35,00 em gás (um botijão a cada dois meses), R$ 180,00 em farmácia, R$ 500,00 em
financiamento da casa e R$ 49,90 em celular pós-pago. Há que se registrar que não foram
mencionados os gastos com fraldas, transportes e outros para os deslocamentos referentes aos
tratamentos médicos, e com equipe multidisciplinar de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia
ocupacional em outros municípios. Ademais, documento acostado a fls. 21 (id. 125540735 – pág.
1), revela orçamento de órtese suropodálica bilateral (par), no valor de R$ 480,00, órtese
abdutora de polegar de polipropileno unilateral (R$ 180,00) e órtese de posicionamento unilateral
(R$ 180,00), totalizando R$ 840,00. Verifica-se que as despesas mensais superam a receita,
cujos gastos tendem a se elevar, haja vista encontrar-se o autor em fase de crescimento,
surgindo novas despesas, como a troca de órteses, sendo forçoso concluir ser insuficiente a
renda familiar para suprir suas necessidades básicas.
IV- Conforme verificado no sistema Plenus, a parte autora formulou pedido de amparo social à
pessoa portadora de deficiência em 13/12/17, motivo pelo qual o termo inicial de concessão do
benefício deve ser mantido na data do pedido na esfera administrativa, conforme jurisprudência
pacífica do C. STJ (AgRg no AREsp nº 377.118/CE, 2ª Turma, Relator Ministro Humberto Martins,
v.u., j. 10/9/13, DJe 18/9/13).
V- Deve ser mantida a antecipação dos efeitos do provimento jurisdicional final, já sob a novel
figura da tutela de urgência, uma vez que evidenciado nos presentes autos o preenchimento dos
requisitos do art. 300, do CPC/15.
VI- Rejeitada a matéria preliminar e, no mérito, apelação do INSS improvida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Oitava Turma, por
unanimidade, decidiu rejeitar a matéria preliminar e, no mérito, negar provimento à apelação do
INSS, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA
