Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / MS
5002211-74.2020.4.03.9999
Relator(a)
Desembargador Federal NEWTON DE LUCCA
Órgão Julgador
8ª Turma
Data do Julgamento
05/08/2020
Data da Publicação/Fonte
Intimação via sistema DATA: 07/08/2020
Ementa
E M E N T A
ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO PREVISTO NO ART. 203, INC. V, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. INDÍGENA. COMPROVADO
IMPEDIMENTO DE LONGO PRAZO. MISERABILIDADE DEMONSTRADA. TERMO INICIAL.
ALTERAÇÃO DE OFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA.
I- O benefício previsto no art. 203, inc. V, da CF é devido à pessoa portadora de deficiência ou
considerada idosa e, em ambas as hipóteses, que não possua meios de prover a própria
subsistência ou de tê-la provida por sua família.
II- Para a comprovação da deficiência, foi realizada perícia judicial. Afirmou o esculápio
encarregado do exame, com base na análise da documentação médica dos autos, que a autora
atualmente com 8 anos sofreu, em 12/1/16, queimadura de 3º grau, ao cair em um buraco com
lixo, que estava sendo incinerado. Ao exame físico, atestou o expert a presença de "Deformidade
importante de ambos os pés, com perda de partes moles e retrações cicatriciais até a altura dos
terços distais das pernas; dificuldade no equilíbrio e dificuldade para andar" (fls. 57 - id.
130787188 – pág. 55), concluindo ser portadora de deficiência, conforme o Decreto nº 3.298/99,
em razão do CID10 T25.3.
III- Como bem asseverou a I. Representante do Parquet Federal a fls. 155 (id. 131059941 – pág.
6), "de forma alguma merecem acolhida os argumentos do INSS de que não estaria comprovada
a incapacidade para os atos da vida independente e os impedimentos de longo prazo, uma vez
que o perito judicial afirmou que "c) Em projeção futura, poderá ser inserida no mercado de
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
trabalho em condições de deficiente físico, pois tem graves obstáculos para competir em
igualdade com as demais pessoas". Ora, é justamente o contrário do que afirma o INSS: segundo
o perito, no Quesito VII (ID Num. 130787188 - Pág. 58), a deficiência da autora é de grau
moderado (item b, ID Num. 130787188 - Pág. 57) e está estagnada. Desta forma, a parte autora
não pode deixar de receber um benefício assistencial – do qual hoje ela faz jus – apenas porque
em um futuro incerto, quem sabe, ela venha a ser inserida no mercado de trabalho como
deficiente. A propósito, em se tratando de indígena, a aplicação do uso das regras ou máximas de
experiência previstas no art. 375, do CPC de 2015, ou seja, aquilo que ordinariamente acontece,
permite-nos afirmar que o seu modus vivendi, via de regra, é voltado para o labor campesino em
regime de economia familiar". Assim, comprovado o impedimento de longo prazo.
IV- Com relação à miserabilidade, o estudo social revela que a autora de 8 anos e indígena,
reside em zona rural com os genitores Ângelo Centurião de 35 anos e Rosiana Sanabrio
Centurião, de 31 anos, e os irmãos Lucimar de 14 anos, Éber de 11 anos e Lucimara de 16 anos.
Segundo a assistente social, a moradia consiste em "barraco parte de madeira parte de lona,
coberto de sapé, chão batido, sem água encanada, sem energia elétrica, sem esgoto, sendo o
acesso hospital, educação, e outros, distante do seu local de moradia" (fls. 85 – id. 130787188 –
pág. 83). O grupo familiar não possui renda fixa, sobrevivendo da coleta de lixo esporádica para
reciclagem, e de uma cesta básica mensal recebida do governo. Dessa forma, pela análise de
todo o conjunto probatório dos autos, e principalmente das fotografias anexadas ao estudo
socioeconômico a fls. 86/94 (id. 130787188 – págs. 84/92) o requisito da hipossuficiência
encontra-se efetivamente comprovado.
V- No que tange ao pedido formulado pelo Ministério Público Federal de alteração de ofício do
termo inicial do benefício, o mesmo não merece prosperar. Por não se tratar de matéria de ordem
pública (art. 485, § 3º do CPC/15) e à míngua de recurso da parte autora ou do próprio Ministério
Público Federal, fica mantido o r. decisum tal como proferido. A modificação da sentença após o
prazo recursal previsto em lei, por meio de parecer do Parquet Federal, elaborado quando os
autos já tramitavam nesta E. Corte, infringe a autoridade da coisa julgada, que torna imutável e
indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
VI- A correção monetária deve incidir desde a data do vencimento de cada prestação e os juros
moratórios a partir da citação, momento da constituição do réu em mora. Com relação aos índices
de atualização monetária, devem ser observados os posicionamentos firmados na Repercussão
Geral no Recurso Extraordinário nº 870.947 (Tema 810) e no Recurso Especial Repetitivo nº
1.492.221 (Tema 905), adotando-se, dessa forma, o IPCA-E nos processos relativos a benefício
assistencial e o INPC nos feitos previdenciários.
VII- Quadra ressaltar não ser necessário aguardar-se o trânsito em julgado de acórdão proferido
em recurso repetitivo para que se possa aplicar a orientação firmada aos demais recursos (STJ,
1ª Seção, AgInt. no REsp. nº 1.422.271/SC, Relatora Ministra Regina Helena Costa, j. 14/8/16,
vu, DJe 20/9/16).
VIII- Apelação do INSS improvida.
Acórdao
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5002211-74.2020.4.03.9999
RELATOR:Gab. 26 - DES. FED. NEWTON DE LUCCA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: E. S. C.
Advogado do(a) APELADO: LOURDES ROSALVO DA SILVA DOS SANTOS - MS7239-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5002211-74.2020.4.03.9999
RELATOR:Gab. 26 - DES. FED. NEWTON DE LUCCA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: E. S. C.
Advogado do(a) APELADO: LOURDES ROSALVO DA SILVA DOS SANTOS - MS7239-A
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON DE LUCCA (RELATOR):Trata-se de ação
ajuizada em 7/12/17 em face do INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, visando à concessão
do benefício previsto no art. 203, inc. V, da Constituição Federal de 1988, sob o fundamento de
serpessoa portadora de deficiênciae não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-
la provida por sua família. Pleiteia, ainda, a fixação do termo inicial na data do requerimento
administrativo, em 13/4/17.
Foram deferidos à parte autora os benefícios da assistência judiciária gratuita.
O Juízoa quo, em 18/6/19, julgouprocedenteo pedido, concedendo o benefício requerido à autora,
no valor de um salário mínimo mensal, a partir da data da juntada do laudo pericial, em 23/4/18,
"considerando que a autora ingressou com pedido semelhante na esfera administrativa, mas não
restou comprovado desde o início que já preenchia os requisitos para a implementação imediata
do benefício" (fls. 114 – id. 130787188 – pág. 112). Determinou o pagamento dos valores
atrasados, acrescidos de correção monetária pelo IPCA-E, e juros moratórios conforme o índice
oficial de remuneração básica aplicado à caderneta de poupança. Em relação às prestações
vincendas "a partir da perícia judicial até a efetiva implantação do benefício, também acrescidas
de atualização monetária e juros moratórios, respectivamente, corrigida pelo Índice de Preços ao
Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) e juros moratórios nos débitos não tributários pela
poupança, e sendo tributários pela SELIC" (fls. 117 – id. 130787188 – pág. 115). Condenou,
ainda, o INSS, a arcar com o pagamento de custas, com base na Lei Estadual nº 3.779, de
11/11/09, do Estado do Mato Grosso do Sul, bem como honorários advocatícios fixados em 10%
sobre o valor das prestações vencidas até a data da sentença (Súmula nº 111 do C. STJ e art.
85, § 2º, do CPC/15).
Inconformada, apelou a autarquia, sustentando em síntese:
- inexistência de incapacidade para os atos da vida independente e não comprovação do
impedimento de longo prazo, pois o Sr. Perito atestou que futuramente a demandante poderá ser
inserida no mercado de trabalho, não fazendo jus ao benefício assistencial.
- Caso não seja acolhida a alegação mencionada, pleiteia a fixação do termo inicial do benefício
na data da juntada do estudo social que comprove em Juízo a miserabilidade e a incidência da
TR (Taxa Referencial) como índice de correção monetária em relação ao período posterior à
edição da Lei nº 11.960/09, pela pendência de julgamento de embargos de declaração nas ADIs
4.357 e 4.425, pelo C. STF, bem como modulação de efeitos. Por fim, argui o prequestionamento
da matéria para fins recursais.
Com contrarrazões, subiram os autos a esta E. Corte.
Parecer do Ministério Público Federal a fls. 150/160 (id. 131059941 – págs. 1/11), opinando pelo
conhecimento e desprovimento do recurso do INSS. "De ofício, requer a correção do termo inicial
do benefício que é devido desde o requerimento administrativo formulado em 13/04/2017 (ID
Num. 130787188 - Pág. 14)", considerando que "o Ministério Público detém legitimidade para
requerer a correção do termo inicial do benefício, suprindo eventual omissão da parte autora
incapaz, a fim de obstar lesão aos seus direitos indisponíveis, tudo nos termos do artigo 127 e
129 da Constituição Federal, bem como do artigo 178, inciso II, do CPC/15 e do artigo 884, do
Código Civil)"
É o breve relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5002211-74.2020.4.03.9999
RELATOR:Gab. 26 - DES. FED. NEWTON DE LUCCA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: E. S. C.
Advogado do(a) APELADO: LOURDES ROSALVO DA SILVA DOS SANTOS - MS7239-A
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON DE LUCCA (RELATOR): Dispõe o art.
203, inc. V, da Constituição Federal, in verbis:
"Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente da
contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I -a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II -o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III -a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV -a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por
sua família, conforme dispuser a lei." (grifos meus)
Para regulamentar o dispositivo constitucional retro transcrito, foi editada a Lei nº 8.742 de
7/12/1993.
Cumpre ressaltar, ainda, que em 8/12/95 sobreveio o Decreto nº 1.744 regulamentando a Lei da
Assistência Social supramencionada.
Da leitura dos dispositivos legais, depreende-se que o benefício previsto no art. 203, inc. V, da CF
é devido à pessoa portadora de deficiência ou considerada idosa e, em ambas as hipóteses, que
não possua meios de prover a própria subsistência ou de tê-la provida por sua família.
Com relação ao requisito etário, observo que a idade de 70 (setenta) anos prevista no caput do
art. 20, da Lei nº 8.742/93, foi reduzida para 67 (sessenta e sete), conforme a Lei nº 9.720/98 e,
posteriormente, para 65 (sessenta e cinco), nos termos do art. 34 da Lei nº 10.741/2003.
No que concerne à incapacidade para a vida independente, conforme disposto no art. 20, da Lei
nº 8.742/93, não me parece ter sido o intuito do legislador conceituar pessoa portadora de
deficiência como aquela que necessita da assistência permanente de outra para a realização das
atividades básicas do ser humano. Nem seria razoável que o fizesse. Há de se entender como
incapacidade para a vida independente, sim, aquela que não dispõe de recursos para promover,
por seus próprios meios, condições para sobreviver com um mínimo de dignidade. Cumpre
registrar que a Súmula nº 30 da AGU, de 9 de junho de 2008, dispõe que: "A incapacidade para
prover a própria subsistência por meio do trabalho é suficiente para a caracterização da
incapacidade para a vidaindependente, conforme estabelecido no art. 203,V, da Constituição
Federal, e art. 20, II, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993" (grifei). Ademais, a redação do
referido artigo foi alterada pela Lei nº 13.146/15: "Para efeito de concessão do benefício de
prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de
longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou
mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas."
No tocante ao segundo requisito, qual seja, a comprovação de a parte autora não possuir meios
de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família, o Plenário do C. Supremo
Tribunal Federal, em sessão de 27/8/1998, havia julgado improcedente o pedido formulado na
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232-1/DF, considerando constitucional o § 3º, do art. 20,
da Lei nº 8.742/93.
No entanto, o referido Plenário, em sessão de 18/4/2013, apreciando o Recurso Extraordinário nº
567.985/MT, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do mencionado
§ 3º, do art. 20, da Lei nº 8.742/93, nos termos do voto do E. Ministro Gilmar Mendes, in verbis:
"Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da
Constituição.
A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da
Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário
mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir
meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
2. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo
Tribunal Federal na ADI 1.232.
Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que 'considera-se incapaz de prover a manutenção da
pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4
(um quarto) do salário mínimo'.
O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao
fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem
consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente.
Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal
declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS.
3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de
inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à
aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS.
Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de se contornar o critério objetivo e
único estipulado pela LOAS e de se avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias
com entes idosos ou deficientes.
Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão
de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei
10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que
criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro
a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações
socioeducativas.
O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores
posicionamentos acerca da intransponibilidade dos critérios objetivos.
Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças
fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos
patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais
por parte do Estado brasileiro).
4. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei
8.742/1993.
5. Recurso extraordinário a que se nega provimento."
(STF, Recurso Extraordinário nº 567.985/MT, Plenário, Relator para acórdão Ministro Gilmar
Mendes, j. em 18/4/13)
Asseverou o E. Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, que "o critério de ¼ do salário mínimo
utilizado pela LOAS está completamente defasado e mostra-se atualmente inadequado para aferir
a miserabilidade das famílias que, de acordo com o art. 203, V, da Constituição, possuem o
direito ao benefício assistencial."
Quadra mencionar, adicionalmente, que o C. Superior Tribunal de Justiça também analisou a
questão da miserabilidade por ocasião do julgamento proferido no Recurso Especial Repetitivo
Representativo de Controvérsia nº 1.112.557-MG (2009/0040999-9), in verbis:
"RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA
CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA,
QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO
MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e
ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98, dispõe
que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de
deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua
renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade
dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para o
acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana,
especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse
dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente ao cidadão social e
economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se
comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la
provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou
seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior
a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art.
131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do
valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de
miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a
determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido."
(STJ, REsp. nº 1.112.557/MG, 3ª Seção, Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28/10/09,
v.u., DJ 20/11/09)
Dessa forma, pacificou-se o entendimento no sentido de que a comprovação de a parte autora
possuir (ou não) meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família deve
ser analisada pelo magistrado, em cada caso, de acordo com as provas apresentadas nos autos.
Outrossim, nos termos do art. 34, do Estatuto do Idoso, deve-se descontar outro benefício no
valor de um salário mínimo já concedido a qualquer membro da família, para fins de cálculo da
renda familiar per capita a que se refere a LOAS.
Embora a lei refira-se a outro benefício assistencial, nada impede que se interprete a lei
atribuindo-se à expressão também o sentido de benefício previdenciário, de forma a dar-se
tratamento igual a casos semelhantes. A avaliação da hipossuficiência tem caráter puramente
econômico, pouco importando o nomen juris do benefício recebido: basta que seja no valor de um
salário mínimo. É o que se poderia chamar de simetria ontológica e axiológica em favor de um ser
humano que se ache em estado de penúria equivalente à miserabilidade de outrem.
Nesse sentido, aliás, já decidiu essa E. Terceira Seção conforme ementa abaixo transcrita, in
verbis:
"EMBARGOS INFRINGENTES. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. INVÁLIDA. CUMPRIMENTO DOS
REQUISITOS LEGAIS. PREVALÊNCIA DO VOTO VENCEDOR.
I - A extensão dos embargos é adstrita aos limites da divergência que, no caso dos autos, recai
unicamente sobre a verificação da hipossuficiência econômica da parte autora.
II - É de se manter a concessão do benefício assistencial à autora, hoje com 61 anos, total e
definitivamente incapaz para o trabalho, que vive com uma filha e o marido, já idoso, o qual
percebe aposentadoria no valor de um salário mínimo.
III - As testemunhas ouvidas afirmam enfaticamente que a autora reside em casa muito simples e
faz uso diário de medicamentos.
IV - O rigor na aplicação da exigência quanto à renda mínima, tornaria inócua a instituição desse
benefício de caráter social, tal o grau de penúria em que se deveriam encontrar os beneficiários,
além do que, faz-se necessário descontar o benefício de valor mínimo, a que teria direito a parte
autora, para o cálculo da renda mensal per capita.
V - O conceito de unidade familiar foi esclarecido com a nova redação do § 1º do artigo 21 da Lei
nº 9.720/98, que remete ao art. 16 da Lei nº 8.213/91.
VI - Há no conjunto probatório, elementos que induzem à convicção de que a autora está entre o
rol dos beneficiários descritos na legislação.
VII - Embargos infringentes não providos."
(EAC nº 2002.03.099.026301-6, Rel. Des. Federal Marianina Galante, j. em 22/9/04, DJU de
05/10/04, grifos meus)
Passo à análise do caso concreto.
In casu, para a comprovação da deficiência, foi realizada perícia judicial em 23/4/18, tendo sido
elaborado o respectivo parecer técnico e acostado a fls. 53/64 (id. 130787188 – págs. 51/62).
Afirmou o esculápio encarregado do exame, com base na análise da documentação médica dos
autos, que a autora atualmente com 8 anos sofreu, em 12/1/16, queimadura de 3º grau, ao cair
em um buraco com lixo, que estava sendo incinerado. Ao exame físico, atestou o expert a
presença de "Deformidade importante de ambos os pés, com perda de partes moles e retrações
cicatriciais até a altura dos terços distais das pernas; dificuldade no equilíbrio e dificuldade para
andar" (fls. 57 - id. 130787188 – pág. 55), concluindo ser portadora de deficiência, conforme o
Decreto nº 3.298/99, em razão do CID10 T25.3.
Como bem asseverou a I. Representante do Parquet Federal a fls. 155 (id. 131059941 – pág. 6),
"de forma alguma merecem acolhida os argumentos do INSS de que não estaria comprovada a
incapacidade para os atos da vida independente e os impedimentos de longo prazo, uma vez que
o perito judicial afirmou que "c) Em projeção futura, poderá ser inserida no mercado de trabalho
em condições de deficiente físico, pois tem graves obstáculos para competir em igualdade com as
demais pessoas". Ora, é justamente o contrário do que afirma o INSS: segundo o perito, no
Quesito VII (ID Num. 130787188 - Pág. 58), a deficiência da autora é de grau moderado (item b,
ID Num. 130787188 - Pág. 57) e está estagnada. Desta forma, a parte autora não pode deixar de
receber um benefício assistencial – do qual hoje ela faz jus – apenas porque em um futuro
incerto, quem sabe, ela venha a ser inserida no mercado de trabalho como deficiente. A
propósito, em se tratando de indígena, a aplicação do uso das regras ou máximas de experiência
previstas no art. 375, do CPC de 2015, ou seja, aquilo que ordinariamente acontece, permite-nos
afirmar que o seu modus vivendi, via de regra, é voltado para o labor campesino em regime de
economia familiar". Assim, comprovado o impedimento de longo prazo.
Com relação à miserabilidade, o estudo social (elaborado em 26/11/18, data em que o salário
mínimo era de R$ 954,00) demonstra, que a autora de 8 anos e indígena, reside em zona rural
com os genitores Ângelo Centurião de 35 anos e Rosiana Sanabrio Centurião, de 31 anos, e os
irmãos Lucimar de 14 anos, Éber de 11 anos e Lucimara de 16 anos. Segundo a assistente
social, a moradia consiste em "barraco parte de madeira parte de lona, coberto de sapé, chão
batido, sem água encanada, sem energia elétrica, sem esgoto, sendo o acesso hospital,
educação, e outros, distante do seu local de moradia" (fls. 85 – id. 130787188 – pág. 83). O grupo
familiar não possui renda fixa, sobrevivendo da coleta de lixo esporádica para reciclagem, e de
uma cesta básica mensal recebida do governo.
Dessa forma, pela análise de todo o conjunto probatório dos autos, e principalmente das
fotografias anexadas ao estudo socioeconômico a fls. 86/94 (id. 130787188 – págs. 84/92) o
requisito da hipossuficiência encontra-se efetivamente comprovado.
Cumpre salientar que o amparo social deve ser revisto a cada dois anos, haja vista a expressa
disposição legal prevista no art. 21 da Lei nº 8.742/93.
Ressalto, ainda, ser vedada a acumulação do benefício assistencial de prestação continuada com
qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência médica,
nos termos do art. 20, §4º, da Lei nº 8.742/93, devendo ser deduzidos na fase de execução do
julgado os pagamentos feitos pela autarquia na esfera administrativa.
No que tange ao pedido formulado pelo Ministério Público Federal de alteração de ofício do termo
inicial do benefício, o mesmo não merece prosperar. Por não se tratar de matéria de ordem
pública (art. 485, § 3º do CPC/15) e à míngua de recurso da parte autora ou do próprio Ministério
Público Federal, fica mantido o r. decisum tal como proferido.
A modificação da sentença após o prazo recursal previsto em lei, por meio de parecer do Parquet
Federal, elaborado quando os autos já tramitavam nesta E. Corte, infringe a autoridade da coisa
julgada, que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
Nesse sentido, transcrevo jurisprudência sobre o tema:
"PROCESSUAL E PREVIDENCIÁRIO. ACIDENTÁRIA. AUXÍLIO-ACIDENTE. TERMO INICIAL.
REFORMATIO IN PEJUS.
Reconhecido, na sentença, o direito ao benefício a contar da citação, descabe, sem recurso das
partes sobre o tema, alterar a data de ofício, em detrimento de uma delas. Arts. 512 e 515, do
CPC.
Recurso conhecido e provido."
(STJ, 5ª Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, j. 19/2/02, v.u., DJ 18/3/02, grifos meus)
Importante deixar consignado que os pagamentos das diferenças pleiteadas já realizadas pela
autarquia na esfera administrativa devem ser deduzidos na fase de execução do julgado.
A correção monetária deve incidir desde a data do vencimento de cada prestação e os juros
moratórios a partir da citação, momento da constituição do réu em mora.
Com relação aos índices de atualização monetária, devem ser observados os posicionamentos
firmados na Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 870.947 (Tema 810) e no Recurso
Especial Repetitivo nº 1.492.221 (Tema 905), adotando-se, dessa forma, o IPCA-E nos processos
relativos a benefício assistencial e o INPC nos feitos previdenciários. Quadra ressaltar haver
constado expressamente do voto do Recurso Repetitivo que "a adoção do INPC não configura
afronta ao que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral (RE
870.947/SE). Isso porque, naquela ocasião, determinou-se a aplicação do IPCA-E para fins de
correção monetária de benefício de prestação continuada (BPC), o qual se trata de benefício de
natureza assistencial, previsto na Lei 8.742/93. Assim, é imperioso concluir que o INPC, previsto
no art. 41-A da Lei 8.213/91, abrange apenas a correção monetária dos benefícios de natureza
previdenciária." Outrossim, como bem observou o E. Desembargador Federal João Batista Pinto
Silveira: "Importante ter presente, para a adequada compreensão do eventual impacto sobre os
créditos dos segurados, que os índices em referência – INPC e IPCA-E tiveram variação muito
próxima no período de julho de 2009 (data em que começou a vigorar a TR) e até setembro de
2019, quando julgados os embargos de declaração no RE 870947 pelo STF (IPCA-E: 76,77%;
INPC 75,11), de forma que a adoção de um ou outro índice nas decisões judiciais já proferidas
não produzirá diferenças significativas sobre o valor da condenação." (TRF-4ª Região, AI nº
5035720-27.2019.4.04.0000/PR, 6ª Turma, v.u., j. 16/10/19).
Quadra ressaltar não ser necessário aguardar-se o trânsito em julgado de acórdão proferido em
recurso repetitivo para que se possa aplicar a orientação firmada aos demais recursos (STJ, 1ª
Seção, AgInt. no REsp. nº 1.422.271/SC, Relatora Ministra Regina Helena Costa, j. 14/8/16, vu,
DJe 20/9/16).
Por fim, no tocante ao prequestionamento da matéria, para fins de interposição de recursos aos
tribunais superiores, não merece prosperar a alegação do INSS de eventual ofensa aos
dispositivos legais e constitucionais, tendo em vista que houve análise da apelação em todos os
seus aspectos.
Ante o exposto, nego provimento à apelação do INSS.
É o meu voto.
E M E N T A
ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO PREVISTO NO ART. 203, INC. V, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. INDÍGENA. COMPROVADO
IMPEDIMENTO DE LONGO PRAZO. MISERABILIDADE DEMONSTRADA. TERMO INICIAL.
ALTERAÇÃO DE OFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA.
I- O benefício previsto no art. 203, inc. V, da CF é devido à pessoa portadora de deficiência ou
considerada idosa e, em ambas as hipóteses, que não possua meios de prover a própria
subsistência ou de tê-la provida por sua família.
II- Para a comprovação da deficiência, foi realizada perícia judicial. Afirmou o esculápio
encarregado do exame, com base na análise da documentação médica dos autos, que a autora
atualmente com 8 anos sofreu, em 12/1/16, queimadura de 3º grau, ao cair em um buraco com
lixo, que estava sendo incinerado. Ao exame físico, atestou o expert a presença de "Deformidade
importante de ambos os pés, com perda de partes moles e retrações cicatriciais até a altura dos
terços distais das pernas; dificuldade no equilíbrio e dificuldade para andar" (fls. 57 - id.
130787188 – pág. 55), concluindo ser portadora de deficiência, conforme o Decreto nº 3.298/99,
em razão do CID10 T25.3.
III- Como bem asseverou a I. Representante do Parquet Federal a fls. 155 (id. 131059941 – pág.
6), "de forma alguma merecem acolhida os argumentos do INSS de que não estaria comprovada
a incapacidade para os atos da vida independente e os impedimentos de longo prazo, uma vez
que o perito judicial afirmou que "c) Em projeção futura, poderá ser inserida no mercado de
trabalho em condições de deficiente físico, pois tem graves obstáculos para competir em
igualdade com as demais pessoas". Ora, é justamente o contrário do que afirma o INSS: segundo
o perito, no Quesito VII (ID Num. 130787188 - Pág. 58), a deficiência da autora é de grau
moderado (item b, ID Num. 130787188 - Pág. 57) e está estagnada. Desta forma, a parte autora
não pode deixar de receber um benefício assistencial – do qual hoje ela faz jus – apenas porque
em um futuro incerto, quem sabe, ela venha a ser inserida no mercado de trabalho como
deficiente. A propósito, em se tratando de indígena, a aplicação do uso das regras ou máximas de
experiência previstas no art. 375, do CPC de 2015, ou seja, aquilo que ordinariamente acontece,
permite-nos afirmar que o seu modus vivendi, via de regra, é voltado para o labor campesino em
regime de economia familiar". Assim, comprovado o impedimento de longo prazo.
IV- Com relação à miserabilidade, o estudo social revela que a autora de 8 anos e indígena,
reside em zona rural com os genitores Ângelo Centurião de 35 anos e Rosiana Sanabrio
Centurião, de 31 anos, e os irmãos Lucimar de 14 anos, Éber de 11 anos e Lucimara de 16 anos.
Segundo a assistente social, a moradia consiste em "barraco parte de madeira parte de lona,
coberto de sapé, chão batido, sem água encanada, sem energia elétrica, sem esgoto, sendo o
acesso hospital, educação, e outros, distante do seu local de moradia" (fls. 85 – id. 130787188 –
pág. 83). O grupo familiar não possui renda fixa, sobrevivendo da coleta de lixo esporádica para
reciclagem, e de uma cesta básica mensal recebida do governo. Dessa forma, pela análise de
todo o conjunto probatório dos autos, e principalmente das fotografias anexadas ao estudo
socioeconômico a fls. 86/94 (id. 130787188 – págs. 84/92) o requisito da hipossuficiência
encontra-se efetivamente comprovado.
V- No que tange ao pedido formulado pelo Ministério Público Federal de alteração de ofício do
termo inicial do benefício, o mesmo não merece prosperar. Por não se tratar de matéria de ordem
pública (art. 485, § 3º do CPC/15) e à míngua de recurso da parte autora ou do próprio Ministério
Público Federal, fica mantido o r. decisum tal como proferido. A modificação da sentença após o
prazo recursal previsto em lei, por meio de parecer do Parquet Federal, elaborado quando os
autos já tramitavam nesta E. Corte, infringe a autoridade da coisa julgada, que torna imutável e
indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
VI- A correção monetária deve incidir desde a data do vencimento de cada prestação e os juros
moratórios a partir da citação, momento da constituição do réu em mora. Com relação aos índices
de atualização monetária, devem ser observados os posicionamentos firmados na Repercussão
Geral no Recurso Extraordinário nº 870.947 (Tema 810) e no Recurso Especial Repetitivo nº
1.492.221 (Tema 905), adotando-se, dessa forma, o IPCA-E nos processos relativos a benefício
assistencial e o INPC nos feitos previdenciários.
VII- Quadra ressaltar não ser necessário aguardar-se o trânsito em julgado de acórdão proferido
em recurso repetitivo para que se possa aplicar a orientação firmada aos demais recursos (STJ,
1ª Seção, AgInt. no REsp. nº 1.422.271/SC, Relatora Ministra Regina Helena Costa, j. 14/8/16,
vu, DJe 20/9/16).
VIII- Apelação do INSS improvida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Oitava Turma, por
unanimidade, decidiu negar provimento à apelação do INSS, nos termos do relatório e voto que
ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA
