Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP
5175092-23.2021.4.03.9999
Relator(a)
Desembargador Federal DALDICE MARIA SANTANA DE ALMEIDA
Órgão Julgador
9ª Turma
Data do Julgamento
16/02/2022
Data da Publicação/Fonte
Intimação via sistema DATA: 18/02/2022
Ementa
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. DEFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA.
REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. SUCUMBÊNCIA RECURSAL.
- São condições para a concessão do benefício da assistência social: ser o postulante portador de
deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir meios de prover a própria
manutenção nem de tê-la provida por sua família.
-Ausente qualquer dos requisitos previstos no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, é inviável a
concessão do benefício assistencial.
-Mantida a condenação da parte autora ao pagamento de custas processuais e honorários de
advogado, já majorados em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º e 11, do
Código de Processo Civil, suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do
mesmo diploma processual, por tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
- Apelação não provida.
Acórdao
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5175092-23.2021.4.03.9999
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
RELATOR:Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: ISAEL CORREA
Advogados do(a) APELANTE: MARTA DE FATIMA MELO - SP186582-N, ANA LUCIA MONTE
SIAO - SP161814-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5175092-23.2021.4.03.9999
RELATOR:Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: ISAEL CORREA
Advogados do(a) APELANTE: MARTA DE FATIMA MELO - SP186582-N, ANA LUCIA MONTE
SIAO - SP161814-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
R E L A T Ó R I O
Cuida-se de apelação interposta pela parte autora em face dasentença que julgou improcedente
o pedido de benefício assistencialde prestação continuada ao deficiente, condenando-a ao
pagamento de verba honorária.
Nas razões recursais, alega o preenchimento dos requisitos necessários à concessão do
benefício e requera reforma do julgado.
Semcontrarrazões, os autos subiram a esta Corte.
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo desprovimento da apelação.
É o relatório.
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5175092-23.2021.4.03.9999
RELATOR:Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: ISAEL CORREA
Advogados do(a) APELANTE: MARTA DE FATIMA MELO - SP186582-N, ANA LUCIA MONTE
SIAO - SP161814-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
V O T O
Conheço daapelação, em razão da satisfação dos seus requisitos.
Discute-se nos autos o direito da parte autora a benefício assistencial de prestação continuada
previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, regulamentado, atualmente, pelos Decretos n.
6.214/2007 e 7.617/2011.
Essa lei conferiu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal (CF/1988) ao
estabelecer as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o
postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar a situação de
miserabilidade ou hipossuficiência, ou seja, não possuir meios de prover a própria manutenção
nem de tê-la provida por sua família.
DA HIPOSSUFICIÊNCIA OU MISERABILIDADE
A respeito do requisito objetivo, o tema foi levado à apreciação do Pretório Excelso por meio de
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), movida pelo Procurador Geral da República,
na qual, em meio à análise de outros temas, decidiu-se que o benefício de que trata o artigo
203, inciso V, da CF/1988 pode ser exigido somente a partir da edição da Lei n. 8.742/1993.
Trata-se da ADIN n. 1.232-2, de 27/8/1998, publicada no DJU de 1º/6/2001, de relatoria do
Ministro Maurício Correa (RTJ 154/818), na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) reputou
constitucional a restrição contida no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993.
Posteriormente, em controle difuso de constitucionalidade, o STF manteve aquele entendimento
(vide RE n. 213.736-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Informativo STF n. 179; RE 256.594-6, Rel.
Min. Ilmar Galvão, DJ 28/4/2000, Informativo STF n. 186; RE n. 280.663-3, São Paulo, j.
6/9/2001, Rel. Min. Maurício Corrêa).
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em vários precedentes, considerou que a
presunção objetiva absoluta de miserabilidade, da qual fala a lei, não afasta a possibilidade de
comprovação da condição de miserabilidade por outros meios de prova (REsp n. 435.871, 5ª T.,
Rel. Min. Felix Fischer, j. 19/9/2002, DJ 21/10/2002, p. 61;REsp n. 222.764, STJ, 5ªT,, Rel. Min.
Gilson Dipp, j. 13/2/2001, DJ 12/3/2001, p. 512; REsp n. 223.603/SP, STJ, 5ª T., Rel. Min.
Edson Vidigal, DJU 21/2/2000, p. 163).
Recentemente, o STF reviu seu posicionamento e, em sede de repercussão geral, reconheceu
que o requisito do artigo 20, §3º, da Lei n. 8.742/1993 não pode ser considerado taxativo (RE n.
580963, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n. 225, 14/11/2013).
No mesmo julgamento, ao examinar, incidenter tantum, a constitucionalidade do parágrafo
único do artigo 34 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), o Plenário do STF manifestou-se
pela “inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores de deficiência em
relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos
idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo”.
Referido normativo dispõe expressamente que o valor do benefício assistencial auferido por
idoso “não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a
LOAS”.
Contudo, diante do entendimento consagrado por ocasião do julgamento do RE n. 580963,
abriu-se a possibilidade de exclusão, do cálculo da renda familiar, dos benefícios assistenciais
recebidos por idosos e por deficientes e também dos benefícios previdenciários concedidos ao
idoso, no valor de até um salário mínimo.
A decisão concluiu, ainda, que a mera interpretação gramatical do preceito, por si só, pode
resultar no indeferimento da prestação assistencial em casos nos quais, embora o limite legal
de renda per capita seja ultrapassado, evidencia-se um quadro de notória hipossuficiência
econômica.
Essa insuficiência da regra decorre não apenas das modificações fáticas (políticas, econômicas
e sociais), mas principalmente das alterações legislativas que ocorreram no País desde a
edição da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993.
A legislação federal recente, por exemplo, reiterada pela adoção de vários programas
assistenciais destinados a famílias carentes, considera pobres aqueles que possuem renda
mensal per capita de até meio salário mínimo (nesse sentido, a Lei n. 9.533, de 10/12/1997,
regulamentada pelos Decretos n. 2.609/1998 e 2.728/1999, as Portarias n. 458 e 879, de
3/12/2001, da Secretaria da Assistência Social, o Decreto n. 4.102/2002, a Lei n. 10.689/2003,
criadora do Programa Nacional de Acesso à Alimentação).
Assim, não há como considerar o critério previsto no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993 como
absoluto e único para aferição da situação de miserabilidade, até porque o próprio Estado
Brasileiro elegeu outros parâmetros, como os defluentes da legislação acima citada.
Deve-se verificar, na questão in concreto, a ocorrência de situação de pobreza – entendida
como a falta de recursos e de acesso ao mínimo existencial –, para se concluir se é devida ou
não a prestação pecuniária da assistência social constitucionalmente prevista.
Assim, ao menos desde 14/11/2013 (RE n. 580963), o critério da miserabilidade contido no § 3º
do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 não impede o julgador de levar em conta outros dados, a fim
de identificar a situação de vida do idoso ou do deficiente, principalmente quando estiverem
presentes peculiaridades, a exemplo de necessidades especiais com medicamentos ou com
educação.
Nesse diapasão, podem-se estabelecer alguns parâmetros norteadores da análise individual de
cada caso, como, por exemplo: (i) todos os que recebem renda familiar per capita inferior a ¼
do salário mínimo são miseráveis; (ii) nem todos os que percebem renda familiar per capita
superior a ¼ do salário mínimo e inferior a ½ salário mínimo são miseráveis; (iii) nem todos os
que percebem renda familiar per capita superior a ½ salário mínimo deixam de ser miseráveis;
(iv) todos os que perceberem renda mensal familiar superior a um salário mínimo (artigo 7º, IV,
da CF/1988) não são miseráveis.
Dessa forma, em todos os casos, outras circunstâncias devem ser levadas em conta, mormente
se o patrimônio do requerente também se subsome à noção de hipossuficiência, devendo ser
apurado se vive em casa própria, com ou sem ar condicionado, se possui veículo, telefones
celulares, auxílio permanente de parentes ou de terceiros etc.
Cumpre salientar que o benefício de prestação continuada foi previsto, na impossibilidade de
atender a um público maior, para socorrer aos desamparados (artigo 6º, caput, da CF/1988), ou
seja, àquelas pessoas que nem sequer teriam possibilidade de equacionar um orçamento
doméstico, pelo fato de não terem renda ou de ser essa insignificante.
CONCEITO DE FAMÍLIA
Para apurar se a renda per capita do requerente atinge ou não o âmbito da hipossuficiência,
faz-se necessário abordar o conceito de família.
Nesse sentido, o artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 estabelecia, para efeitos de concessão do
benefício, os conceitos de família (conjunto de pessoas do artigo 16 da Lei n. 8.213/1991,
desde que vivendo sob o mesmo teto - § 1º), de pessoa portadora de deficiência (aquela
incapacitada para a vida independente e para o trabalho - § 2º) e de família incapacitada de
prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa (aquela com renda mensal
per capita inferior a um quarto do salário mínimo - § 3º).
A Lei n. 12.435, vigente desde 7/7/2011, alterou os §§ 1º e 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993
e estabeleceu que a família, para fins de concessão do benefício assistencial, deve ser aquela
composta pelo requerente, pelo cônjuge ou companheiro, pelos pais e, na ausência de um
deles, pela madrasta ou pelo padrasto, pelos irmãos solteiros, pelos filhos e enteados solteiros
e pelos menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Ao mesmo tempo, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e destes em
relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio artigo 203, V,
da CF/1988 estabelece que o benefício será devido quando o sustento não puder ser provido
pela família. Essa conclusão tem arrimo no princípio da solidariedade social, conformado no
artigo 3º, I, do Texto Magno.
Com isso, à guisa de regra mínima de coexistência entre as pessoas em sociedade, a técnica
de proteção social prioritária é a família, em cumprimento ao disposto no artigo 229 da CF/1988,
que assim estabelece: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os
filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
A propósito, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), ao
analisar um pedido de uniformização formulado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social
(INSS), fixou a tese de que “o benefício assistencial de prestação continuada pode ser
indeferido se ficar demonstrado que os devedores legais podem prestar alimentos civis sem
prejuízo de sua manutenção”.
A decisão foi proferida durante sessão realizada em 23/2/2017, em Brasília. Quanto ao mérito, o
relator afirmou em seu voto que a interpretação do artigo 20, §1º, da Lei n. 8.742/1993,
conforme as normas veiculadas pelos artigos 203, V, 229 e 230, da CF/1988, deve ser a de que
“a assistência social estatal não deve afastar a obrigação de prestar alimentos devidos pelos
parentes da pessoa em condição de miserabilidade socioeconômica (arts. 1694 e 1697, do
Código Civil), em obediência ao princípio da subsidiariedade”.
SUBSIDIARIEDADE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
À vista da preponderância do dever familiar de sustento, hospedado no artigo 229 da CF/1988,
a Assistência Social, tal como regulada na Lei n. 8.742/1993, terá caráter subsidiário em relação
às demais técnicas de proteção social (previdência social, previdência privada, caridade,
família, poupança etc.), considerada a gratuidade de suas prestações.
Com efeito, levando-se em conta o alto custo do pretendido “Estado de bem-estar social”,
forjado no Brasil pela Constituição Federal quando a grande maioria dos países europeus já
havia reconhecido sua inviabilidade financeira, é lícito inferir que ela só deve ser prestada em
casos de real necessidade, sob pena de comprometer – dada a crescente dificuldade de custeio
– a proteção social da coletividade, não apenas das futuras gerações, mas também da atual.
De fato, o benefício previsto no artigo 203, V, da CF/1988 tem o valor de 1 (um) salário mínimo,
ou seja, a mesma quantia paga a milhões de brasileiros que se aposentaram no Regime Geral
de Previdência Social mediante o pagamento de contribuições, durante vários anos.
Destarte, a assistência social deve ser fornecida com critério, pois, de outro modo, serão
gerados privilégios e desigualdades, em oposição à própria natureza dos direitos sociais, que é
a de propiciar igualdade e isonomia de condições a todos, observados os fins sociais (não
individuais) da norma, à luz do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
(LINDB).
Diga-se, de passagem, que a concessão indiscriminada do benefício assistencial, mediante
interpretação extensiva ou ampliativa dos requisitos constitucionais, geraria não apenas
injustiça aos contribuintes da previdência social, mas incentivo para que esses deixem de
contribuir, ou mesmo não se filiem ou não contribuam para a Seguridade Social, o que
constituiria situação anômala e gravíssima do ponto de vista atuarial, apta a comprometer o
custeio de todo o sistema.
É pertinente rememorar, in casu, o ensinamento do professor de direito previdenciário Wagner
Balera a respeito da dimensão do princípio da subsidiariedade:
“O Estado é, sobretudo, o guardião dos direitos e garantias dos indivíduos. Cumpre-lhe,
assinala Leão XIII, agir em favor dos fracos e dos indigentes exigindo que sejam por todos
respeitados os direitos dos pequenos. Mas, segundo o princípio da subsidiariedade - que é
noção fundamental para a compreensão do conteúdo da doutrina social cristã – o Estado não
deve sobrepor-se aos indivíduos e aos grupos sociais na condução do interesse coletivo. Há de
se configurar uma permanente simbiose entre o Estado e a sociedade, de tal sorte que ao
primeiro não cabe destruir, nem muito menos exaurir a dinâmica da vida social I (é o magistério
de Pio XI, na Encíclica comemorativa dos quarenta anos da 'RerumNovarum', a 'Quadragésimo
Anno', pontos 79-80).” (Centenárias Situações e Novidade da 'RerumNovarum', p. 545).
Por fim, quanto a esse tópico, é lícito concluir que quem está coberto pela previdência social
está, em regra, fora da abrangência da assistência social. Nesse sentido, prelecionou Celso
Bastos:
“A Assistência Social tem como propósito satisfazer as necessidades de pessoas que não
podem gozar dos benefícios previdenciários, mas o faz de uma maneira comedida, para não
incentivar seus assistidos à ociosidade. Concluímos, portanto, que os beneficiários da
previdência social estão automaticamente excluídos da assistência social. O benefício da
assistência social, frise-se, não pode ser cumulado pelo beneficiário com qualquer outro no
âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o de assistência médica.” (Celso Bastos
e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, 8o Vol., Saraiva, 2000, p. 429).
IDOSOS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Na hipótese de postulante idoso, a idade mínima de 70 (setenta) anos foi reduzida para 67
(sessenta e sete) anos pela Lei n. 9.720/1998, a partir de 1º de janeiro de 1998, e, mais
recentemente, para 65 (sessenta e cinco) anos, com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso
(Lei n. 10.741/2003).
No que se refere ao conceito de pessoa com deficiência - previsto no § 2º do artigo 20 da Lei n.
8.742/1993, com a redação dada pela Lei n. 13.146/2015, passou a ser considerada aquela
com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais,
em interação com diversas barreiras, possam obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Assim, ratificou-se o entendimento consolidado nesta Corte de que o rol previsto no art. 4º do
Decreto n. 3.298/1999 (regulamentador da Lei n. 7.853/1989, que dispõe sobre a Política
Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência) não era exaustivo. Constatado, portanto, que os
males sofridos pelo postulante impedem sua inserção social, restará preenchido um dos
requisitos exigidos para a percepção do benefício.
Menciona-se também o conceito apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU),
elaborado por meio da Resolução n. 3.447 (XXX): “1. O termo ‘pessoa deficiente’ refere-se a
qualquer pessoa incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de
uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em
suas capacidades físicas ou mentais”.
Esse conceito dá maior ênfase à necessidade, inclusive da vida individual, ao passo que o
conceito proposto por Luiz Alberto David Araujo prioriza a questão da integração social, como
se verá.
Nair Lemos Gonçalves apresentou os principais requisitos para sua definição: “desvio
acentuado dos mencionados padrões médios e sua relação com o desenvolvimento físico,
mental, sensorial ou emocional, considerados esses aspectos do desenvolvimento separada,
combinada ou globalmente” (Verbete Excepcionais. In: Enciclopédia Saraiva de Direito, n.
XXXIV. São Paulo: Saraiva, 1999).
Luiz Alberto David Araujo, por sua vez, compilou muitos significados da palavra “deficiente”,
extraídos dos dicionários de Língua Portuguesa. Observa ele que, geralmente, os dicionários
trazem a ideia de que a pessoa deficiente sofre de falta, de carência ou de falha.
Esse autor critica essas noções porque a ideia de deficiência não se apresenta tão simples, à
medida em que as noções de falta, de carência ou de falha não abrangem todas as situações
de deficiência, como, por exemplo, o caso dos superdotados, ou o de um portador do vírus HIV
que consiga levar a vida normalmente, sem manifestação da doença, ou ainda o de um
trabalhador intelectual que tenha um dedo amputado.
Por serem as noções de falta, de carência ou de falha insuficientes à caracterização da
deficiência, Luiz Alberto David Araujo propõe um norte mais seguro para a identificação da
pessoa protegida, cujo fator determinante do enquadramento ou não no conceito de pessoa
com deficiência seja o meio social:
“O indivíduo portador de deficiência, quer por falta, quer por excesso sensorial ou motor, deve
apresentar dificuldades para seu relacionamento social. O que define a pessoa portadora de
deficiência não é falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a
pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O
grau de dificuldade para a sua integração social é o que definirá quem é ou não portador de
deficiência.” (A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília:
Ministério da Justiça, 1997, p. 18-22)
Assim, quanto mais complexo o meio social, maior rigor se exigirá da pessoa com deficiência
para sua adaptação social. De outra parte, na vida em comunidades mais simples, como nos
meios agrícolas, a pessoa com deficiência poderá integrar-se com mais facilidade.
Desse modo, o conceito de Luiz Alberto David Araujo é adequado e de acordo com a norma
constitucional, motivo pelo qual é possível seu acolhimento para a caracterização desse grupo
de pessoas protegidas nas várias situações reguladas pela CF/1988, nos artigos 7º, XXXI, 23,
II, 24, XIV, 37, VIII, 203, V e 208, III.
Mas é preciso delimitar a proteção constitucional apenas àquelas pessoas que realmente dela
necessitam, porquanto existem graus de deficiência que apresentam menores dificuldades de
adaptação à pessoa. E essa verificação somente poderá ser feita diante de um caso concreto.
Luiz Alberto David Araujo salienta que os casos-limite podem, desde logo, ser excluídos, como
o exemplo do bibliotecário que perde um dedo ou do operário que perde um artelho; em ambos
os casos, as pessoas continuam integradas socialmente. Em outro exemplo, pequenas
manifestações de retardo mental (deficiência mental leve) podem passar despercebidas em
comunidades simples, pois essa pessoa poderá “não encontrar problemas de adaptação a sua
realidade social (escola, trabalho, família)”, de maneira que não se pode afirmar que ela deverá
receber proteção, “tal como aquele que sofre restrições sérias em seu meio social” (obra citada,
p. 42-43). E continua:
“A questão, assim, não se resolve sob o ângulo da deficiência, mas, sim sob o prisma da
integração social. Há pessoas portadoras de deficiência que não encontram qualquer problema
de adaptação no meio social. Dentro de uma comunidade de doentes, isolados por qualquer
motivo, a pessoa portadora de deficiência não encontra qualquer outro problema de integração,
pois todos têm o mesmo tipo de dificuldade” (obra citada, p. 43).
Enfim, a constatação da existência de graus de deficiência é de fundamental importância para
identificar aqueles que receberão a proteção social prevista no artigo 203, V, da CF/1988.
Feitas essas considerações, torna-se possível inferir que não será qualquer pessoa com
deficiência que se subsumirá no molde jurídico protetor da Assistência Social.
Noutro passo, o conceito de pessoa com deficiência, para fins de concessão do benefício de
amparo social, foi tipificado no artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, que em sua redação
original assim dispunha:
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela
incapacitada para a vida independente e para o trabalho.”
Como se vê, pressupunha-se que o deficiente era aquele que: (i) tinha necessidade de
trabalhar, mas não podia, em razão da deficiência; (ii) estava também incapacitado para a vida
independente. Assim, o benefício era devido a quem deveria trabalhar, mas não poderia e, além
disso, não tinha capacidade para a vida independente sem a ajuda de terceiros.
É lícito concluir que, tal como os benefícios previdenciários, o benefício de amparo social,
enquanto vigente a redação original do artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, era substitutivo do
salário. Isto é, era reservado aos que tinham a possibilidade jurídica de trabalhar, mas não
tinham a possibilidade física ou mental para tanto.
A redação original do artigo 20, § 2º, da LOAS, contudo, foi alterada pelo Congresso Nacional,
exatamente porque sua dicção gerava um sem número de controvérsias interpretativas na
jurisprudência, sobrevindo a Lei n. 12.435/2011, alterando o teor do dispositivo, que passou a
vigorar com a seguinte redação:
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se:
I - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas;
II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a
vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”
Com a novel legislação, o benefício continuou sendo destinado àqueles deficientes que: (i)
tinham necessidade de trabalhar, mas não podiam, por conta de limitações físicas ou mentais;
(ii) estavam também incapacitados para a vida independente.
Todavia, o legislador, não satisfeito, mais uma vez alterou o conceito de pessoa com
deficiência, introduzindo, pela Lei n. 12.470/2011, modificações no artigo 20, da Lei n.
8.742/1993:
“Art. 20 (...)
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela
que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os
quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
(...)
“§ 10 Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que
produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”
Nota-se que, com o advento dessa lei, dispensou-se a menção à incapacidade para o trabalho
ou à incapacidade para a vida independente como requisito à concessão do benefício
assistencial.
Finalmente, a Lei n. 13.146/2015, que “institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência”, com início de vigência em 02/01/2016, novamente alterou a redação do artigo 20,
§ 2º, da LOAS:
“§ 2º Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com
deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
Reafirma-se, assim, que o foco, doravante, para fins de identificação da pessoa com
deficiência, passa a ser a existência de impedimentos de longo prazo (que produza efeitos pelo
prazo mínimo de dois anos), apenas e tão somente, tornando-se despicienda a referência à
necessidade de trabalho.
RESERVA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
O benefício assistencial de prestação continuada não pode ser postulado como substituto de
aposentadoria por invalidez, atualmente denominada aposentadoria por incapacidade
permanente (Emenda Constitucional n. 103/2019).
Muitos casos de incapacidade temporária ou mesmo permanente para o trabalho devem ser
tutelados exclusivamente pelo seguro social (artigo 201, da CF/1988).
Afinal, a cobertura dos eventos (riscos sociais) incapacidade temporária ou permanente para o
trabalho depende do pagamento de contribuições, na forma dos artigos 201, caput e inciso I, da
CF/1988, abaixo transcrito:
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência
Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: I - cobertura dos eventos de
incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; (...)”.
Como se vê, a pretendida ampliação do espectro da norma do artigo 20, § 2º, da Lei n.
8.742/1993 encontra óbice na própria Constituição da República, segundo a qual caberá à
Previdência Social a cobertura dos eventos de incapacidade para o trabalho.
CASO CONCRETO
A parte autora, nascida em 16/5/1973,não pode ser considerada pessoa com deficiência para
fins assistenciais.
De acordo com a perícia médica judicial, realizada no dia 10/11/2020, o autor, qualificado no
laudo como trabalhador rural, não é portador de deficiência, em razão de monoplegia em
membro superior direito e monoparesia em membro inferior direito.
O perito esclareceu:
"O exame físico realizado no autor permitiu observar membro superior direito monoplégico e
monoparesia em membro inferior esquerdo, sem outros comemorativos. As lesões não
impedem a participação social do autor e não lhe trazem impedimentos para realizar atividades
cotidianas. Para os conceitos da CIF, as quais associam patologia e repercussões da vida
comum, o autor não apresenta impedimentos para a comunicação, para a realização de
atividades mentais complexas, para o autocuidado, para a função sexual, para o trato
financeiro, para deslocamentos".
Evidentemente, o juiz não está adstrito ao laudo pericial. Contudo, não há nos autos elementos
probatórios aptos a infirmarem as conclusões da perícia médica.
O autor nãopossui qualquer impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial,
que em interação com barreiras urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas
comunicações e nas informações, atitudinais e tecnológicas, possam obstruir sua participação
na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Assim, não ficou comprovada a alegada deficiência e, tampouco,caracterizado
comprometimento para realização de atividades cotidianas, sendolícito inferir que o autor não
necessita de supervisão ou assistência de terceiros para alimentação, higiene, locomoção,
comunicação etc.
Na realidade, elenão experimenta propriamente a segregação experimentada por pessoas com
deficiência.
Nesse contexto, como já explicitado neste voto, não é qualquer doença ou dificuldade que
caracteriza a condição de pessoa com deficiência para fins assistenciais.
De todo modo, in casu, a parte autora não se amolda ao conceito de pessoa com deficiência
tipificado no artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993.
A concessão do benefício assistencial requer a coexistência de requisitos cumulativos, a teor do
disposto no artigo 20, caput, da Lei n. 8.742/1993.
Assim, ausente o requisito subjetivo (deficiência), resta prejudicada a análise do requisito
objetivo (hipossuficiência), tornando-se inviável a concessão do benefício assistencial.
Fica mantida a condenação da parte autora a pagar custas processuais e honorários de
advogado, fixados em 12% sobre o valor da causa, já majorados em razão da fase recursal,
conforme critérios do artigo 85, §§ 1º e 11 do CPC, suspensa, porém, a exigibilidade, na forma
do artigo 98, § 3º, do mesmo diploma processual, por tratar-se de beneficiária da justiça
gratuita.
Diante do exposto, nego provimento à apelação.
É o voto.
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. DEFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA.
REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. SUCUMBÊNCIA RECURSAL.
- São condições para a concessão do benefício da assistência social: ser o postulante portador
de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir meios de prover a
própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
-Ausente qualquer dos requisitos previstos no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, é inviável a
concessão do benefício assistencial.
-Mantida a condenação da parte autora ao pagamento de custas processuais e honorários de
advogado, já majorados em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º e 11,
do Código de Processo Civil, suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do
mesmo diploma processual, por tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
- Apelação não provida. ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Nona Turma, por
unanimidade, decidiu negar provimento à apelação, nos termos do relatório e voto que ficam
fazendo parte integrante do presente julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA