Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP
5757545-86.2019.4.03.9999
Relator(a) para Acórdão
Desembargador Federal DALDICE MARIA SANTANA DE ALMEIDA
Relator(a)
Juiz Federal Convocado VANESSA VIEIRA DE MELLO
Órgão Julgador
9ª Turma
Data do Julgamento
19/06/2020
Data da Publicação/Fonte
Intimação via sistema DATA: 30/06/2020
Ementa
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. DEFICIENTE. MISERABILIDADE NÃO
CONFIGURADA. DEVER DE SUSTENTO. ARTIGO 229 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
INVIABILIDADE DA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO.
- São condições para a concessão do benefício da assistência social: ser o postulante portador de
deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir meios de prover a própria
manutenção nem de tê-la provida por sua família.
- O dever de sustento dos filhos (art. 229 da CF) não pode ser substituído pela intervenção
Estatal, pois o próprio artigo 203, V, da Constituição Federal estabelece que o benefício será
devido somente quando o sustento não puder ser provido pela família.
- Ausente o requisito objetivo (hipossuficiência), é indevido o benefício.
- Invertida a sucumbência, condeno a parte autora a pagar custas processuais e honorários de
advogado, arbitrados em 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados
em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 4º, III, do CPC,
suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
- Apelação provida.
Acórdao
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5757545-86.2019.4.03.9999
RELATOR:Gab. 32 - JUÍZA CONVOCADA LEILA PAIVA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: M. L. M. T.
REPRESENTANTE: MAYRA ARIANE DE SOUZA MARTINS
Advogado do(a) APELADO: LEONE LAFAIETE CARLIN - SP298060-N,
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5757545-86.2019.4.03.9999
RELATOR:Gab. 32 - JUÍZA CONVOCADA LEILA PAIVA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: M. L. M. T.
REPRESENTANTE: MAYRA ARIANE DE SOUZA MARTINS
Advogado do(a) APELADO: LEONE LAFAIETE CARLIN - SP298060-N,
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
Trata-se de recurso de apelação, interposto pelo INSS, em face da r. sentença, não submetida ao
reexame necessário, que julgou procedente o pedido deduzido na inicial, condenando a Autarquia
Previdenciária a conceder, à parte autora, o benefício assistencial a pessoa deficiente, desde a
data de indeferimento do requerimento administrativo, em 08/08/2016, discriminados os
consectários e arbitrada verba honorária em 15% do valor da condenação, incidente sobre as
parcelas vencidas até a sentença, nos termos da Súmula nº 111 do c. Superior Tribunal de
Justiça.
Postulao INSS, preambularmente, a recepção do apelo no duplo efeito. No mérito, pretende seja
reformado o julgado, sustentando, em síntese, a ausência de comprovação de miserabilidade.
Suscita, por fim, o prequestionamento legal para efeito de interposição de recursos.
Com as contrarrazões, subiram os autos a esta Corte.
O Ministério Público Federal manifestou sua ciência, requerendo a prossecução do feito.
É o relatório.
DECLARAÇÃO DE VOTO
A Exma. Sra. Desembargadora Federal Daldice Santana: A eminente relatora, Juíza Federal
Convocada Vanessa Mello, em seu fundamentado voto, negou provimento à apelação do INSS
para manter a concessão do benefício assistencial.
Ouso, porém, apresentar divergência, pelas seguintes razões.
Discute-se o preenchimento dos requisitos necessários à concessão do benefício assistencial de
prestação continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, regulamentado, atualmente,
pelos Decretos n. 6.214/2007 e 7.617/2011.
Essa lei deu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal, ao estabelecer, em seu
artigo 20, as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o
postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar a
miserabilidade ou a hipossuficiência, ou seja, não possuir meios de prover a própria manutenção
nem de tê-la provida por sua família.
Com a devida vênia, entendo não estar patenteada a miserabilidade para fins assistenciais.
Segundo o relatório socioeconômico (Id 70721775/70721776):
(i) a autora reside com os genitores e um irmão;
(ii) A moradia encontra-se em bom e confortável estado; compõe-se por três quartos, sala,
cozinha, banheiro e lavanderia nos fundos
(iii) O casal possui dois automóveis. Um Santana, ano 1986 e um Scort, ano 1988
Quanto à renda:
(i)o genitor aufere renda bruta mensal de, aproximadamente, um salário mínimo e a genitora
recebia, na competência 03/2018, o benefício de auxílio-doença, no valor de R$ 1.228,60,
passando em 15/04/2019 a recebendo R$ 1.560,17.
(ii) os gastos: supermercado (R$ 600,00), água (R$ 41,21) e energia elétrica (R$ 131,25),
contribuições previdenciárias do genitor, incidentes sobre um salário mínimo, telefone fixo (R$
130,76) e prestação do CDHU (R$ 120,61).
Nessas circunstâncias, embora evidentemente a parte autora seja pobre, certo é que não se
encontra em situação de miserabilidade, uma vez que possui condições razoáveis de moradia e
de sobrevivência, até porque a família pode despender recursos com combustível/manutenção de
um veículo, contribuições previdenciárias, prestação CDHU e telefone fixo.
Ressalte-se que o já mencionado artigo 203, V, da Constituição Federal é claro ao estabelecer
que, para fins de concessão desse benefício, a responsabilidade do Estado é subsidiária.
Vale dizer: o benefício somente deve ser concedido àqueles que comprovem não possuir meios
de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Não se destina à
complementação de renda familiar.
Nesse sentido, reporto-me ao seguinte julgado (g. n.):
“CONSTITUCIONAL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA - ART. 203, INCISO V, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA. IMPROCEDÊNCIA
MANTIDA.
I - O Supremo Tribunal Federal, no RE n. 567.985, reconheceu a inconstitucionalidade parcial,
sem pronúncia de nulidade, do art.20, §3º, da Lei nº 8.742/93, e do art. 34, par. único, da Lei nº
10.741/2003.
II - a autora contava com 68 (sessenta e oito) anos, na data do requerimento administrativo, tendo
por isso a condição de idosa.
III - Os elementos de prova existentes nos autos apontam em sentido contrário à alegada
miserabilidade da autora.
V - Na época do estudo social, as despesas giravam em torno de R$ 1.300,00, consistindo em
alimentação, água, energia elétrica, farmácia e gás; ou seja, as despesas eram inferiores às
receitas.
VI - A autora não vive em situação de risco social ou vulnerabilidade social, não podendo o
benefício assistencial ser utilizado para fins de complementação de renda.
VII - O benefício assistencial não tem por fim a complementação da renda familiar ou
proporcionar maior conforto ao beneficiário, mas sim, destina-se ao idoso ou deficiente em estado
de penúria, que comprove os requisitos legais, sob pena de ser concedido indiscriminadamente
em prejuízo daqueles que realmente necessitam, na forma da lei.
VIII - Apelação improvida.”
(TRF 3ª Região - AC n. 5562391-33.2019.4.03.9999 - 9ª Turma - Rel. Des. Fed. Marisa Santos -
05/11/2019, e-DJF3 Judicial 1, Data: 07/11/2019)
Assim, embora o pretendido benefício pudesse melhorar o padrão de vida do postulante e de sua
família, o sistema de assistência social foi concebido para auxiliar pessoas em situação de
penúria (incapazes de sobrevivência sem a ação do Estado), e não para incremento de padrão de
vida.
Diante do exposto, dou provimento à apelação do INSS, para julgar improcedente o pedido.
Invertida a sucumbência, condeno a parte autora a pagar custas processuais e honorários de
advogado, arbitrados em 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados
em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 4º, III, do CPC,
ficando, porém, suspensa a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo diploma legal,
por tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
É o voto.
DALDICE SANTANA
Desembargadora Federal
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5757545-86.2019.4.03.9999
RELATOR:Gab. 32 -JUÍZA CONVOCADA LEILA PAIVA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: M. L. M. T.
REPRESENTANTE: MAYRA ARIANE DE SOUZA MARTINS
Advogado do(a) APELADO: LEONE LAFAIETE CARLIN - SP298060-N,
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
Afigura-se correta a não submissão da r. sentença à remessa oficial.
De fato, o art. 496, § 3º, inciso I do Código de Processo Civil atual, que entrou em vigor em 18 de
março de 2016, dispõe que a sentença não será submetida ao reexame necessário quando a
condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a 1.000
(mil) salários mínimos, em desfavor da União ou das respectivas autarquias e fundações de
direito público.
No caso dos autos, considero as datas do termo inicial do benefício e da prolação da sentença,
em 26/01/2018 (doc. 70721813). Atenho-me ao valor da benesse, de um salário mínimo. Verifico
que a hipótese em exame não excede os mil salários mínimos.
Não sendo, pois, o caso de submeter o decisum de primeiro grau à remessa oficial, passo à
análise do recurso em seus exatos limites, uma vez cumpridos os requisitos de admissibilidade
previstos no Código de Processo Civil atual.
Previsto no art. 203, caput, da Constituição Federal e disciplinado pela Lei nº 8.742/1993, de
natureza assistencial e não previdenciária, o benefício de prestação continuada tem sua
concessão desvinculada do cumprimento dos quesitos de carência e de qualidade de segurado,
atrelando-se, cumulativamente, ao implemento de requisito etário ou à detecção de deficiência,
nos termos do art. 20, §2º, da Lei n° 8.742/93, demonstrada por exame pericial; à verificação da
ausência de meios hábeis ao provimento da subsistência do postulante da benesse, ou de tê-lo
suprido pela família; e, originalmente, à constatação de renda mensal per capita não superior a ¼
(um quarto) do salário mínimo. Recorde-se, a este passo, da sucessiva redução da idade mínima,
primeiramente de 70 para 67 anos, pelo art. 1º da Lei nº 9.720/98 e, ao depois, para 65 anos,
conforme art. 34 da Lei nº 10.741/ 2003.
No que diz respeito ao critério da deficiência, as sucessivas alterações legislativas ocorridas na
redação do § 2º, do art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social demonstram a evidente
evolução na sua conceituação.
Em sua redação originária, a Lei 8.742/1993 definia a pessoa portadora de deficiência, para efeito
de concessão do benefício assistencial, aquela incapacitada para a vida independente e para o
trabalho.
Posteriormente, a Lei n. 12.435/2011 promoveu modificação ao dispositivo legal, ampliando o
conceito de deficiência, com base no Decreto n. 6.949/2009, que promulgou a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
O § 2º da art. 20 da Lei n. 8.742 passou então a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 20
(...)
§ 2º - para efeito de concessão deste benefício, considera-se:
I - pessoa com deficiência, aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.
II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida
independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos."
Vê-se, portanto, que ao fixar o entendimento da expressão "impedimentos de longo prazo", a Lei
n. 12.435/2011 optou por restringir a concessão do benefício exclusivamente às pessoas com
deficiência que apresentem incapacidade para a vida independente e para o trabalho pelo prazo
mínimo de 2 (dois) anos.
Atualmente, o dispositivo em exame encontra-se vigendo com a redação conferida pelo Estatuto
da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146/2015, a qual explicitou a definição legal de pessoa com
deficiência:
"Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com
deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."
De se registrar que o § 10 do mesmo dispositivo, incluído pela Lei n. 12.470/2011, considera de
longo prazo o impedimento cujos efeitos perduram pelo prazo mínimo de 02 (dois) anos.
No caso de crianças e adolescentes menores de dezesseis anos de idade, deve ser avaliada,
para tanto, "a existência da deficiência e o seu impacto na limitação do desempenho de atividade
e restrição da participação social, compatível com a idade", ex vi do art. 4º, inciso II e § 1º, do
Decreto nº 6.214/2007, que regulamenta o benefício de prestação continuada da assistência
social de que trata a Lei n° 8.742/93, tornando-se despiciendo o exame da inaptidão laboral, na
esteira do precedente da Terceira Seção deste E. Tribunal, in verbis:
“PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES. BENEFÍCIO DE
PRESTAÇÃO CONTINUADA. MENOR. DEFICIÊNCIA FÍSICA E MENTAL. HIPOSSUFICIÊNCIA
ECONÔMICA. COMPROVAÇÃO. I - As limitações físicas e mentais de que padece o
demandante, apontadas pelo próprio expert e pela fisioterapeuta que o acompanha, impõem-lhe
significativas restrições às atividades típicas de sua idade (correr, participar de brincadeiras,
acompanhar satisfatoriamente a escola), não sendo necessário perquirir quanto à existência ou
não de capacidade laborativa, a teor do art. 4º, §2º, doDecretonº 6.214/2007. (...) V - Embargos
Infringentes do INSS a que se nega provimento.” (EI 994950, Relator Desembargador Federal
Sergio Nascimento, j. 25/08/2011, e-DJF3 14/09/2011)
Ainda, o posicionamento da Nona Turma deste E. Tribunal no mesmo sentido, nos seguintes
julgados: AC 0008758-60.2016.4.03.9999, D.E. 24/11/2016; AC 0002545-37.2013.4.03.6121,
D.E. 04/11/2016; AC 0007387-51.2012.4.03.6103, D.E. 24/11/2016.
Acerca do derradeiro pressuposto, o C. STF, no âmbito da Reclamação nº 4374 e dos Recursos
Extraordinários nºs. 567985 e 580963, submetidos à sistemática da repercussão geral, reputou
defasado esse método aritmético de aferição de contexto de miserabilidade, suplantando, assim,
o que outrora restou decidido na ADI 1.232-DF, ajuizada pelo Procurador-Geral da República e
em cujo âmbito se declarara a constitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93. A
motivação empregada pela Excelsa Corte, no RE nº 580963, reside no fato de terem sido
"editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios
assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que
instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa
Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios
que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas".
À vista disso, a mensuração da hipossuficiência não mais se restringe ao parâmetro da renda
familiar, devendo, sim, aflorar da análise desse requisito e das demais circunstâncias concretas
de cada caso, na linha do que já preconizava a jurisprudência majoritária, no sentido de que a
diretiva do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não consistiria em singular meio para se verificar a
condição de miserabilidade preceituada na Carta Magna, cuidando-se, tão-apenas, de critério
objetivo mínimo, a revelar a impossibilidade de subsistência do portador de deficiência e do idoso,
não empecendo a utilização, pelo julgador, de outros fatores igualmente capazes de denotar a
condição de precariedade financeira da parte autora. Veja-se, a exemplo, STJ: REsp nº
314264/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Félix Fischer, j. 15/05/2001, v.u., DJ 18/06/2001, p. 185;
EDcl no AgRg no REsp 658705/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Felix Fischer, j. 08/03/2005, v.u., DJ
04/04/2005, p. 342; REsp 308711/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 19/09/2002,
v.u., DJ 10/03/2003, p. 323.
Em plena sintonia com o acima esposado, o c. STJ, quando da apreciação do RESP n.
1.112.557/MG, acentuou que o art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93 comporta exegese tendente ao
amparo do cidadão vulnerável, donde concluir-se que a delimitação do valor de renda familiar per
capita não pode ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado.
Em substituição à diretriz inicialmente estampada na lei, a jurisprudência vem evoluindo para
eleger a renda mensal familiar per capita inferior à metade do salário mínimo como indicativo de
situação de precariedade financeira, tendo em conta que outros programas sociais, dentre eles o
bolsa família, o Programa Nacional de Acesso à Alimentação e o bolsa escola, instituídos pelas
Leis nºs 10.836/04, 10.689/03 e 10.219/01, nessa ordem, contemplam esse patamar.
Consultem-se arestos da Terceira Seção nesse diapasão:
“AGRAVO LEGAL EM EMBARGOS INFRINGENTES. PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL À PESSOA IDOSA. PREENCHIDOS OS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO
DO BENEFÍCIO. AGRAVO IMPROVIDO (...) 3 - Da análise do sistema CNIS/DATAPREV,
verifica-se que o filho da autora possui apenas pequenos vínculos de trabalho, na maioria inferior
a 03 meses, sendo que na maior parte do tempo esteve desempregado. Desse modo, mesmo
incluindo a aposentadoria do marido da autora, a renda familiar per capita corresponde a pouco
mais de R$ 300,00, ou seja, inferior a meio salário mínimo. 4 - Restou demonstrada, quantum
satis, no caso em comento, situação de miserabilidade, prevista no art. 20, § 3º, da Lei
8.742/1993, a ensejar a concessão do benefício assistencial. 5 - Agravo improvido." (EI
00072617120124036112, Relator Desembargador Federal Toru Yamamoto, TRF3, j. 22/10/2015,
e-DJF3 05/11/2015)
“PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL (LOAS). EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM
AGRAVO LEGAL. CARÁTER INFRINGENTE. IMPOSSIBILIDADE. CONTRADIÇÃO
INEXISTENTE. (...)- No caso em exame, não há omissão a ser sanada, sendo o benefício
indeferido pelo fato da renda familiar "per capita" ser superior a 1/2 salário mínimo. (...) 5-
Embargos de declaração rejeitados." (AR 00082598120084030000, Relator Juiz Convocado Silva
Neto, TRF3, j. 25/09/2014, e-DJF3 08/10/2014)
Nesse exercício de sopesamento do conjunto probatório, importa averiguar a necessidade, na
precisão da renda familiar, de abatimento do benefício de valor mínimo percebido por idoso ou
deficiente, pertencente à unidade familiar. Nesta quadra, há, inclusive, precedente do egrégio
STF, no julgamento do RE nº 580.963/PR, disponibilizado no DJe 14.11.2013, submetido à
sistemática da repercussão geral, em que se consagrou a inconstitucionalidade por omissão do
art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, considerando a "inexistência de justificativa
plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos
idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios
previdenciários no valor de até um salário mínimo.".
Quanto à questão da composição da renda familiar per capita, o C. STJ, no julgamento do RESP
n. 1.355.052/SP, exarado na sistemática dos recursos representativos de controvérsia, assentou,
no mesmo sentido, a aplicação analógica do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, com
vistas à exclusão do benefício previdenciário recebido por idoso ou por deficiente, no valor de um
salário mínimo, no cálculo da renda per capita prevista no art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93
De se realçar que a jurisprudência - antes, mesmo, do aludido recurso repetitivo - já se firmara no
sentido da exclusão de qualquer benefício de valor mínimo recebido por idoso com mais de 65
anos, por analogia ao disposto no art. 34, parágrafo único, da Lei nº 10.741/2003, preceito esse
que, na origem, limitava-se a autorizar a desconsideração de benefício de prestação continuada
percebido pelos referidos idosos.
Note-se que os precedentes não autorizam o descarte do benefício de valor mínimo recebido por
qualquer idoso, assim compreendidas pessoas com idade superior a 60 anos, mas, sim, pelos
idosos com idade superior a 65 anos.
Essa é a inteligência reinante na jurisprudência. A propósito, os seguintes julgados: STJ, AGP
8479, Rel. Des. Convocada Marilza Maynard, 3ª Seção, DJE 03/02/2014; STJ, AGP 8609, Rel.
Min. Assusete Magalhães, 3ª Seção, DJE 25/11/2013; STJ, AGRESP 1178377, Rel. Min. Maria
Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, DJE 19/3/2012. E da atenta leitura da íntegra do acórdão do
recurso representativo de controvérsia - nº 1.355.052/SP - chega-se à idêntica conclusão.
Outro dado sobremodo relevante diz respeito à acepção de família, para a finalidade da Lei nº
8.742/1993, cujo conceito experimentou modificação ao longo do tempo. Num primeiro lanço, o
art. 20, § 1º, do citado diploma nomeava família "a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo
teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes". Ao depois, a Lei nº 9.720,
em 30/11/98, fruto de conversão da Medida Provisória nº 1.473-34, de 11/08/97, passou a
compreendê-la como o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº 8.213/91, dês que
conviventes sob mesmo teto. Finalmente, na vigência da Lei nº 12.435/2011, é havida como o
núcleo integrado pelo requerente, cônjuge ou companheiro, os pais, ou, na ausência destes, pela
madrasta ou padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados,
todos, também, sob o mesmo teto.
SITUAÇÃO DOS AUTOS
Na espécie, o requisito da deficiência restou incontroverso no átrio judicial.
Apenas, por elucidativo, o laudo médico colacionado ao doc. 70721792, realizado em 22/04/2017,
considerou a autora, então, com dois anos de idade, portadora de deficiência auditiva,
necessitando do auxílio de terceiros em suas atividades diárias, de maneira mais acentuada que
as demais crianças de mesma faixa etária, por conta da deficiência física que a acomete.
Avançando, então, na análise da hipossuficiência, importa examinar o estudo social coligido aos
docs. 70721775 e 70721776, produzido em 30/03/2017.
Segundo o laudo adrede confeccionado, a autora reside no município de Junqueirópolis/SP, com
os genitores e um irmão. Não há indicação da idade do pai, a mãe, tem 41 anos, e o irmão, 14
anos, idades correspondentes à data do estudo socioeconômico.
Transcrevo excerto do laudo, sobre as condições de moradia:
“A moradia da família foi construída pelo CDHU, encontra-se toda forrada, com piso, tendo um
estado geral de moradia que pode ser considerado bom e confortável para os familiares. Também
possui ampliações. A rua possui asfalto, porém a localização da casa é em um lugar bem
afastado, tendo como vizinhos de frente pasto, e muito mato. Os móveis apresentam bom estado
de conservação.”
A residência compõe-se por três quartos, sala, cozinha, banheiro e lavanderia nos fundos.
O genitor trabalha como autônomo em uma borracharia. Sofre com alcoolismo, “ficando violento
verbalmente”.
A genitora, que trabalhava como enfermeira, encontra-se em gozo do benefício de auxílio-doença
. Apresenta depressão e vitiligo.
Merecem transcrição os relatos da assistente social e da fonoaudióloga do município, que
acompanharam o caso:
“Na assistência social, a Srª Eliane da Silva Caldeira (Assistente Social), informou não existir
cadastro em nome da requerente ou de seus pais. Mas disse conhecer o caso, e faz visitas à
família. Verbalizou que a mãe passa por depressão, que não aceita o problema da filha, e se
recusa a deixar sua filha ser atendida pela rede de saúde municipal, alegando não pussuírem os
recursos necessários. Também lembrou que a última visita feita, a Srª Mayra estava afastada do
serviço de enfermeira, devido à depressão, mas que continuava recebendo. Declarou ainda que a
situação da família é muito delicada, pois a depressão da Srª Mayra parece estar piorando, pois
os pais se recusam a aceitar o estado da filha, o esposo não ajuda muito devido ao problema com
álcool, deixando o relacionamento e a convivência dentro da casa muito frágil. A Srª Mayra, por
sua vez, já estando com depressão e tendo que lidar com esta situação, sem ter o apoio
financeiro e emocional do esposo, já chegou a dizeres como ‘dar a filha embora’, ‘não saber como
fazer para viver’.
Entrei em contato com a fonoaudióloga do município, Srª Paula Rodrigues Vicentin, a qual relatou
que tem ligado insistentemente, por várias semanas, solicitando à mãe da periciada que a leve
para iniciar tratamento, mas ela se recusa, dizendo que o município não possui recursos
necessários. Contou que o último contato que teve com mãe e filha foi para a entrevista”.
Quanto ao irmão da proponente, é estudante, portador de asma, pneumonia e bronquite. Sofreu
um acidente em idos de 2010, tendo como sequela o surgimento de cistos por todo o corpo, que
necessitam ser retirados, com biópsia. Não há cura definitiva.
A vindicante não se adaptou ao aparelho auditivo. Foi reportado, pela genitora, que a mesma
necessita de tratamento com fonoaudióloga, no mínimo, duas vezes por semana, bem como de
sessões de fisioterapia e ecoterapia. Os tratamentos com fonoaudiologista e fisioterápico vinham
sendo realizados, por força de decisão judicial, contudo, após um ano, “foram cortados”. Quanto à
ecoterapia, intentou, também, ação judicial, ainda em tramitação.
Diante da fragilidade de saúde, a requerente utiliza médicos particulares algumas vezes, mesmo
sem condições financeiras.
Recentemente, passou em emergência com pediatra, por não ter conseguido atendimento
satisfatório na Santa Casa do município, quando contraiu pneumonia, requerendo internação.
Passa, agora, em consulta, uma vez ao mês. Em horário comercial, o valor da consulta é de R$
180,00, e, na emergência, R$ 250,00.
A autora apresenta imunidade baixa e "dificuldade para defecar, sendo necessário tomar laxante,
fazer massagem e até ajuda na retirada das fezes, o que a mãe precisa fazer todas as vezes que
o intestino funciona". Ainda usa fraldas.
Além disso, “a alimentação da requerente é sempre como se fosse papinha amassada, pois a
Maria Luíza se engasga com muita facilidade”.
Diante da dificuldade de engolir, gasta-se muito com leite especial, Neslac Comfor, ao custo de
R$ 40,00 a lata, “que dá somente para 05 dias”.
A maior parte dos medicamentos dos quais a família necessita, é adquirida em farmácias
particulares, dispendendo-se, para tanto, cerca de um salário mínimo.
Os demais gastos consistiam em supermercado (R$ 600,00), tarifas de água (R$ 41,21) e energia
elétrica (R$ 131,25), contribuições previdenciárias do genitor, incidentes sobre um salário mínimo,
conforme doc. 70721829 (R$ 103,07), telefone fixo (R$ 130,76) e prestação do CDHU (R$
120,61).
O casal afirmou “não passar fome”, mas não sabe o que fazer “para pagar e atender às
necessidades médicas e alimentares dos filhos, em especial, da filha”.
A família recebe o auxílio dos avós maternos, com alimentação, e de vizinhos, nos afazeres
domésticos. No entanto, a situação agravou-se, pois o avô iniciou tratamento para câncer de
próstata.
O casal possui dois automóveis. Um Santana, ano 1986, no valor, aproximado, de R$ 3.000,00. O
outro veículo, um Scort, ano 1988, igualmente, avaliado em R$ 3.000,00, foi transferido à
genitora, por seu pai, “para evitar que caso o pai venha a falecer, seja necessário fazer um
inventário”.
No que tange aos ganhos da família, o genitor aufere renda bruta mensal de, aproximadamente,
um salário mínimo, “quando acontece bastante procura no mês”. Trabalha em prédio cedido, há
cerca de cinco anos, sendo responsável pelas contas mensais de água (R$ 27,00), energia
elétrica (R$ 77,00) e pelo alvará de funcionamento (R$ 280,00, anuais). As informações foram
corroboradas pelo proprietário do prédio, que, no mais, afirmou “que as condições financeiras da
borracharia são bem difíceis, pois quase não se vê movimento no estabelecimento e a estrutura é
bastante precária”.
Consoante registros do CNIS, colacionados aos docs. 70721823 e 101910068, a genitora
recebia, na competência 03/2018, o benefício de auxílio-doença, no valor de R$ 1.228,60. Em
15/04/2019 passou a titularizar o benefício de aposentadoria por invalidez, recebendo R$
1.560,17.
De se esclarecer que, no ano de 2018, o salário mínimo era de R$ 954,00, e, no ano de 2019, de
R$ 998,00.
Considerando os ganhos da família, tem-se, em 03/2018, renda per capita de R$ 545,65, e, a
partir da aposentação da genitora, de R$ 641,54.
Conquanto suplante a metade do salário mínimo, os elementos de convicção coligidos aos autos
propiciam intuir estar a requerente incluída no rol de beneficiários da verba reclamada, mormente
diante da dinâmica familiar registrada pela assistente social do juízo, inclusive, em suas questões
de saúde, aliada, em relação aos pais, ao “total desconhecimento de como agir, a quem recorrer,
sem conseguirem realizar coisas simples como ensinar a filha a sair das fraldas, a como saber
quando a filha está com fome, ou o que ela quer comer, se está com sede, a entender onde sente
dor quando está doente, ou seja, simplesmente não conseguem se comunicar”.
Reforça mais essa conclusão, a opinião da perita no sentido de que, do ponto de vista
sociológico, justifica-se a concessão do benefício assistencial requerido, para que a parte autora
tenha suas necessidades atendidas e possa ser bem preparada para a fase adulta.
Assim, restou demonstrada situação de hipossuficiência econômica, como indicado no sobredito
paradigma do C. Supremo Tribunal Federal, exarado em repercussão geral, a autorizar o implante
da benesse nos moldes do comando sentencial.
Diante da sucumbência recursal e da regra prevista no § 11 do art. 85 do Código de Processo
Civil, considerando a devida majoração da verba honorária, seu percentual passa a ser fixado em
20% sobre a base cálculo considerada pelo Juízo a quo.
Acerca do prequestionamento suscitado, assinalo não haver qualquer infringência à legislação
federal ou a dispositivos constitucionais.
Por fim, tendo em vista o teor da presente decisão, resta prejudicado o pleito de efeito suspensivo
formulado pelo INSS em suas razões recursais.
Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO À APELAÇÃO DO INSS. Majoro a verba honorária de
sucumbência recursal, na forma delineada.
É como voto.
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. DEFICIENTE. MISERABILIDADE NÃO
CONFIGURADA. DEVER DE SUSTENTO. ARTIGO 229 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
INVIABILIDADE DA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO.
- São condições para a concessão do benefício da assistência social: ser o postulante portador de
deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir meios de prover a própria
manutenção nem de tê-la provida por sua família.
- O dever de sustento dos filhos (art. 229 da CF) não pode ser substituído pela intervenção
Estatal, pois o próprio artigo 203, V, da Constituição Federal estabelece que o benefício será
devido somente quando o sustento não puder ser provido pela família.
- Ausente o requisito objetivo (hipossuficiência), é indevido o benefício.
- Invertida a sucumbência, condeno a parte autora a pagar custas processuais e honorários de
advogado, arbitrados em 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados
em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 4º, III, do CPC,
suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por
tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
- Apelação provida. ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Nona Turma, por maioria,
decidiu dar provimento à apelação do INSS, nos termos do voto da Desembargadora Federal
Daldice Santana, que foi acompanhada pelo Desembargador Federal Gilberto Jordan (4º voto) e
pela Desembargadora Federal Inês Virgínia (5º voto). Vencida a então Relatora, Juíza Federal
Convocada Vanessa Mello, que negava provimento à apelação, no que foi acompanhada pela
Desembargadora Federal Marisa Santos. Julgamento nos termos do disposto no art. 942, caput e
§ 1º, do CPC. Lavrará acórdão a Desembargadora Federal Daldice Santana
, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA
