Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP
0003483-28.2019.4.03.9999
Relator(a)
Desembargador Federal GILBERTO RODRIGUES JORDAN
Órgão Julgador
9ª Turma
Data do Julgamento
22/07/2021
Data da Publicação/Fonte
DJEN DATA: 29/07/2021
Ementa
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E
12.435/2011. DEVOLUÇÃO DE VALORES. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA.
RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS.
DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
- Pedido de declaração de inexigibilidade de débitos não analisado. Sentença citra petita.
Anulada.
- O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), fixou a seguinte
tese: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo
(material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela
administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do
benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do
caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era
possível constatar o pagamento indevido."
- A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma.
Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta
como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o
poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria
uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em
28/06/2007).
- Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
equívoco administrativo na concessão do benefício, o que afasta a existência de má-fé.
- Ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé da parte autora e, em vista do caráter
alimentar do amparo social, inexigível a devolução dos valores já pagos.
- A Autarquia Federal não efetuou a reavaliação da continuidade das condições que originaram a
concessão do benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, nos termos do art. 21 da Lei de
Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214, fugindo à razoabilidade a tentativa de cobrar do Autor o
pagamento de quantia que alcançou monta tão vultosa, em consequência do extenso lapso
temporal em que o mesmo auferiu o referido benefício em suposto desacordo com a norma legal.
- O benefício de prestação continuada é devido ao portador de deficiência ou idoso que comprove
não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
- Na hipótese dos autos, a parte autora não comprovou o preenchimento do requisito legal da
miserabilidade.
- Os honorários advocatícios deverão ser fixados na liquidação do julgado.
- Sentença anulada.
- Pedido parcialmente procedente.
- Apelação prejudicada.
Acórdao
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº0003483-28.2019.4.03.9999
RELATOR:Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: SEBASTIAO TERUEL
Advogado do(a) APELANTE: SERGIO HENRIQUE ASSAF GUERRA - SP109193-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº0003483-28.2019.4.03.9999
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R E L A T Ó R I O
Trata-se de apelação em ação ajuizada em face do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO
SOCIAL - INSS, objetivando o restabelecimento do benefício assistencial previsto no art. 203,
V, da Constituição Federal, a declaração de inexigibilidade de débito relativo a valores
recebidos do benefício e indenização por dano moral.
A r. sentença (id 102975490 - Pág. 202/204) julgou improcedente o pedido de restabelecimento
do benefício assistencial, condenando a parte autora ao pagamento de custas, despesas
processuais e de honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor atualizado da causa,
observada a gratuidade da justiça.
Apelação da parte autora em que requer a reforma da r. sentença, com o restabelecimento do
benefício assistencial, a declaração de inexigibilidade do débito cobrado pelo INSS e
indenização por danos morais.
Subiram a esta instância.
Parecer do Ministério Público Federal (id 102974205 - Pág. 22/26) no sentido do desprovimento
do apelo.
É o sucinto relato.
vn
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº0003483-28.2019.4.03.9999
RELATOR:Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: SEBASTIAO TERUEL
Advogado do(a) APELANTE: SERGIO HENRIQUE ASSAF GUERRA - SP109193-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
V O T O
Inicialmente, tempestivo o recurso e respeitados os demais pressupostos de admissibilidade
recursais, passo ao exame da matéria objeto de devolução.
Conforme se verifica da r. sentença, o Juízo a quo não analisou o pedido de declaração de
inexigibilidade de débito cobrado pelo INSS, proferindo sentença citrapetita.
Conquanto seja nula a sentença, entendo que os autos estão em condições de julgamento e
passo à análise do mérito do pedido, a teor do art. 1.013, §3º, do CPC.
PODER DEVER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO
É assegurada à Administração Pública a possibilidade de revisão dos atos por ela praticados,
com base no seu poder de autotutela, conforme se observa, respectivamente, das Súmulas n.º
346 e 473 do Supremo Tribunal Federal:
"A administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos".
"A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou
oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação
judicial".
Também é pacífico o entendimento de que a mera suspeita de irregularidade, sem o regular
procedimento administrativo, não implica suspensão ou cancelamento unilateral do benefício,
por ser um ato perfeito e acabado. Aliás, é o que preceitua o artigo 5º, LV, da Constituição
Federal, ao consagrar como direito e garantia fundamental, o princípio do contraditório e da
ampla defesa, in verbis:
"Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Ainda, o art. 115, II, da lei 8213/91 impõe à autarquia a cobrança dos valores pagos
indevidamente, identificados em regular processo administrativo, sem comprovação na CTPS e
no CNIS.
DO ATO ILÍCITO
Todo aquele que cometer ato ilícito, fica obrigado a reparar o dano proveniente de sua conduta
ou omissão.
Confira-se o disposto no art. 186, do Código Civil:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito
e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Ainda sobre o tema objeto da ação, dispõem os artigos 876, 884 e 927 do Código Civil de 2002:
“Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação
que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.”
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a
restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187). causar dano a outrem. fica obrigado a
repará-lo.”
No que concerne à Previdência Social, é prevista no artigo 115 da Lei n. 8.213/91 a autorização
do INSS para descontar de benefícios os valores outrora pagos indevidamente:
"Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios: [...] II – pagamento de benefício além do
devido; [...] § 1º Na hipótese do inciso II, o desconto será feito em parcelas, conforme dispuser
o regulamento, salvo má-fé”.
Também, no Decreto n. 3.048/99:
“Art. 154. O Instituto Nacional do Seguro Social pode descontar da renda mensal do benefício:
[...] II – pagamentos de benefícios além do devido, observado o disposto nos §§ 2º ao 5º; [...] §
2º A restituição de importância recebida indevidamente por beneficiário da previdência so-cial,
nos casos comprovados de dolo, fraude ou má-fé, deverá ser atualizada nos moldes do art.
175, e feita de uma só vez ou mediante acordo de parcelamento na forma do art. 244,
independentemente de outras penalidades legais. (Redação dada pelo Decreto n. 5.699/06).”
DEVOLUÇÃO OU NÃO DE VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ
O e. Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), cuja questão
levada a julgamento foi a “Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de
benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da
Administração da Previdência Social”, fixou a seguinte tese:
"Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo
(material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela
administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do
benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do
caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era
possível constatar o pagamento indevido."
Extrai-se da tese fixada, portanto, que, para a eventual determinação de devolução de valores
recebidos indevidamente, decorrente de erro administrativo diverso de interpretação errônea ou
equivocada da lei, faz-se necessária a análise da presença, ou não, de boa-fé objetiva em sua
percepção.
A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma.
Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta
como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe
o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como
agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em
28/06/2007).
Por seu turno, leciona Carlos Roberto Gonçalves que “Guarda relação com o princípio de direito
segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que
presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao
julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva,
que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade,
honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e
costumes do lugar” (Direito Civil Brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais, Saraiva, 2013,
10ª ed., p. 54/61).
No caso dos autos, consoante correspondência remetida à parte autora (id 102975490 - Pág.
23), datada em 16.10.2014, o INSS relata a existência de irregularidade na manutenção de
benefício assistencial e noticia a cobrança de R$ 40.795,71.
A suposta irregularidade constatada pelo INSS refere-se à existência de vínculo empregatício e
gozo de benefício de auxílio-doença, em favor do cônjuge da parte autora, integrante do núcleo
familiar, que afastaria a possibilidade de manutenção do benefício assistencial por ausência do
cumprimento do requisito objetivo.
Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto
equívoco administrativo na concessão do benefício, o que pressupõe a boa-fé objetiva da parte
autora no recebimento dos valores recebidos, ora apontados pelo INSS como indevidos.
Assim sendo, ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé da parte autora e, em
vista do caráter alimentar do amparo social, entendo inexigível a devolução dos valores já
pagos.
Ademais, verifico que o INSS cessou o benefício do requerente, tão somente, em 01.11.2014
(id 102975490 - Pág. 75), decorrida quase uma década de seu termo inicial (em 16.10.2005) e
após mais de sete anos contados do início do registro de trabalho remunerado em nome do
cônjuge do requerente, que apontou como incompatível com a concessão do benefício
assistencial (a partir de 01.06.2007).
Portanto, a Autarquia Federal não efetuou a reavaliação da continuidade das condições que
originaram a concessão do benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, nos termos do art. 21 da
Lei de Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214, fugindo à razoabilidade a tentativa de cobrar
da parte autora o pagamento de quantia que alcançou monta tão vultosa, em consequência do
extenso lapso temporal em que a mesma auferiu o referido benefício em suposto desacordo
com a norma legal.
Passo a analisar o pedido de restabelecimento do benefício assistencial.
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL
A República Federativa do Brasil, conforme disposto no art. 1º, III, da Constituição Federal, tem
como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana que, segundo José Afonso da
Silva, consiste em:
"um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida. 'Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos
fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa
humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido
normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-
se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a
nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade
individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre
que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem
social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa
e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados
formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa
humana.'"
(Curso de Direito Constitucional Positivo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 106-107).
Para tornar efetivo este fundamento, diversos dispositivos foram contemplados na elaboração
da Carta Magna, dentre eles, o art. 7º, IV, que dispõe sobre as necessidades vitais básicas
como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social e o art. 203, IV, que instituiu o benefício do amparo social.
A Lei nº 6.179/74 instituiu, em nosso ordenamento jurídico, a renda mensal vitalícia, passando a
ser amparados pela Previdência Social os maiores de 70 anos e os inválidos, definitivamente
incapacitados para o trabalho, desde que não exercessem atividades remuneradas ou não
auferissem rendimentos. O valor do benefício correspondia à metade do maior salário-mínimo
vigente no país, arredondada para a unidade de cruzeiro imediatamente superior, não podendo
ultrapassar 60% do valor do salário-mínimo do local de pagamento.
Com a promulgação da Carta Magna, em 05 de outubro de 1988, o valor do benefício foi
aumentado para 1 (um) salário-mínimo, pelo art. 203, inciso V:
"Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de
contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei."
Entretanto, o supracitado inciso, por ser uma norma constitucional de eficácia limitada,
dependia da edição de uma norma posterior para produzir os seus efeitos.
O art. 139 da Lei n.º 8.213/91 dispunha que a renda mensal vitalícia continuaria integrando o
elenco de benefícios da Previdência Social, até que o artigo constitucional fosse
regulamentado.
A Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, deu eficácia ao inciso V do art. 203 da Constituição
Federal e extinguiu a renda mensal vitalícia em seu art. 40, resguardando, entretanto, o direito
daqueles que o requeressem até o dia 31 de dezembro de 1995, desde que preenchidos os
requisitos previstos na Lei Previdenciária.
A Lei de Assistência foi regulamentada pelo Decreto nº 1.744, de 8 de dezembro de 1995,
posteriormente, pelo Decreto nº 6.214, de 26 de setembro de 2007.
O art. 20 da Lei assistencial e o art. 1º de seu decreto regulamentar estabeleceram os requisitos
para a concessão do benefício, quais sejam: ser o requerente portador de deficiência ou idoso,
com 70 anos ou mais e que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e
nem tê-la provida por sua família. A idade mínima de 70 anos foi reduzida para 67 anos, a partir
de 1º de janeiro de 1998, pelo art. 1º da Lei nº 9.720/98 e, posteriormente, para 65 anos,
através do art. 34 da Lei nº 10.741 de 01 de outubro de 2003, mantida, inclusive, por ocasião da
edição da Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011.
Os mesmos dispositivos legais disciplinaram o que consideram como pessoa portadora de
deficiência, família e ausência de condições de se manter ou de ser provido pela sua família.
Pessoa portadora de deficiência é a incapacitada para a vida independente e para o trabalho,
em decorrência de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena
e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, na redação dada
pela Lei nº 12.470, de 31 de agosto de 2011.
O impedimento de longo prazo, a seu turno, é aquele que produz seus efeitos pelo prazo
mínimo de 2 (dois) anos (§10º).
A incapacidade para a vida independente, por sua vez, não há que ser entendida como aquela
que impeça a execução de todos os atos da vida diária, para os quais se faria necessário o
auxílio permanente de terceiros, mas a impossibilidade de prover o seu sustento sem o amparo
de alguém.
Neste sentido, o entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça, em julgado da lavra do
Ministro Relator Gilson Dipp (5ª Turma, REsp nº 360.202, 04.06.2002, DJU 01.07.2002, p. 377),
oportunidade em que se consignou: "O laudo pericial que atesta a incapacidade para a vida
laboral e a capacidade para a vida independente, pelo simples fato da pessoa não necessitar da
ajuda de outros para se alimentar, fazer sua higiene ou se vestir, não pode obstar a percepção
do benefício, pois, se esta fosse a conceituação de vida independente, o benefício de prestação
continuada só seria devido aos portadores de deficiência tal, que suprimisse a capacidade de
locomoção do indivíduo - o que não parece ser o intuito do legislador".
No que se refere à hipossuficiência econômica, de acordo com a Medida Provisória nº 1.473-34,
de 11.08.97, transformada na Lei nº 9.720, em 30.11.98, definiu-se o conceito de família como o
conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº 8.213/91, desde que vivendo sob o mesmo
teto. Com a superveniência da Lei nº 12.435/2011, fora estabelecido, expressamente para os
fins do art. 20, caput, da Lei assistencial, ser a família composta pelo requerente, cônjuge ou
companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos
solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo
teto (art. 20, §1º).
Já no que diz respeito ao limite de ¼ do salário mínimo per capita como critério objetivo, anoto
que fora ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232-1/DF, pelo Procurador-Geral
da República, julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a
constitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93.
Os debates, entretanto, não cessaram, por ser tormentosa a questão e envolver princípios
fundamentais contidos na Carta da República, situação que culminou, inclusive, com o
reconhecimento, pelo mesmo STF, da ocorrência de repercussão geral.
A Suprema Corte acabou por declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal,
inclusive por considerar defasada essa forma meramente aritmética de se apreciar a situação
de miserabilidade dos idosos ou deficientes que visam a concessão do benefício assistencial
(Plenário, RCL 4374, j. 18.04.2013, DJE de 04/09/2013).
No entanto, é preciso que se tenha a possibilidade de ao menos entrever, a partir da renda
informada, eventual quadro de pobreza em função da situação específica de quem pleiteia o
benefício, até que o Poder Legislativo estabeleça novas regras.
Para tanto, faz-se necessário o revolvimento de todo o conjunto probatório, através do qual se
possa aferir eventual miserabilidade. E assim o é diante do princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana, já mencionado no início desta decisão, com vistas à garantia de suas
necessidades básicas de subsistência, o que leva o julgador a interpretar a normação legal de
sorte a conceder proteção social ao cidadão economicamente vulnerável, tal como assentado
no REsp 1112557 julgado sob o rito do art. 543-C do CPC/73.
Confira-se:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA
CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA,
QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO
SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e
ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98,
dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas
portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja
família possua renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade
dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para
o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana,
especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse
dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e
economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de
se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de
tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade,
ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita
inferior a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art.
131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do
valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de
miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a
determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido.
(REsp 1112557/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO,
julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009)
Por outro lado, observo que a Lei nº 12.470, de 31 de agosto de 2011, passou a considerar
como de "baixa renda" a família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo
Federal cuja renda mensal seja de até 2 (dois) salários mínimos, ainda que para os fins
específicos de custeio ali limitado. Na mesma trilha, as Leis que criaram o Bolsa Família
(10.836/04), Programa Nacional de Acesso à Alimentação (10.689/03) e o Bolsa Escola
(10.219/01) estabeleceram parâmetros mais coerentes de renda familiar mínima quanto em
cotejo com aquele estabelecido de ¼ do salário mínimo, agora declarado inconstitucional.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 580.963/PR (DJe 14.11.2013),
assentou a inconstitucionalidade por omissão do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do
Idoso, considerando a "inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores
de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social
em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário
mínimo." Assim, entendo que deve ser excluído do cômputo da renda per capita o valor
decorrente de benefício de valor mínimo recebido por idoso ou inválido, pertencente ao núcleo
familiar.
Nesse sentido, o C. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1355052, submetido
ao regimento do art. 543-C do CPC, assentou que não se computa o valor de um salário
mínimo percebido por idoso a título de benefício assistencial ou previdenciário para aferição de
hipossuficiência de núcleo familiar.
PREVIDENCIÁRIO. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. CONCESSÃO DE
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL PREVISTO NA LEI N. 8.742/93 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA.
AFERIÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA DO NÚCLEO FAMILIAR. RENDA PER CAPITA.
IMPOSSIBILIDADE DE SE COMPUTAR PARA ESSE FIM O BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO,
NO VALOR DE UM SALÁRIO MÍNIMO, RECEBIDO POR IDOSO.
1. Recurso especial no qual se discute se o benefício previdenciário, recebido por idoso, no
valor de um salário mínimo, deve compor a renda familiar para fins de concessão ou não do
benefício de prestação mensal continuada a pessoa deficiente.
2. Com a finalidade para a qual é destinado o recurso especial submetido a julgamento pelo rito
do artigo 543-C do CPC, define-se: Aplica-se o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do
Idoso (Lei n. 10.741/03), por analogia, a pedido de benefício assistencial feito por pessoa com
deficiência a fim de que benefício previdenciário recebido por idoso, no valor de um salário
mínimo, não seja computado no cálculo da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei n.
8.742/93.
3. Recurso especial provido. Acórdão submetido à sistemática do § 7º do art. 543-C do Código
de Processo Civil e dos arts. 5º, II, e 6º, da Resolução STJ n. 08/2008.
(REsp 1355052 /SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em
25/02/2015, DJe 05/11/2015)
Feitas essas considerações, passo à análise do conjunto probatório formado nestes autos.
DO CASO DOS AUTOS
A ausência de condições de prover o sustento do Autor, ou tê-lo provido pela família, não restou
demonstrada.
O estudo social (id 102975490 - Pág. 177/179), de 31.07.2016, informou que o Autor vive com
seu cônjuge em imóvel próprio, composto por “03 dormitórios, sala, copa, cozinha e dois
banheiros. Os cômodos são amplos. A higiene e organização são bastante satisfatórias A casa
dispõe de eletrodomésticos como TV em cores, geladeira, fogão. O mobiliario antigo e bem
conservado”.
Foi informado que o Autor e sua esposa permanecem no imóvel acima descrito apenas durante
os finais de semana, visto que no restante do período moram em fazenda de propriedade de um
dos filhos do requerente, em casa cedida, inexistindo despesas com “água e energia”.
A renda familiar advém do benefício previdenciário auferido pela esposa do Autor, no valor de
um salário-mínimo mensal.
O casal é “dependente da filha Neiva no convênio do IAMSPE”.
Possuem um veículo da “marca UNO (ano 2009/2010)”.
Diante do conteúdo probatório dos autos, dispondo o requerente de estrutura e aparato de bens
visivelmente acima da média brasileira, a despeito de mencionar sobreviver com renda
insuficiente, entendo que não restou demonstrada a condição de miserabilidade, não estando o
Autor submetido a risco social.
O benefício assistencial é destinado a pessoas em condição de miserabilidade, que destoa da
apresentada pelo Autor, pois demonstrou viver em situação socioeconômica favorável se
comparada à realidade nacional.
Reforço que, nos termos da fundamentação, a verificação da condição de hipossuficiência não
se prende à mera análise aritmética da renda familiar, sendo “necessário o revolvimento de todo
o conjunto probatório, através do qual se possa aferir eventual miserabilidade”.
Desta forma, ausente requisito essencial à concessão do benefício assistencial, de rigor a sua
rejeição.
DO DANO MORAL
Prejudicado o pedido de indenização por danos morais, em vista do não preenchimento dos
requisitos necessários para a concessão do benefício.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
Com o advento do novo Código de Processo Civil, foram introduzidas profundas mudanças no
princípio da sucumbência e, em razão destas mudanças e sendo o caso de sentença ilíquida, a
fixação do percentual da verba honorária deverá ser definida somente na liquidação do julgado,
com observância ao disposto no inciso II, do § 4º c.c. § 11, ambos do artigo 85, do CPC/2015,
bem como o artigo 86, do mesmo diploma legal.
Ante o exposto, de ofício, anulo a r. sentença e, em novo julgamento, nos termos do §3º do art.
1.013 do CPC, julgo parcialmente procedente o pedido da parte autora, para declarar a
inexigibilidade da devolução dos valores pagos administrativamente, observados os honorários
advocatícios, na forma acima fundamentada. Prejudicada a apelação.
É o voto.
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E
12.435/2011. DEVOLUÇÃO DE VALORES. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA.
RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS.
DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
- Pedido de declaração de inexigibilidade de débitos não analisado. Sentença citra petita.
Anulada.
- O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), fixou a seguinte
tese: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro
administrativo (material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada
da lei pela administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30%
do valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado,
diante do caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que
não lhe era possível constatar o pagamento indevido."
- A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma.
Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta
como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe
o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como
agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em
28/06/2007).
- Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto
equívoco administrativo na concessão do benefício, o que afasta a existência de má-fé.
- Ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé da parte autora e, em vista do caráter
alimentar do amparo social, inexigível a devolução dos valores já pagos.
- A Autarquia Federal não efetuou a reavaliação da continuidade das condições que originaram
a concessão do benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, nos termos do art. 21 da Lei de
Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214, fugindo à razoabilidade a tentativa de cobrar do Autor
o pagamento de quantia que alcançou monta tão vultosa, em consequência do extenso lapso
temporal em que o mesmo auferiu o referido benefício em suposto desacordo com a norma
legal.
- O benefício de prestação continuada é devido ao portador de deficiência ou idoso que
comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua
família.
- Na hipótese dos autos, a parte autora não comprovou o preenchimento do requisito legal da
miserabilidade.
- Os honorários advocatícios deverão ser fixados na liquidação do julgado.
- Sentença anulada.
- Pedido parcialmente procedente.
- Apelação prejudicada. ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Nona Turma, por
unanimidade, decidiu anular a r. sentença e, em novo julgamento, nos termos do art. 1.013, §3º,
do CPC, julgar parcialmente procedente o pedido da parte autora, restando prejudicada a
apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente
julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA
