Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP
5171895-60.2021.4.03.9999
Relator(a)
Desembargador Federal GILBERTO RODRIGUES JORDAN
Órgão Julgador
9ª Turma
Data do Julgamento
03/02/2022
Data da Publicação/Fonte
Intimação via sistema DATA: 08/02/2022
Ementa
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E
12.435/2011. DEVOLUÇÃO DE VALORES. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA.
RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
- O benefício de prestação continuada é devido ao portador de deficiência ou idoso que comprove
não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
- Na hipótese dos autos, a parte autora comprovou o preenchimento dos requisitos legais
necessários para a concessão do benefício.
- O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), fixou a seguinte
tese: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo
(material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela
administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do
benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do
caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era
possível constatar o pagamento indevido."
- A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma.
Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta
como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o
poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria
uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
28/06/2007).
- Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto
equívoco administrativo na concessão do benefício, o que afasta a existência de má-fé.
- Ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé da parte autora e, em vista do caráter
alimentar do amparo social, inexigível a devolução dos valores já pagos.
- Os honorários advocatícios deverão ser fixados na liquidação do julgado, nos termos do inciso
II, do § 4º, c.c. §11, do artigo 85, do CPC/2015.
- Apelação do INSS conhecida em parte e, nesta parte, improvida.
Acórdao
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5171895-60.2021.4.03.9999
RELATOR:Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: SABRINA RIOS DE OLIVEIRA ROELA
Advogado do(a) APELADO: NOEMI COSTA PEREIRA LEITE - SP384499-N
OUTROS PARTICIPANTES:
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5171895-60.2021.4.03.9999
RELATOR:Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: SABRINA RIOS DE OLIVEIRA ROELA
Advogado do(a) APELADO: NOEMI COSTA PEREIRA LEITE - SP384499-N
R E L A T Ó R I O
Trata-se de apelação em ação ajuizada em face do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO
SOCIAL - INSS, objetivando o restabelecimento do benefício assistencial previsto no art. 203,
V, da Constituição Federal e a declaração de inexigibilidade de débito relativo a valores
recebidos do benefício.
A r. sentença (id 210316274) julgou “procedente o pedido formulado na inicial” e condenou o
“INSS a RESTABELECERà autora o benefício social da PRESTAÇÃO CONTINUADA desde a
data da cessação do benefício, ocorrido em 01/05/2018, bem como declarar inexistente o débito
cobrado pelo INSS referente à restituição dos valores percebidos no período de 01/02/2013 a
31/12/2017”, acrescido de correção monetária “segundo o IPCA-E”.
Em suas razões recursais (id 210316281), requer o INSS a reforma da r. sentença, com a
improcedência do pedido inicial.
No caso de manutenção da r. sentença, requer a alteração do critério de fixação da correção
monetária.
Com contrarrazões da parte autora.
Subiram a esta instância.
Parecer do Ministério Público Federal (id 216580160) no sentido do desprovimento do apelo.
É o sucinto relato.
vn
PODER JUDICIÁRIOTribunal Regional Federal da 3ª Região9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5171895-60.2021.4.03.9999
RELATOR:Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: SABRINA RIOS DE OLIVEIRA ROELA
Advogado do(a) APELADO: NOEMI COSTA PEREIRA LEITE - SP384499-N
V O T O
Inicialmente, tempestivo o recurso e respeitados os demais pressupostos de admissibilidade
recursais, passo ao exame da matéria objeto de devolução.
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL
A República Federativa do Brasil, conforme disposto no art. 1º, III, da Constituição Federal, tem
como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana que, segundo José Afonso da
Silva, consiste em:
"um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida. 'Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos
fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa
humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido
normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-
se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a
nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade
individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre
que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem
social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa
e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados
formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa
humana.'"
(Curso de Direito Constitucional Positivo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 106-107).
Para tornar efetivo este fundamento, diversos dispositivos foram contemplados na elaboração
da Carta Magna, dentre eles, o art. 7º, IV, que dispõe sobre as necessidades vitais básicas
como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social e o art. 203, IV, que instituiu o benefício do amparo social.
A Lei nº 6.179/74 instituiu, em nosso ordenamento jurídico, a renda mensal vitalícia, passando a
ser amparados pela Previdência Social os maiores de 70 anos e os inválidos, definitivamente
incapacitados para o trabalho, desde que não exercessem atividades remuneradas ou não
auferissem rendimentos. O valor do benefício correspondia à metade do maior salário-mínimo
vigente no país, arredondada para a unidade de cruzeiro imediatamente superior, não podendo
ultrapassar 60% do valor do salário-mínimo do local de pagamento.
Com a promulgação da Carta Magna, em 05 de outubro de 1988, o valor do benefício foi
aumentado para 1 (um) salário-mínimo, pelo art. 203, inciso V:
"Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de
contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei."
Entretanto, o supracitado inciso, por ser uma norma constitucional de eficácia limitada,
dependia da edição de uma norma posterior para produzir os seus efeitos.
O art. 139 da Lei n.º 8.213/91 dispunha que a renda mensal vitalícia continuaria integrando o
elenco de benefícios da Previdência Social, até que o artigo constitucional fosse
regulamentado.
A Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, deu eficácia ao inciso V do art. 203 da Constituição
Federal e extinguiu a renda mensal vitalícia em seu art. 40, resguardando, entretanto, o direito
daqueles que o requeressem até o dia 31 de dezembro de 1995, desde que preenchidos os
requisitos previstos na Lei Previdenciária.
A Lei de Assistência foi regulamentada pelo Decreto nº 1.744, de 8 de dezembro de 1995,
posteriormente, pelo Decreto nº 6.214, de 26 de setembro de 2007.
O art. 20 da Lei assistencial e o art. 1º de seu decreto regulamentar estabeleceram os requisitos
para a concessão do benefício, quais sejam: ser o requerente portador de deficiência ou idoso,
com 70 anos ou mais e que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e
nem tê-la provida por sua família. A idade mínima de 70 anos foi reduzida para 67 anos, a partir
de 1º de janeiro de 1998, pelo art. 1º da Lei nº 9.720/98 e, posteriormente, para 65 anos,
através do art. 34 da Lei nº 10.741 de 01 de outubro de 2003, mantida, inclusive, por ocasião da
edição da Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011.
Os mesmos dispositivos legais disciplinaram o que consideram como pessoa portadora de
deficiência, família e ausência de condições de se manter ou de ser provido pela sua família.
Pessoa portadora de deficiência é a incapacitada para a vida independente e para o trabalho,
em decorrência de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena
e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, na redação dada
pela Lei nº 12.470, de 31 de agosto de 2011.
O impedimento de longo prazo, a seu turno, é aquele que produz seus efeitos pelo prazo
mínimo de 2 (dois) anos (§10º).
A incapacidade para a vida independente, por sua vez, não há que ser entendida como aquela
que impeça a execução de todos os atos da vida diária, para os quais se faria necessário o
auxílio permanente de terceiros, mas a impossibilidade de prover o seu sustento sem o amparo
de alguém.
Neste sentido, o entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça, em julgado da lavra do
Ministro Relator Gilson Dipp (5ª Turma, REsp nº 360.202, 04.06.2002, DJU 01.07.2002, p. 377),
oportunidade em que se consignou: "O laudo pericial que atesta a incapacidade para a vida
laboral e a capacidade para a vida independente, pelo simples fato da pessoa não necessitar da
ajuda de outros para se alimentar, fazer sua higiene ou se vestir, não pode obstar a percepção
do benefício, pois, se esta fosse a conceituação de vida independente, o benefício de prestação
continuada só seria devido aos portadores de deficiência tal, que suprimisse a capacidade de
locomoção do indivíduo - o que não parece ser o intuito do legislador".
No que se refere à hipossuficiência econômica, de acordo com a Medida Provisória nº 1.473-34,
de 11.08.97, transformada na Lei nº 9.720, em 30.11.98, definiu-se o conceito de família como o
conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº 8.213/91, desde que vivendo sob o mesmo
teto. Com a superveniência da Lei nº 12.435/2011, fora estabelecido, expressamente para os
fins do art. 20, caput, da Lei assistencial, ser a família composta pelo requerente, cônjuge ou
companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos
solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo
teto (art. 20, §1º).
Já no que diz respeito ao limite de ¼ do salário mínimo per capita como critério objetivo, anoto
que fora ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232-1/DF, pelo Procurador-Geral
da República, julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a
constitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93.
Os debates, entretanto, não cessaram, por ser tormentosa a questão e envolver princípios
fundamentais contidos na Carta da República, situação que culminou, inclusive, com o
reconhecimento, pelo mesmo STF, da ocorrência de repercussão geral.
A Suprema Corte acabou por declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal,
inclusive por considerar defasada essa forma meramente aritmética de se apreciar a situação
de miserabilidade dos idosos ou deficientes que visam a concessão do benefício assistencial
(Plenário, RCL 4374, j. 18.04.2013, DJE de 04/09/2013).
No entanto, é preciso que se tenha a possibilidade de ao menos entrever, a partir da renda
informada, eventual quadro de pobreza em função da situação específica de quem pleiteia o
benefício, até que o Poder Legislativo estabeleça novas regras.
Para tanto, faz-se necessário o revolvimento de todo o conjunto probatório, através do qual se
possa aferir eventual miserabilidade. E assim o é diante do princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana, já mencionado no início desta decisão, com vistas à garantia de suas
necessidades básicas de subsistência, o que leva o julgador a interpretar a normação legal de
sorte a conceder proteção social ao cidadão economicamente vulnerável, tal como assentado
no REsp 1112557 julgado sob o rito do art. 543-C do CPC/73.
Confira-se:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA
CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA,
QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO
SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e
ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98,
dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas
portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja
família possua renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade
dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para
o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana,
especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse
dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e
economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de
se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de
tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade,
ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita
inferior a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art.
131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do
valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de
miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a
determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido.
(REsp 1112557/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO,
julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009)
Por outro lado, observo que a Lei nº 12.470, de 31 de agosto de 2011, passou a considerar
como de "baixa renda" a família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo
Federal cuja renda mensal seja de até 2 (dois) salários mínimos, ainda que para os fins
específicos de custeio ali limitado. Na mesma trilha, as Leis que criaram o Bolsa Família
(10.836/04), Programa Nacional de Acesso à Alimentação (10.689/03) e o Bolsa Escola
(10.219/01) estabeleceram parâmetros mais coerentes de renda familiar mínima quanto em
cotejo com aquele estabelecido de ¼ do salário mínimo, agora declarado inconstitucional.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 580.963/PR (DJe 14.11.2013),
assentou a inconstitucionalidade por omissão do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do
Idoso, considerando a "inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores
de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social
em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário
mínimo." Assim, entendo que deve ser excluído do cômputo da renda per capita o valor
decorrente de benefício de valor mínimo recebido por idoso ou inválido, pertencente ao núcleo
familiar.
Nesse sentido, o C. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1355052, submetido
ao regimento do art. 543-C do CPC, assentou que não se computa o valor de um salário
mínimo percebido por idoso a título de benefício assistencial ou previdenciário para aferição de
hipossuficiência de núcleo familiar.
PREVIDENCIÁRIO. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. CONCESSÃO DE
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL PREVISTO NA LEI N. 8.742/93 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA.
AFERIÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA DO NÚCLEO FAMILIAR. RENDA PER CAPITA.
IMPOSSIBILIDADE DE SE COMPUTAR PARA ESSE FIM O BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO,
NO VALOR DE UM SALÁRIO MÍNIMO, RECEBIDO POR IDOSO.
1. Recurso especial no qual se discute se o benefício previdenciário, recebido por idoso, no
valor de um salário mínimo, deve compor a renda familiar para fins de concessão ou não do
benefício de prestação mensal continuada a pessoa deficiente.
2. Com a finalidade para a qual é destinado o recurso especial submetido a julgamento pelo rito
do artigo 543-C do CPC, define-se: Aplica-se o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do
Idoso (Lei n. 10.741/03), por analogia, a pedido de benefício assistencial feito por pessoa com
deficiência a fim de que benefício previdenciário recebido por idoso, no valor de um salário
mínimo, não seja computado no cálculo da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei n.
8.742/93.
3. Recurso especial provido. Acórdão submetido à sistemática do § 7º do art. 543-C do Código
de Processo Civil e dos arts. 5º, II, e 6º, da Resolução STJ n. 08/2008.
(REsp 1355052 /SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em
25/02/2015, DJe 05/11/2015)
Feitas essas considerações, passo à análise do conjunto probatório formado nestes autos.
DO CASO DOS AUTOS
No tocante à deficiência, o laudo da perícia médica (id 210316215, complementado a id
210316236) concluiu que a Autora, portadora de “cegueira” e “depressão”, padece de
“incapacidade total e definitiva para atividades laborativas”.
Para melhor elucidar o quadro de saúde da parte autora, transcrevo os quesitos 1 e 2,
formulados pela parte autora, e respetivas repostas pelo experto:
“1) É possível que a Pericianda se enquadre no conceito de deficiência (que não se confunde
com incapacidade laboral) estabelecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência?
Sim.
3) Na aferição da existência da deficiência, foram seguidos TODOS os parâmetros e
procedimentos estabelecidos pela Lei nº 13.146/15 e o Decreto nº 6.214/07, além do Índice De
Funcionalidade Brasileiro Aplicado Para Fins De Classificação e Concessão Da Aposentadoria
Da Pessoa Com Deficiência (IF-BRA) e da Classificação Internacional de Funcionalidades,
Incapacidade e Saúde (CIF)?
Sim.”
Portanto, padecendo a Autora de incapacidade definitiva, entendo que a mesma está
impossibilitada de exercer qualquer atividade que lhe garanta auferir rendimentos para
manutenção de sua simples sobrevivência, restando preenchido o requisito legal da deficiência
nos termos da Lei assistencial (§ 2°: "...considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas").
Acerca da miserabilidade, a falta de condições do requerente de prover o seu sustento, ou tê-lo
provido pela família, restou demonstrada.
O estudo social (id 210316243), de 15.01.2020, informou que a Autora vive com uma tia, um
primo e uma filha, em casa de propriedade da tia, “de alvenaria e mede aproximadamente
10x10 m²... antiga, com poucos moveis e, porém, tudo em bom estado de conservação e
organização da casa, precisando de algumas reformas pontuais... o quintal é bastante arejado e
com adaptações para deficiência da autora”, de alvenaria, contendo quatro cômodos e dois
quartos.
A casa ocupada pela parte autora fica “no mesmo terreno da genitora... porém é fundos com
entrada totalmente independente” e a avó da requerente “reside no mesmo endereço, porém na
casa da frente”.
A Autora realiza atividade esporádica, durante o verão, de “bicos como massagista tirando uns
R$110,00”.
A tia da Autora “faz trabalho com artesanato”, obtendo a renda de R$ 480,00, o primo “recebe
uma pensão alimentícia de R$200,00 mensais” e a filha “tem uma pensão alimentícia de
R$200,000”.
Composto o núcleo familiar por quatro integrantes, contando com a renda acima disposta,
verifico que a renda per capita resulta em valor inferior à metade de um salário-mínimo.
Destarte, entendo que a Autora está submetida a risco social, restando demonstrada a
miserabilidade.
Nestes termos, diante do conteúdo probatório dos autos, vislumbro preenchidos os requisitos
necessários para a concessão do benefício assistencial, sendo de rigor a manutenção da r.
sentença de procedência do restabelecimento da benesse.
No tocante ao pedido de declaração de inexigibilidade de débitos, verifico que conforme ofício
datado de 17.04.2018 (id 210316188), o INSS informa a apuração de indício de irregularidade
na manutenção do benefício assistencial concedido à parte autora no período de 01.02.2013 a
31.12.2017 e a partir de fevereiro de 2018, tendo em vista que o então cônjuge da mesma
ostentou vínculos empregatícios que indicam a existência de renda per capita familiar superior
ao limite estabelecido no artigo 4º, IV, do Decreto nº 6.214/07, noticiando a cobrança de R$
55.779,04.
O e. Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), cuja questão
levada a julgamento foi a “Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de
benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da
Administração da Previdência Social”, fixou a seguinte tese:
"Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo
(material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela
administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do
benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do
caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era
possível constatar o pagamento indevido."
Extrai-se da tese fixada, portanto, que, para a eventual determinação de devolução de valores
recebidos indevidamente, decorrente de erro administrativo diverso de interpretação errônea ou
equivocada da lei, faz-se necessária a análise da presença, ou não, de boa-fé objetiva em sua
percepção.
A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma.
Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta
como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe
o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como
agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em
28/06/2007).
Por seu turno, leciona Carlos Roberto Gonçalves que “Guarda relação com o princípio de direito
segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que
presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao
julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva,
que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade,
honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e
costumes do lugar” (Direito Civil Brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais, Saraiva, 2013,
10ª ed., p. 54/61).
Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto
equívoco administrativo na concessão do benefício, o que pressupõe a boa-fé objetiva da parte
autora no recebimento dos valores recebidos, ora apontados pelo INSS como indevidos.
Assim sendo, ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé da parte autora e, em
vista do caráter alimentar do amparo social, entendo inexigível a devolução dos valores já
pagos, nos termos da r. sentença (“inexistente o débito cobrado pelo INSS referente à
restituição dos valores percebidos no período de 01/02/2013 a 31/12/2017”).
Ademais, verifico que o INSS notificou a Autora em abril de 2018 e cessou o benefício, tão
somente, em 01.05.2018 decorridos, portanto, mais de cinco anos do início da suposta
irregularidade apontada (a partir de 01.02.2013).
Assim, a Autarquia Federal não efetuou a reavaliação da continuidade das condições que
originaram a concessão do benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, nos termos do art. 21 da
Lei de Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214, fugindo à razoabilidade a tentativa de cobrar
da parte autora o pagamento de quantia que alcançou monta tão vultosa, em consequência do
extenso lapso temporal em que a mesma auferiu o referido benefício em suposto desacordo
com a norma legal.
Vale dizer que a Autora encontra-se divorciada desde 05.06.2018 (id 210316187) e, ainda que
considerada a renda do seu ex-cônjuge no período indicado pelo INSS verifica-se, conforme
consulta ao sistema CNIS, que os salários deste, em nenhum mês, propiciariam uma renda per
capita familiar que superasse a metade do valor de um salário-mínimo (simulando um núcleo
familiar composto por dois indivíduos). Vejamos:
Em 2013 (salário mínimo de R$ 678,00) - 02/2013 – R$ 902,00; 03/2013 – 902,00; 04/2013 –
854,85; 05/2013 – 902,00; 06/2013 – 824,10; 07/2013 – 895,85; 08/2013 – 840,50; 09/2013 –
822,05; 10/2013 – 884,89; 11/2013 – 1.104,16; 12/2013 – 1.093,50. Em 2014 (salário mínimo
de R$ 724,00) - 01/2014 – 887,29; 02/2014 – 1.013,49; 03/2014 – 943,40; 04/2014 – 979,00;
05/2014 – 1.205,33; 06/2014 – 1.072,00; 07/2014 – 1.084,58; 08/2014 – 1.085,07; 09/2014 –
1.072,00; 10/2014 – 1.072,00; 11/2014 – 1.164,00; 12/2014 – 1.220,78. Em 2015 (salário
mínimo de R$ 788,00) - 01/2015 – 1.013,26; 02/2015 – 1.196,41; 03/2015 – 1.436,77; 04/2015
– 1.233,44; 05/2015 – 1.183,68; 06/2015 – 1.211,62; 07/2015 – 1.172,74; 08/2015 – 1.280,40;
09/2015 – 1.328,36; 10/2015 – 1.251,53; 11/2015 – 1.287,74; 12/2015 – 1.035,71; Em 2016
(salário mínimo de R$ 880,00) - 01/2016 – 1.295,86; 02/2016 – 1.263,10; 03/2016 – 1.285,00;
04/2016 – 1.233,89; 05/2016 – 1.264,01; 06/2016 – 1.191,06; 07/2016 – 1.233,89; 08/2016 –
1.285,00; 09/2016 – 1.368,76; 10/2016 – 998,61; 11/2016 – 1.374,06 12/2016 – 1.079,10. Em
2017 (salário mínimo de R$ 937,00) - 01/2017 – 1.191,03; 02/2017 – 1.304,11; 03/2017 –
1.237,53; 04/2017 – 1.715,01; 05/2017 – 1.191,03; 06/2017 – 1.193,89; 07/2017 – 1.155,13;
08/2017 – 1.260,31; 09/2017 – 1.164,89; 10/2017 – 1.381,47; 11/2017 – 1.172,64; 12/2017 –
727,01 e em 2018 (salário mínimo de R$ 954,00) - 01/2018 – 311,35.
Ressalto que a Autora possui uma filha com seu ex-cônjuge nascida aos 15.12.2010, portanto,
anteriormente à concessão administrativa do benefício assistencial (a partir de 18.01.2012 – id
210316192), bem como da constatação da suposta irregularidade pelo INSS (após 01.02.2013),
o que indica a composição de núcleo familiar mais numeroso e, inclusive, com uma renda per
capita ainda inferior, reforçando a demonstração da miserabilidade no lapso referido, não se
mostrando suficiente para justificar a cessação do benefício e cobrança dos valores pela
autarquia.
CORREÇÃO MONETÁRIA
Não conheço da apelação no tocante à alteração do critério de fixação da correção monetária,
tendo em vista que não apontado qual o método de cálculo que entende cabível o recorrente.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
Com o advento do novo Código de Processo Civil, foram introduzidas profundas mudanças no
princípio da sucumbência e, em razão destas mudanças, a fixação do percentual da verba
honorária deverá ser definida somente na liquidação do julgado, com observância ao disposto
no inciso II, do § 4º c.c. § 11, ambos do artigo 85, do CPC/2015, bem como o artigo 86, do
mesmo diploma legal.
Os honorários advocatícios a teor da Súmula 111 do E. STJ incidem sobre as parcelas vencidas
até a sentença de procedência.
Ante o exposto, não conheço de parte da apelação e, na parte conhecida, nego-lhe provimento,
observados os honorários advocatícios, na forma acima fundamentada.
É o voto.
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E
12.435/2011. DEVOLUÇÃO DE VALORES. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA.
RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
- O benefício de prestação continuada é devido ao portador de deficiência ou idoso que
comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua
família.
- Na hipótese dos autos, a parte autora comprovou o preenchimento dos requisitos legais
necessários para a concessão do benefício.
- O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), fixou a seguinte
tese: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro
administrativo (material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada
da lei pela administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30%
do valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado,
diante do caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que
não lhe era possível constatar o pagamento indevido."
- A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma.
Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta
como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe
o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como
agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em
28/06/2007).
- Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto
equívoco administrativo na concessão do benefício, o que afasta a existência de má-fé.
- Ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé da parte autora e, em vista do caráter
alimentar do amparo social, inexigível a devolução dos valores já pagos.
- Os honorários advocatícios deverão ser fixados na liquidação do julgado, nos termos do inciso
II, do § 4º, c.c. §11, do artigo 85, do CPC/2015.
- Apelação do INSS conhecida em parte e, nesta parte, improvida. ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Nona Turma, por
unanimidade, decidiu conhecer de parte da apelação do INSS e, nesta parte, negar-lhe
provimento, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente
julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA
