
| D.E. Publicado em 12/11/2018 |
EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Nona Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar parcial provimento à apelação do réu, nos termos do entendimento do Relator, que foi acompanhado pela Desembargadora Federal Marisa Santos e pela Desembargadora Federal Ana Pezarini (que votou nos termos do art. 942 "caput" e § 1º do CPC). Vencido o Juiz Federal Convocado Rodrigo Zacharias que lhe dava provimento. Julgamento nos termos do disposto no artigo 942 "caput" e § 1º do CPC.
Desembargador Federal Relator
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APELAÇÃO CÍVEL Nº 0014499-13.2018.4.03.9999/SP
DECLARAÇÃO DE VOTO
O ilustre Desembargador Federal relator, Gilberto Jordan, em seu fundamentado voto, deu parcial provimento à apelação do réu, para reformar a sentença no tocante aos juros de mora e ajustar os critérios de fixação de correção monetária, nos termos da decisão final do RE 870.947, observada a verba honorária, na forma acima fundamentada.
Ouso, porém, com a máxima vênia, apresentar divergência, pelas razões que passo a expor.
Discute-se o preenchimento dos requisitos necessários à concessão do benefício assistencial de prestação continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/93, regulamentado, atualmente, pelos Decretos n. 6.214/2007 e 7.617/2011.
Essa lei deu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal, ao estabelecer, em seu artigo 20, as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar a miserabilidade ou a hipossuficiência, ou seja, não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
1.DA HIPOSSUFICIÊNCIA OU MISERABILIDADE
A respeito do requisito objetivo, o tema foi levado à apreciação do Pretório Excelso por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, movida pelo Procurador Geral da República, quando, em meio a apreciações sobre outros temas, decidiu que o benefício do art. 203, inciso V, da CF só pode ser exigido a partir da edição da Lei n.° 8.742/93.
Trata-se da ADIN 1.232-2, de 27/08/98, publicada no DJU de 1/6/2001, Pleno, Relator Ministro Maurício Correa, RTJ 154/818, ocasião em que o STF reputou constitucional a restrição conformada no § 3o do art. 20 da Lei n.° 8.742/93, conforme a ementa a seguir transcrita:
Posteriormente, em controle difuso de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal manteve o entendimento (vide RE 213.736-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, informativo STF n.° 179; RE 256.594-6, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 28/4/2000, Informativo STF n.° 186; RE n.° 280.663-3, São Paulo, j. 06/09/2001, relator Maurício Corrêa).
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, em vários precedentes, considerou que a presunção objetiva absoluta de miserabilidade, da qual fala a Lei, não afasta a possibilidade de comprovação da condição de miserabilidade por outros meios de prova (REsp n. 435.871, 5ª Turma Rel. Min. Felix Fischer, j. 19/9/2002, DJ 21/10/2002, p. 61, REsp n. 222.764, STJ, 5ªT., Rel. Min. Gilson Dipp, j. 13/2/2001, DJ 12/3/2001, p. 512; REsp n. 223.603/SP, STJ, 5ª T., Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 21/2/2000, p. 163).
Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal reviu seu posicionamento ao reconhecer que o requisito do artigo 20, §3º, da Lei n. 8.742/93 não pode ser considerado taxativo, acórdão produzido com repercussão geral (STF, RE n. 580963, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n. 225, 14/11/2013).
A decisão concluiu que a mera interpretação gramatical do preceito, por si só, pode resultar no indeferimento da prestação assistencial em casos que, embora o limite legal de renda per capita seja ultrapassado, evidenciam um quadro de notória hipossuficiência econômica.
Essa insuficiência da regra decorre não só das modificações fáticas (políticas, econômicas e sociais), mas principalmente das alterações legislativas que ocorreram no País desde a edição da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993.
A legislação federal recente, por exemplo, reiterada pela adoção de vários programas assistenciais voltados a famílias carentes, considera pobres aqueles com renda mensal per capita de até meio salário-mínimo (nesse sentido, a Lei n. 9.533, de 10/12/97 - regulamentada pelos Decretos n. 2.609/98 e 2.728/99; as Portarias n. 458 e 879, de 3/12/2001, da Secretaria da Assistência Social; o Decreto n. 4.102/2002; a Lei n. 10.689/2003, criadora do Programa Nacional de Acesso à Alimentação).
Assim, não há como considerar o critério previsto no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93 como absoluto e único para a aferição da situação de miserabilidade, até porque o próprio Estado Brasileiro elegeu outros parâmetros, como os defluentes da legislação acima citada.
Deve-se verificar, na questão in concreto, a ocorrência de situação de pobreza - entendida como a de falta de recursos e de acesso ao mínimo existencial -, a fim de se concluir por devida a prestação pecuniária da assistência social constitucionalmente prevista.
Sendo assim, ao menos desde 14/11/2013 (RE 580963), o critério da miserabilidade do § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/93 não impede o julgador de levar em conta outros dados, a fim de identificar a situação de vida do idoso ou do deficiente, principalmente quando estiverem presentes peculiaridades, a exemplo de necessidades especiais com medicamentos ou com educação.
Nesse diapasão, apresento alguns parâmetros razoáveis, norteadores da análise individual de cada caso:
a) todos os que recebem renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo são miseráveis;
b) nem todos que percebem renda familiar per capita superior a ¼ e inferior a ½ salário mínimo são miseráveis;
c) nem todos que percebem renda familiar per capita superior a ½ salário mínimo deixam de ser miseráveis;
d) todos que perceberem renda mensal familiar superior a um salário mínimo (artigo 7º, IV, da Constituição Federal) não são miseráveis.
No mais, a mim me parece que, em todos os casos, outras circunstâncias diversas da renda devem ser levadas em conta, mormente se o patrimônio do requerente também se subsume à noção de hipossuficiência. Vale dizer, é de ser apurado se o interessado possui poupança, se vive em casa própria, com ou sem ar condicionado, se possui veículo, telefones celulares, plano de saúde, auxílio permanente de parentes ou terceiros etc.
Cumpre salientar que o benefício de prestação continuada foi previsto, na impossibilidade de atender a um público maior, para socorrer os desamparados (artigo 6º, caput, da CF), ou seja, àquelas pessoas que sequer teriam possibilidade de equacionar um orçamento doméstico, pelo fato de não terem renda ou de ser essa insignificante.
2.CONCEITO DE FAMÍLIA
Para se apurar se a renda per capita do requerente atinge, ou não, o âmbito da hipossuficiência, faz-se mister abordar o conceito de família.
O artigo 20 da Lei n. 8.742/93 estabelecia, ainda, para efeitos da concessão do benefício, os conceitos de família (conjunto de pessoas do art. 16 da Lei n. 8.213/91, desde que vivendo sob o mesmo teto - § 1º), de pessoa portadora de deficiência (aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho - § 2º) e de família incapacitada de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa (aquela com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo - § 3º).
A Lei n. 12.435, vigente desde 7/7/2011, alterou os §§ 1º e 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/93, estabelecendo que a família, para fins de concessão do benefício assistencial, deve ser aquela composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Ao mesmo tempo, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio artigo 203, V, da Constituição Federal estabelece que o benefício é devido quando o sustento não puder ser provido pela família. Essa conclusão tem arrimo no próprio princípio da solidariedade social, conformado no artigo 3º, I, do Texto Magno.
O que quero dizer é que, à guisa de regra mínima de coexistência entre as pessoas em sociedade, a técnica de proteção social prioritária é a família, em cumprimento ao disposto no artigo 229 da Constituição Federal, in verbis: " Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade."
A propósito, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), ao analisar um pedido de uniformização do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), fixou a tese que "o benefício assistencial de prestação continuada pode ser indeferido se ficar demonstrado que os devedores legais podem prestar alimentos civis sem prejuízo de sua manutenção". A decisão aconteceu durante sessão realizada em 23/2/17, em Brasília. Quanto ao mérito, o relator afirmou em seu voto que a interpretação do art. 20, §1º, da Lei n. 8.742/93, conforme as normas veiculadas pelos arts. 203, V, 229 e 230, da Constituição da República de 1988, deve ser no sentido de que "a assistência social estatal não deve afastar a obrigação de prestar alimentos devidos pelos parentes da pessoa em condição de miserabilidade socioeconômica (arts. 1694 e 1697, do Código Civil), em obediência ao princípio da subsidiariedade".
2.SUBSIDIARIEDADE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
Por conseguinte, à vista da preponderância do dever familiar de sustento, hospedado no artigo 229 da Constituição da República, a Assistência Social, tal como regulada na Lei nº 8.742/93, terá caráter subsidiário em relação às demais técnicas de proteção social (previdência social, previdência privada, caridade, família, poupança etc), dada a gratuidade de suas prestações.
Com efeito, levando-se em conta o alto custo do pretendido "Estado de bem-estar social", forjado no Brasil pela Constituição Federal de 1988 quando a grande maioria dos países europeus já haviam reconhecido sua inviabilidade financeira, forçoso é reconhecer que a assistência social, a par da dimensão social do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, do CF), só deve ser prestada em casos de real necessidade, sob pena de comprometer - dada a crescente dificuldade de custeio - a proteção social da coletividade, não apenas das futuras gerações, mas também da atual.
De fato, o benefício previsto no artigo 203, V, da Constituição Federal tem o valor de 1 (um) salário mínimo, ou seja, a mesma quantia paga a milhões de brasileiros que se aposentaram no Regime Geral de Previdência Social mediante o pagamento de contribuições, durante vários anos.
De modo que a assistência social deve ser fornecida com critério, pois do contrário se gerarão privilégios e desigualdades, em oposição à própria natureza dos direitos sociais que é a de propiciar igualdade, isonomia de condições a todos, observados os fins sociais (não individuais) da norma, à luz do artigo 5º da LINDB.
Diga-se de passagem que a concessão indiscriminada do benefício assistencial, mediante interpretação extensiva ou ampliativa dos requisitos constitucionais, geraria não apenas injustiça aos contribuintes da previdência social, mas incentivo para que estes parem de contribuir, ou mesmo não se filiem ou não contribuam ao seguro social, o que constituiria situação anômala e gravíssima do ponto de vista atuarial, apta a comprometer o custeio de todo o sitema.
Pertinente, in casu, o ensinamento do professor de direito previdenciário Wagner Balera, quando pondera a respeito da dimensão do princípio da subsidiariedade: "O Estado é, sobretudo, o guardião dos direitos e garantias dos indivíduos. Cumpre-lhe, assinala Leão XIII, agir em favor dos fracos e dos indigentes exigindo que sejam, por todos respeitados os direitos dos pequenos. Mas, segundo o princípio da subsidiariedade - que é noção fundamental para a compreensão do conteúdo da doutrina social cristã - o Estado não deve sobrepor-se aos indivíduos e aos grupos sociais na condução do interesse coletivo. Há de se configurar uma permanente simbiose entre o Estado e a sociedade, de tal sorte que ao primeiro não cabe destruir, nem muito menos exaurir a dinâmica da vida social I (é o magistério de Pio XI, na Encíclica comemorativa dos quarenta anos da 'Rerum Novarum', a 'Quadragésimo Anno', pontos 79-80)." (Centenárias Situações e Novidade da 'Rerum Novarum', p. 545).
Por fim, quanto a esse tópico, lícito é inferir que quem está coberto pela previdência social está, em regra, fora da abrangência da assistência social. Nesse sentido, prelecionou Celso Bastos, in verbis: "A assistência Social tem como propósito satisfazer as necessidades de pessoas que não podem gozar dos benefícios previdenciários, mas o faz de uma maneira comedida, para não incentivar seus assistidos à ociosidade. Concluímos, portanto, que os beneficiários da previdência social estão automaticamente excluídos da assistência social. O benefício da assistência social, frise-se, não pode ser cumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o de assistência médica" (Celso Bastos e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, 8o Vol., Saraiva, 2000, p. 429).
4.IDOSOS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Na hipótese de postulante idoso, a idade mínima de 70 (setenta) anos foi reduzida para 67 (sessenta e sete) anos pela Lei n. 9.720/98, a partir de 1º de janeiro de 1998, e, mais recentemente, para 65 (sessenta e cinco) anos, com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03).
No que se refere ao conceito de pessoa portadora de deficiência - previsto no § 2º da Lei n. 8.742/93, com a redação dada pela Lei nº 13.146/2015 -, passou a ser considerada aquela com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, possam obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Assim, ratificou-se o entendimento consolidado nesta Corte de que o rol previsto no artigo 4º do Decreto n. 3.298/99 (regulamentar da Lei n. 7.853/89, que dispõe sobre a Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência) não era exaustivo; portanto, constatado que os males sofridos pelo postulante impedem sua inserção social, restará preenchido um dos requisitos exigidos para a percepção do benefício.
Menciona-se também o conceito apresentado pela ONU, elaborado por meio da Resolução n.° XXX/3.447, que conforma a Declaração, em 09/12/1975, in verbis:"1. O termo 'pessoa deficiente' refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais".
Esse conceito dá maior ênfase à necessidade, inclusive da vida individual, ao passo que o conceito proposto por Luiz Alberto David Araujo prioriza a questão da integração social, como se verá.
Nair Lemos Gonçalves apresentou os principais requisitos para sua definição: "desvio acentuado dos mencionados padrões médios e sua relação com o desenvolvimento físico, mental, sensorial ou emocional, considerados esses aspectos do desenvolvimento separada, combinada ou globalmente" (Verbete Excepcionais. In: Enciclopédia Saraiva de Direito, n. XXXIV. São Paulo: Saraiva, 1999).
Luiz Alberto David Araujo, por sua vez, compilou muitos significados da palavra deficiente, extraídos dos dicionários de Língua Portuguesa. Observa ele que, geralmente, os dicionários trazem a idéia de que a pessoa deficiente sofre de falta, de carência ou de falha.
Esse autor critica essas noções porque a idéia de deficiência não se apresenta tão simples, à medida que as noções de falta, de carência ou de falha não abrangem todas as situações de deficiência, como, por exemplo, o caso dos superdotados, ou de um portador do vírus HIV que consiga levar a vida normal, sem manifestação da doença, ou ainda de um trabalhador intelectual que tenha um dedo amputado.
Por ser a noção de falta, carência ou falha insuficiente à caracterização da deficiência, Luiz Alberto David Araujo propõe um norte mais seguro para se identificar a pessoa protegida, cujo fator determinante do enquadramento, ou não, no conceito de pessoa portadora de deficiência, seja o meio social:
"O indivíduo portador de deficiência, quer por falta, quer por excesso sensorial ou motor, deve apresentar dificuldades para seu relacionamento social. O que define a pessoa portadora de deficiência não é falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade para a sua integração social é o que definirá quem é ou não portador de deficiência". (A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 18-22).
E quanto mais complexo o meio social, maior rigor se exigirá da pessoa portadora de deficiência para sua adaptação social. De outra parte, na vida em comunidades mais simples, como nos meios agrícolas, a pessoa portadora de deficiência poderá integrar-se com mais facilidade.
Desse modo, o conceito de Luiz Alberto David Araujo é adequado e de acordo com a norma constitucional, motivo pelo qual é possível seu acolhimento para a caracterização desse grupo de pessoas protegidas nas várias situações reguladas na Constituição Federal, nos arts. 7o, XXXI, 23, II, 24, XIV, 37, VIII, 203, V e 208, III.
Mas é preciso delimitar a proteção constitucional apenas àquelas pessoas que realmente dela necessitam, porquanto existem graus de deficiência que apresentam menores dificuldades de adaptação à pessoa. E tal verificação somente poderá ser feita diante de um caso concreto.
Luiz Alberto David Araujo salienta que os casos-limite podem, desde logo, ser excluídos, como o exemplo do bibliotecário que perde um dedo ou do operário que perde um artelho; em ambos os casos, ambos continuam integrados socialmente. Ou ainda pequenas manifestações de retardo mental (deficiência mental leve) podem passar despercebidas em comunidades simples, pois tal pessoa poderá "não encontrar problemas de adaptação a sua realidade social (escola, trabalho, família)", de maneira que não se pode afirmar que tal pessoa deverá receber proteção, "tal como aquele que sofre restrições sérias em seu meio social" (obra citada, páginas 42/43).
"A questão, assim, não se resolve sob o ângulo da deficiência, mas, sim sob o prisma da integração social. Há pessoas portadoras de deficiência que não encontram qualquer problema de adaptação no meio social. Dentro de uma comunidade de doentes, isolados por qualquer motivo, a pessoa portadora de deficiência não encontra qualquer outro problema de integração, pois todos têm o mesmo tipo de dificuldade" (obra citada, p. 43).
Enfim, a constatação da existência de graus de deficiência é de fundamental importância para identificar aqueles que receberão a proteção social prevista no art. 203, V, da Constituição Federal.
Feitas essas considerações, torna-se possível inferir que não será qualquer pessoa portadora de deficiência que se subsumirá no molde jurídico protetor da Assistência Social.
Noutro passo, o conceito de pessoa portadora de deficiência, para fins do benefício de amparo social, foi tipificado no artigo 20, § 2º, da Lei nº 8.742/93, que em sua redação original assim dispunha:
"§ 2º - Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho."
Como se vê, pressupunha-se que o deficiente era aquele que: a) tinha necessidade de trabalhar, mas não podia, por conta da deficiência; b) estava também incapacitado para a vida independente. Ou seja, o benefício era devido a quem deveria trabalhar, mas não poderia e, além disso, não tinha capacidade para uma vida independente sem a ajuda de terceiros.
Lícito é concluir que, tais quais os benefícios previdenciários, o benefício de amparo social, enquanto em vigor a redação original do artigo 20, § 2º, da Lei nº 8.742/93, era substitutivo do salário. Isto é, era reservado aos que tinham a possibilidade jurídica de trabalhar, mas não tinham a possibilidade física ou mental para tanto.
Mas a redação original do artigo 20, § 2º, da LOAS foi alterada pelo Congresso Nacional, exatamente porque sua dicção gerava um sem número de controvérsias interpretativas na jurisprudência.
A Lei n º 12.435/2011 deu nova redação ao § 2º do artigo 20 da LOAS, que esculpe o perfil da pessoa com deficiência para fins assistenciais, da seguinte forma:
"§ 2o Para efeito de concessão deste benefício, considera-se: (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
I - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas;
II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos."
Com a novel legislação, o benefício continuou sendo destinado àqueles deficientes que: a) tinha necessidade de trabalhar, mas não podia, por conta de limitações físicas ou mentais; b) estava também incapacitado para a vida independente.
Todavia, o legislador, não satisfeito, novamente alterou a redação do artigo 20, § 2º, da Lei nº 8.742/93, e o conceito de pessoa com deficiência foi uma vez mais alterado, pela Lei nº 12.470/2011, passando a ter a seguinte dicção:
"§ 2o Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."
Nota-se que, com o advento desta novel lei, dispensou-se a menção à incapacidade para o trabalho ou à incapacidade para a vida independente, como requisito à concessão do benefício assistencial.
Destarte, tal circunstância (a entrada em vigor de nova lei) deve ser levada em conta neste julgamento, ex vi o artigo 462 do CPC/73 e 493 do NCPC.
Finalmente, a Lei nº 13.146/2015, que "institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência", com início de vigência em 02/01/2016, novamente alterou a redação do artigo 20, § 2º, da LOAS, in verbis:
"§ 2o Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."
Reafirma-se, assim, que o foco, doravante, para fins de identificação da pessoa com deficiência, passa a ser a existência de impedimentos de longo prazo, apenas e tão somente, tornando-se despicienda a referência à necessidade de trabalho.
5.RESERVA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Por fim, oportuno registrar que o benefício assistencial de prestação continuada não pode ser postulado como mero substituto de aposentadoria por invalidez ou auxílio-doença, por aqueles que não mais gozam da proteção previdenciária (artigo 15 da Lei nº 8.213/91), ou dela nunca usufruíram.
Muitos casos de incapacidade temporária ou mesmo permanente para o trabalho devem ser tutelados exclusivamente pelo seguro social (artigo 201 da CF), à medida que a condição de saúde do interessado (física ou mental) não gera a segregação social ínsita à condição de pessoa com deficiência. De fato, somente em relação ao benefício assistencial há necessidade de abordar a questão da integração social.
Haverá casos, dessarte, em que o interessado, conquanto incapaz total ou parcialmente, definitiva ou temporariamente, não fará jus ao benefício assistencial, à medida que não se enquadrará na condição de pessoa com deficiência.
Daí que a distinção entre as searas de cobertura da assistência e previdência sociais se faz absolutamente necessária, mormente porque a cobertura dos riscos sociais invalidez e doença depende do pagamento de contribuições, na forma dos artigos 201, caput e inciso I, da Constituição Federal, que têm a seguinte dicção:
"Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)"
Noutros termos, a pretendida ampliação do espectro da norma do artigo 20, § 2º, da Lei nº 8.742/93 encontra óbice na própria Constituição da República, segundo a qual caberá à Previdência Social a cobertura dos eventos "doença" e "invalidez" (artigo 201, I), haja vista ser imperioso levar em conta o aspecto da integração social (Luiz Alberto David Araújo, in A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 18-22).
Entendimento contrário implicará ofensa aos princípios da seletividade e distributividade (artigo 194, § único, III, da Constituição Federal), à medida que obrigará a assistência social - de abrangência já subsidiária quanto ao aspecto objetivo - a cobrir necessidades sociais de responsabilidade da previdência social, gerando, com isso, desequilíbrio no aspecto do custeio de todo o sistema tripartite da seguridade social.
Em realidade, forçoso reconhecer que pode estar havendo país afora abuso na propositura de ações visando à concessão do benefício aqui pleiteado, por ser não contributivo e pela facilidade proporcionada pela gratuidade processual.
Impende reconhecer que tal desequilíbrio no custeio da seguridade social - motivado pela assunção pela assistência social de coberturas reservadas à previdência social - pode gerar consequências sociais e econômicas gravíssimas, de feitos conjunturais e estruturais, causando maiores prejuízos à população mais pobre, que se verá desfalcada de proteção social mínima no futuro, sem falar que o descalabro orçamentário alimenta a própria pobreza, em razão do aumento do preço dos produtos gerados básicos (remédios e medicamentos incluídos) pela tributação necessária a contrabalançar o desfalque no pagamento das contribuições previdenciárias devidas (artigo 195 da CF/88).
6.CASO CONCRETO
Quanto ao requisito subjetivo da deficiência, o laudo pericial informa que o autor (então com 43 anos de idade) é portador de polineuropatia alcoólica e neurite óptica bilateral, apresentando deficiência visual bilateral com alteração anatômica dos nervos ópticos, havendo incapacidade total e temporária para o trabalho.
O perito médico relata que, atualmente, o autor necessita de auxílio de terceiros em decorrência da deficiência visual. Esclarece que existe possibilidade de cura com o abandono do etilismo e do tabagismo, além de reposição vitamínica.
Declara, ainda, que as lesões que o deixaram incapacitado para o trabalho se iniciaram há 5 anos e que "com tratamento adequado o período de 6 meses seria razoável para verificar se houve recuperação da visão". No entanto, informou que o grau de deficiência visual deveria ser avaliado por oftalmologista.
Consta dos autos que o autor é portador de glaucoma, estando inapto para o trabalho por tempo indeterminado (f. 15, datado de 25/03/2013), mas se trata de caso de simples correção por cirurgia.
Não se pode concluir, assim, que a incapacidade do autor seja de longo prazo.
No concernente à miserabilidade, o estudo social (f. 121/129) informa que o requerente reside com genitora e tio, em imóvel construído pela avó falecida, mas remanesceu aos cuidados da mãe, com quatro cômodos, em precário estado. Os cômodos estão inacabados, sem forro e no contrapiso. Os móveis que o guarnecem são velhos.
A casa está em mal estado, mas isso não impede todos os três de continuarem com seus vícios no cigarro.
De fato, o autor, posto doente, continua com o vício do cigarro, assim como os dois outros moradores do imóvel.
Seja como for, a renda familiar é obtida pelo BPC do tio e da pensão por morte recebida pela mãe.
O tio não integra o núcleo familiar (artigo 20, § 1º, da LOAS).
Contudo, a mãe integra, de modo que a renda per capita familiar é de ½ (meio) salário mínimo.
Não se aplica a regra do artigo 34, § único, do Estatuto do Idoso em relação à mãe, pois esta não possui idade mínima de 65 (sessenta e cinco) anos.
Para além, o autor possui 2 (dois) filhos jovens, adultos, em idade laborativa, ambos com o dever constitucional de auxiliar o pai, à luz do artigo 229 da Constituição Federal.
Como se vê, não se pode falar em penúria, porque há acesso aos mínimos sociais (moradia de graça, renda familiar fixa, auxílio da família).
Ante tais considerações, indevido o benefício.
Ante o exposto, dou provimento à apelação do réu para julgar improcedente o pedido.
Condeno a parte autora a pagar custas processuais e honorários de advogado, majorados para 12% sobre o valor corrido da causa, em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º e 11, do Novo CPC. Porém, fica suspensa a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do referido código, por ser beneficiária da justiça gratuita.
É o voto.
Juiz Federal Convocado
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APELAÇÃO CÍVEL Nº 0014499-13.2018.4.03.9999/SP
RELATÓRIO
Trata-se de apelação em ação ajuizada em face do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, objetivando a concessão do benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição Federal.
A r. sentença de fls. 159/166 julgou procedente o pedido e condenou o INSS a conceder o benefício pleiteado, a partir da citação, acrescido dos consectários que especifica.
Em razões recursais de fls. 171/186, pugna a Autarquia Previdenciária pela reforma da sentença, ao fundamento de que o autor não preencheu os requisitos para concessão do benefício. Insurge-se contra o termo inicial do benefício e os critérios de fixação de correção monetária e juros de mora. Suscita prequestionamento.
Subiram a esta instância.
Parecer do Ministério Público Federal (fls.196/201), no sentido do desprovimento do recurso.
É o sucinto relato.
VOTO
Inicialmente, tempestivo o recurso e respeitados os demais pressupostos de admissibilidade recursais, passo ao exame da matéria objeto de devolução.
1- BENEFÍCIO ASSISTENCIAL
A República Federativa do Brasil, conforme disposto no art. 1º, III, da Constituição Federal, tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana que, segundo José Afonso da Silva, consiste em:
"um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. 'Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.'"
(Curso de Direito Constitucional Positivo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 106-107).
Para tornar efetivo este fundamento, diversos dispositivos foram contemplados na elaboração da Carta Magna, dentre eles, o art. 7º, IV, que dispõe sobre as necessidades vitais básicas como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social e o art. 203, IV, que instituiu o benefício do amparo social.
A Lei nº 6.179/74 instituiu, em nosso ordenamento jurídico, a renda mensal vitalícia, passando a ser amparados pela Previdência Social os maiores de 70 anos e os inválidos, definitivamente incapacitados para o trabalho, desde que não exercessem atividades remuneradas ou não auferissem rendimentos. O valor do benefício correspondia à metade do maior salário-mínimo vigente no país, arredondada para a unidade de cruzeiro imediatamente superior, não podendo ultrapassar 60% do valor do salário-mínimo do local de pagamento.
Com a promulgação da Carta Magna, em 05 de outubro de 1988, o valor do benefício foi aumentado para 1 (um) salário-mínimo, pelo art. 203, inciso V:
"Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei."
Entretanto, o supracitado inciso, por ser uma norma constitucional de eficácia limitada, dependia da edição de uma norma posterior para produzir os seus efeitos.
O art. 139 da Lei n.º 8.213/91 dispunha que a renda mensal vitalícia continuaria integrando o elenco de benefícios da Previdência Social, até que o artigo constitucional fosse regulamentado.
A Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, deu eficácia ao inciso V do art. 203 da Constituição Federal e extinguiu a renda mensal vitalícia em seu art. 40, resguardando, entretanto, o direito daqueles que o requeressem até o dia 31 de dezembro de 1995, desde que preenchidos os requisitos previstos na Lei Previdenciária.
A Lei de Assistência foi regulamentada pelo Decreto nº 1.744, de 8 de dezembro de 1995, posteriormente, pelo Decreto nº 6.214, de 26 de setembro de 2007.
O art. 20 da Lei Assistencial e o art. 1º de seu decreto regulamentar estabeleceram os requisitos para a concessão do benefício, quais sejam: ser o requerente portador de deficiência ou idoso, com 70 anos ou mais e que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem tê-la provida por sua família. A idade mínima de 70 anos foi reduzida para 67 anos, a partir de 1º de janeiro de 1998, pelo art. 1º da Lei nº 9.720/98 e, posteriormente, para 65 anos, através do art. 34 da Lei nº 10.741 de 01 de outubro de 2003, mantida, inclusive, por ocasião da edição da Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011.
Os mesmos dispositivos legais disciplinaram o que consideram como pessoa portadora de deficiência, família e ausência de condições de se manter ou de ser provido pela sua família.
Pessoa portadora de deficiência é a incapacitada para a vida independente e para o trabalho, em decorrência de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, na redação dada pela Lei nº 12.470, de 31 de agosto de 2011.
O impedimento de longo prazo, a seu turno, é aquele que produz seus efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos (§10º).
A incapacidade para a vida independente, por sua vez, não há que ser entendida como aquela que impeça a execução de todos os atos da vida diária, para os quais se faria necessário o auxílio permanente de terceiros, mas a impossibilidade de prover o seu sustento sem o amparo de alguém.
Neste sentido, o entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça, em julgado da lavra do Ministro Relator Gilson Dipp (5ª Turma, REsp nº 360.202, 04.06.2002, DJU 01.07.2002, p. 377), oportunidade em que se consignou: "O laudo pericial que atesta a incapacidade para a vida laboral e a capacidade para a vida independente, pelo simples fato da pessoa não necessitar da ajuda de outros para se alimentar, fazer sua higiene ou se vestir, não pode obstar a percepção do benefício, pois, se esta fosse a conceituação de vida independente, o benefício de prestação continuada só seria devido aos portadores de deficiência tal, que suprimisse a capacidade de locomoção do indivíduo - o que não parece ser o intuito do legislador".
No que se refere à hipossuficiência econômica, de acordo com a Medida Provisória nº 1.473-34, de 11.08.97, transformada na Lei nº 9.720, em 30.11.98, definiu-se o conceito de família como o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº 8.213/91, desde que vivendo sob o mesmo teto. Com a superveniência da Lei nº 12.435/2011, fora estabelecido, expressamente para os fins do art. 20, caput, da Lei Assistencial, ser a família composta pelo requerente, cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto (art. 20, §1º).
Já no que diz respeito ao limite de ¼ do salário mínimo per capita como critério objetivo, anoto que fora ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232-1/DF, pelo Procurador-Geral da República, julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a constitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93.
Os debates, entretanto, não cessaram, por ser tormentosa a questão e envolver princípios fundamentais contidos na Carta da República, situação que culminou, inclusive, com o reconhecimento, pelo mesmo STF, da ocorrência de repercussão geral.
A Suprema Corte acabou por declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, inclusive por considerar defasada essa forma meramente aritmética de se apreciar a situação de miserabilidade dos idosos ou deficientes que visam a concessão do benefício assistencial (Plenário, RCL 4374, j. 18.04.2013, DJE de 04/09/2013).
No entanto, é preciso que se tenha a possibilidade de ao menos entrever, a partir da renda informada, eventual quadro de pobreza em função da situação específica de quem pleiteia o benefício, até que o Poder Legislativo estabeleça novas regras.
Para tanto, faz-se necessário o revolvimento de todo o conjunto probatório, através do qual se possa aferir eventual miserabilidade. E assim o é diante do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, já mencionado no início desta decisão, com vistas à garantia de suas necessidades básicas de subsistência, o que leva o julgador a interpretar a normação legal de sorte a conceder proteção social ao cidadão economicamente vulnerável, tal como assentado no REsp 1112557 julgado sob o rito do art. 543-C do CPC/73.
Confira-se:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98, dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido.
(REsp 1112557/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009)
Por outro lado, observo que a Lei nº 12.470, de 31 de agosto de 2011, passou a considerar como de "baixa renda" a família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal cuja renda mensal seja de até 2 (dois) salários mínimos, ainda que para os fins específicos de custeio ali limitado. Na mesma trilha, as Leis que criaram o Bolsa Família (10.836/04), Programa Nacional de Acesso à Alimentação (10.689/03) e o Bolsa Escola (10.219/01) estabeleceram parâmetros mais coerentes de renda familiar mínima quanto em cotejo com aquele estabelecido de ¼ do salário mínimo, agora declarado inconstitucional.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 580.963/PR (DJe 14.11.2013), assentou a inconstitucionalidade por omissão do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, considerando a "inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo." Assim, entendo que deve ser excluído do cômputo da renda per capita o valor decorrente de benefício de valor mínimo recebido por idoso ou inválido, pertencente ao núcleo familiar.
Nesse sentido, o C. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1355052, submetido ao regimento do art. 543-C do CPC, assentou que não se computa o valor de um salário mínimo percebido por idoso a título de beneficio assistencial ou previdenciário para aferição de hipossuficiência de núcleo familiar.
PREVIDENCIÁRIO. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. CONCESSÃO DE BENEFÍCIO ASSISTENCIAL PREVISTO NA LEI N. 8.742/93 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA. AFERIÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA DO NÚCLEO FAMILIAR. RENDA PER CAPITA. IMPOSSIBILIDADE DE SE COMPUTAR PARA ESSE FIM O BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO, NO VALOR DE UM SALÁRIO MÍNIMO, RECEBIDO POR IDOSO.
1. Recurso especial no qual se discute se o benefício previdenciário, recebido por idoso, no valor de um salário mínimo, deve compor a renda familiar para fins de concessão ou não do benefício de prestação mensal continuada a pessoa deficiente.
2. Com a finalidade para a qual é destinado o recurso especial submetido a julgamento pelo rito do artigo 543-C do CPC, define-se: Aplica-se o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03), por analogia, a pedido de benefício assistencial feito por pessoa com deficiência a fim de que benefício previdenciário recebido por idoso, no valor de um salário mínimo, não seja computado no cálculo da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93.
3. Recurso especial provido. Acórdão submetido à sistemática do § 7º do art. 543-C do Código de Processo Civil e dos arts. 5º, II, e 6º, da Resolução STJ n. 08/2008.
(REsp 1355052 /SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/02/2015, DJe 05/11/2015)
Feitas essas considerações, passo à análise do conjunto probatório formado nestes autos.
2. DO CASO DOS AUTOS
O laudo pericial de fls. 81/86 informa que o autor é portador de polineuropatia alcoólica e neurite óptica bilateral, apresentando deficiência visual bilateral com alteração anatômica dos nervos ópticos, havendo incapacidade total e temporária para o trabalho.
O perito médico relata que, atualmente, o autor necessita de auxílio de terceiros em decorrência da deficiência visual. Esclarece que existe possibilidade de cura com o abandono do etilismo e do tabagismo, além de reposição vitamínica.
Declara, ainda, que as lesões que o deixaram incapacitado para o trabalho se iniciaram há 5 anos e que "com tratamento adequado o período de 6 meses seria razoável para verificar se houve recuperação da visão". No entanto, informou que o grau de deficiência visual deveria ser avaliado por oftalmologista.
O requerente conta com 43 anos de idade e trabalhou como ajudante geral.
O conjunto probatório dos autos demonstra que a incapacidade do autor é de longo prazo. Ademais, sequer foi suficientemente esclarecida a natureza da deficiência visual, dada a indicação de submissão do requerente à avaliação oftalmológica. Necessário salientar que consta dos autos que o autor é portador de glaucoma, estando inapto para o trabalho por tempo indeterminado (fl. 15, datado de 25/03/2013).
Ressalto que o benefício assistencial deve ser revisto a cada 2 (dois) anos, para a avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem, nos termos do art. 21 da Lei de Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214/07.
Desta forma, entendo preenchido o requisito legal da deficiência.
A ausência de condições de prover o seu sustento ou tê-lo provido pela família também restou demonstrada. O estudo social de 07 de maio de 2016 (fls. 121/129) informa que o requerente reside com genitora e tio, em imóvel pertencente a avó falecida, com quatro cômodos, em precário estado.
Os cômodos estão inacabados, sem forro e no contrapiso. Os móveis que o guarnecem são velhos.
A renda familiar deriva dos benefícios de pensão por morte recebidos pelo tio e a genitora, ambos no valor de um salário mínimo. Conforme o estudo, o tio é portador problemas mentais, visuais e auditivos, fato que se corrobora pela percepção do benefício pela genitora(extrato do PLENUS de fl. 139), devendo a renda por ele auferida ser excluída do cômputo da renda per capita, nos termos da fundamentação.
O estudo social informa gastos com medicamentos, no valor de R$160,00.
A assistente social conclui que "o autor está com a saúde debilitada, dificuldades para enxergar e aparente problema psicológico, que precisa ser avaliado por um profissional da área específica. O local onde mora é precário, de extrema pobreza, sem higiene e sem nenhum conforto".
Desta forma, do conjunto probatório dos autos, verifico que restou demonstrada a miserabilidade, sendo de rigor o acolhimento do pedido inicial e concessão do benefício.
TERMO INICIAL
O dies a quo do benefício de prestação continuada deve corresponder à data em que a Autarquia Previdenciária tomou conhecimento do direito da parte autora e se recusou a concedê-lo.
No caso dos autos, o autor não comprovou ter formulado prévio requerimento administrativo.
No entanto, a ação foi ajuizada em 10/04/2013 e o réu apresentou contestação com insurgência de mérito. Assim, restou demonstrado o interesse de agir, nos termos da atual jurisprudência do C. STF.
Desta forma, o termo inicial do benefício deve ser mantido na data da citação (26/07/2013 - fl. 20).
3. CONSECTÁRIOS
JUROS DE MORA
Conforme disposição inserta no art. 219 do Código de Processo Civil 1973 (atual art. 240 Código de Processo Civil - Lei nº 13.105/2015), os juros de mora são devidos a partir da citação na ordem de 6% (seis por cento) ao ano, até a entrada em vigor da Lei nº 10.406/02, após, à razão de 1% ao mês, consonante com o art. 406 do Código Civil e, a partir da vigência da Lei nº 11.960/2009 (art. 1º-F da Lei 9.494/1997), calculados nos termos deste diploma legal.
CORREÇÃO MONETÁRIA
A correção monetária deve ser aplicada em conformidade com a Lei n. 6.899/81 e legislação superveniente (conforme o Manual de Cálculos da Justiça Federal), observados os termos da decisão final no julgamento do RE n. 870.947, Rel. Min. Luiz Fux.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
Com o advento do novo Código de Processo Civil, foram introduzidas profundas mudanças no princípio da sucumbência, e em razão destas mudanças e sendo o caso de sentença ilíquida, a fixação do percentual da verba honorária deverá ser definida somente na liquidação do julgado, com observância ao disposto no inciso II, do § 4º c.c. § 11, ambos do artigo 85, do CPC/2015, bem como o artigo 86, do mesmo diploma legal.
Os honorários advocatícios a teor da Súmula 111 do E. STJ incidem sobre as parcelas vencidas até a sentença de procedência.
Cumpre salientar que, diante de todo o explanado, a r. sentença não ofendeu qualquer dispositivo legal, não havendo razão ao prequestionamento apresentado pelo Instituto Autárquico em seu apelo.
4-DISPOSITIVO
Ante o exposto, dou parcial provimento à apelação do réu, para reformar a sentença no tocante aos juros de mora e ajustar os critérios de fixação de correção monetária, nos termos da decisão final do RE870.947, observada a verba honorária, na forma acima fundamentada.
É o voto.
Desembargador Federal
| Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por: | |
| Signatário (a): | GILBERTO RODRIGUES JORDAN:10076 |
| Nº de Série do Certificado: | 11DE1806053B9927 |
| Data e Hora: | 30/08/2018 12:35:23 |
