
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000215-33.2022.4.03.6002
RELATOR: Gab. 30 - DES. FED. CRISTINA MELO
APELANTE: JOSE ROGERIO GONCALVES DIAS
REPRESENTANTE: VANDA GONCALVES DIAS
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000215-33.2022.4.03.6002
RELATOR: Gab. 30 - DES. FED. CRISTINA MELO
APELANTE: JOSE ROGERIO GONCALVES DIAS
REPRESENTANTE: VANDA GONCALVES DIAS
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL CRISTINA MELO: Trata-se de ação ordinária movida pela parte autora, objetivando a inexigibilidade de débito previdenciário de R$ 80.480,08, referente a Benefício Assistencial a Pessoa com Deficiência – LOAS.
Em apertada síntese, alega a parte autora que recebeu o benefício do BPC/LOAS de boa-fé até a sua suspensão pelo requerido sob a alegação de não mais preencher os requisitos legais, mais especificamente o critério de miserabilidade (renda per capita superior a ¼ do salário mínimo). Entretanto, sustenta que “seu núcleo familiar nunca deixou de ser economicamente pobre”, sendo, portanto, indevida a cobrança de tais valores pelo INSS.
O juízo a quo julgou improcedente o pedido, para condenar a parte autora a restituir os valores:
Assim, cabe definir o que se entende por família para fins de concessão do benefício previdenciário. Novamente, a própria lei de regência se encarrega de fazê-lo, ao apontar que “a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto”.
O laudo socioeconômico informa que a renda per capita é R$1.210, superior, portanto, a meio salário-mínimo mensal.
Destarte, não se demonstra o requisito miserabilidade.
Recusa-se a boa-fé da autora, pois o pleito foi realizado além do limite legal.
Portanto, é IMPROCEDENTE A DEMANDA, para rejeitar o pedido da autora, resolvendo o mérito do processo, na forma do artigo 487, I, do CPC.
Sem custas. Condena-se em honorários em 10% do valor da causa, mas eles ficam com a exigibilidade suspensa pelo prazo quinquenal.
Apela a parte, assistida pela Defensoria Pública da União, pela reforma da decisão, alegando se tratar de verba alimentar e percebida de boa-fé.
Com contrarrazões, subiram os autos à esta Corte.
É o relatório.
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000215-33.2022.4.03.6002
RELATOR: Gab. 30 - DES. FED. CRISTINA MELO
APELANTE: JOSE ROGERIO GONCALVES DIAS
REPRESENTANTE: VANDA GONCALVES DIAS
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL CRISTINA MELO: O recurso de apelação preenche os requisitos de admissibilidade e merece ser conhecido.
Cinge-se a controvérsia em dirimir se o autor deve devolver ao INSS os valores recebidos a título de benefício de amparo a pessoa com deficiência, em razão da aposentação de sua genitora e curadora ter alterado a renda familiar.
Como é conhecido de todos, o Colendo Supremo Tribunal Federal (STF) pacificou o entendimento admitindo a possibilidade de a Administração Pública rever os seus atos, quando eivados de nulidades e vícios, mediante o exercício de autotutela para fins de proceder a anulação ou revogação, nos termos das Súmulas 346 e 473, in verbis:
Súmula 346: "A administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos" (STF, Sessão Plenária 13/12/1963)
Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial" (STF, Sessão Plenária 03/12/1969).
Com o advento do artigo 114 da Lei n. 8.112, de 11/12/1990, a ordem jurídica passou a conter norma legal expressa concedendo suporte ao princípio da autotutela administrativa, estabelecendo que: "A administração deverá rever seus atos, a qualquer tempo, quando eivados de ilegalidade”.
Nessa senda, a Lei n. 9.784, de 29/01/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, passou a disciplinar o dever de a Administração anular os seus atos quando maculados por vícios de ilegalidade, bem assim revogá-los por razões de conveniência e oportunidade, na forma preconizada pelos artigos 53 e 54, in verbis:
Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
De outro giro, o Código Civil disciplina a obrigação de devolução de valores recebidos ilicitamente, na forma do que dispõem os seus artigos 876, 884 e 927, in verbis:
Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.
(...) Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
(...) Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Na esfera previdenciária, o artigo 115, inciso II, daLei n. 8.213, de 24/07/1991, estabelece que cabe à Autarquia Previdenciária efetuar a cobrança de valores pagos indevidamente, identificados em regular processo administrativo, nos seguintes termos:
Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios:
(...)II - pagamento administrativo ou judicial de benefício previdenciário ou assistencial indevido, ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da sua importância, nos termos do regulamento; (Redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019)
Ademais, se comprovada a hipótese de dolo, fraude ou má-fé, a restituição das importâncias recebidas indevidamente deverá ser efetuada de uma só vez, consoante o artigo 154, § 2º, do Decreto n. 3.048, de 06/05/1999.
Nessa senda, a controvérsia sobre os limites aplicáveis à restituição conduziu o C. Superior Tribunal de Justiça a afetar o tema para perscrutar a respeito da seguinte questão: "Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração da Previdência Social".
O assunto foi pacificado no julgamento do REsp 1.381.734/RN, Relator Ministro BENEDITO GONÇALVES, no bojo do qual foi cristalizado o Tema 979/STJ: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis os valores, sendo legítimo o seu desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) do valor do benefício mensal, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido".
Além disso, houve modulação dos efeitos, em obséquio ao princípio da segurança jurídica, mormente em razão do interesse social e da repercussão do julgamento, razão por que o C. STJ fixou a aplicação do Tema 979/STJ somente aos processos distribuídos, na primeira instância, a partir da publicação do v. acórdão, ocorrida em 23/04/2021.
Eis a ementa, in verbis:
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. TEMA 979. ARTIGO 1.036 DO CPC/2015. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. ARTIGOS 884 E 885 DO CÓDIGO CIVIL/2002. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211 DO STJ. ART. 115, II, DA LEI N. 8.213/1991. DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS POR FORÇA DE INTERPRETAÇÃO ERRÔNEA E MÁ APLICAÇÃO DA LEI. NÃO DEVOLUÇÃO. ERRO MATERIAL DA ADMINISTRAÇÃO. POSSIBILIDADE DE DEVOLUÇÃO SOMENTE NA HIPÓTESE DE ERRO EM QUE OS ELEMENTOS DO CASO CONCRETO NÃO PERMITAM CONCLUIR PELA INEQUÍVOCA PRESENÇA DA BOA-FÉ OBJETIVA.
1. Da admissão do recurso especial: Não se conhece do recurso especial quanto à alegada ofensa aos artigos 884 e 885 do Código Civil, pois não foram prequestionados. Aplica-se à hipótese o disposto no enunciado da Súmula 211 do STJ. O apelo especial que trata do dissídio também não comporta conhecimento, pois não indicou as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os precedentes colacionados e também por ausência de cotejo analítico e similitude entre as hipóteses apresentadas. Contudo, merece conhecimento o recurso quanto à suposta ofensa ao art. 115, II, da lei n. 8.213/1991.
2. Da limitação da tese proposta: A afetação do recurso em abstrato diz respeito à seguinte tese: Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração da Previdência Social.
3. Irrepetibilidade de valores pagos pelo INSS em razão da errônea interpretação e/ou má aplicação da lei: O beneficiário não pode ser penalizado pela interpretação errônea ou má aplicação da lei previdenciária ao receber valor além do devido. Diz-se desse modo porque também é dever-poder da Administração bem interpretar a legislação que deve por ela ser aplicada no pagamento dos benefícios. Dentro dessa perspectiva, esta Corte Superior evoluiu a sua jurisprudência passando a adotar o entendimento no sentido de que, para a não devolução dos valores recebidos indevidamente pelo beneficiário da Previdência Social, é imprescindível que, além dcaráter alimentar da verba e do princípio da irrepetibilidade do benefício, a presença da boa-fé objetiva daquele que recebe parcelas tidas por indevidas pela administração. Essas situações não refletem qualquer condição para que o cidadão comum compreenda de forma inequívoca que recebeu a maior o que não lhe era devido.
4. Repetição de valores pagos pelo INSS em razão de erro material da Administração previdenciária: No erro material, é necessário que se averigue em cada caso se os elementos objetivos levam à conclusão de que houve boa-fé do segurado no recebimento da verba. Vale dizer que em situações em que o homem médio consegue constatar a existência de erro, necessário se faz a devolução dos valores ao erário.
5. Do limite mensal para desconto a ser efetuado no benefício: O artigo 154, § 3º, do Decreto n. 3.048/1999 autoriza a Administração Previdenciária a proceder o desconto daquilo que pagou indevidamente; todavia, a dedução no benefício só deverá ocorrer quando se estiver diante de erro da administração. Nesse caso, caberá à Administração Previdenciária, ao instaurar o devido processo administrativo, observar as peculiaridades de cada caso concreto, com desconto no beneficio no percentual de até 30% (trinta por cento).
6. Tese a ser submetida ao Colegiado: Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis os valores, sendo legítimo o seu desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) do valor do benefício mensal, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.
7. Modulação dos efeitos: Tem-se de rigor a modulação dos efeitos definidos neste representativo da controvérsia, em respeito à segurança jurídica e considerando o inafastável interesse social que permeia a questão sub examine, e a repercussão do tema que se amolda a centenas de processos sobrestados no Judiciário. Desse modo somente deve atingir os processos que tenham sido distribuídos, na primeira instância, a partir da publicação deste acórdão.
8. No caso concreto: Há previsão expressa quanto ao momento em que deverá ocorrer a cessação do benefício, não havendo margem para ilações quanto à impossibilidade de se estender o benefício para além da maioridade da beneficiária. Tratou-se, em verdade, de simples erro da administração na continuidade do pagamento da pensão, o que resulta na exigibilidade de tais valores, sob forma de ressarcimento ao erário, com descontos nos benefícios, tendo em vista o princípio da indisponibilidade do patrimônio público e em razão da vedação ao princípio do enriquecimento sem causa. Entretanto, em razão da modulação dos efeitos aqui definidos, deixa-se de efetuar o descontos dos valores recebidos indevidamente pelo segurado.
9. Dispositivo: Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido. Acórdão sujeito ao regime previsto no artigo 1.036 e seguintes do CPC/2015.
(STJ, REsp 1.381.734 - RN, 1ª Seção, Relator Ministro BENEDITO GONÇALVES, j. em 10.03.2021, DJe 23.04.2021) (destaquei)
Do caso concreto
O autor faz parte de núcleo familiar composto pelo assistido (pessoa com deficiência e interdito civil), sua mãe/curadora Vanda Gonçalves Dias (65 anos), seu tio Alberto Gonçalves Mendes (67 anos), que segundo o laudo social atualizado, possui renda total de R$ 2.420,00, consistente em benefício de aposentadoria e pensão por morte.
De fato, conforme consta do laudo socioeconômico, a renda per capita familiar supera meio salário-mínimo mensal, e nesse contexto, correto a suspensão do benefício.
Contudo, não é hipótese de devolução da quantia pretendida pelo INSS.
De início, menciono que o núcleo familiar da parte permanece o mesmo quando do pedido administrativo, sendo o mesmo constante de diversos cadastros sociais, como o CadÚnico, de modo que não vislumbro qualquer tentativa de omissão ou fraude pela parte. Pelo contrário, do laudo social, se constata que a parte é analfabeta e interdita, sendo sua genitora sua curadora, também pessoa de baixa instrução (fundamental completo).
À luz dos elementos colhidos nos autos, não se afigura plausível deduzir que a parte autora sabia sobre critérios técnicos, até porque simplesmente pleiteou o benefício administrativamente.
Nessa situação, é muito mais simples ao INSS constatar tal situação mediante simples pesquisa interna, considerando-se que o artigo 21 da Lei n. 8.742/1992 lhe impõe o dever de a cada 2 (dois) anos avaliar a continuidade das condições que deram origem ao benefício, o que não ocorreu.
Confira-se a redação do referido artigo:
Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem. (Vide Lei nº 9.720, de 30.11.1998)
§ 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no caput, ou em caso de morte do beneficiário.
§ 2º O benefício será cancelado quando se constatar irregularidade na sua concessão ou utilização.
§ 3o O desenvolvimento das capacidades cognitivas, motoras ou educacionais e a realização de atividades não remuneradas de habilitação e reabilitação, entre outras, não constituem motivo de suspensão ou cessação do benefício da pessoa com deficiência. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 4º A cessação do benefício de prestação continuada concedido à pessoa com deficiência não impede nova concessão do benefício, desde que atendidos os requisitos definidos em regulamento. (Redação dada pela Lei nº 12.470, de 2011)
§ 5º O beneficiário em gozo de benefício de prestação continuada concedido judicial ou administrativamente poderá ser convocado para avaliação das condições que ensejaram sua concessão ou manutenção, sendo-lhe exigida a presença dos requisitos previstos nesta Lei e no regulamento. (Incluído pela Lei nº 14.176, de 2021)
Desse modo, configurado o erro operacional do INSS, não pode transferir sua obrigação ao segurado, que sempre agiu de boa-fé, devendo arcar com o ônus financeiro de sua inércia.
Denota-se, ainda, que a Autarquia ré apresentou narrativa genérica, não se desincumbindo do seu ônus de comprovar quais atos específicos provam a má-fé do autor no recebimento do benefício.
Como se vê, e na linha do quanto decidido pela Primeira Seção do Colendo Superior Tribunal de Justiça, em julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, ao fixar a tese a que se fez referência, supra, diante de casos de erro material ou operacional, como o que ora se analisa, deve-se averiguar a presença da boa-fé do segurado.
Houve erro administrativo da Autarquia ao conceder o segundo benefício, tendo em vista possuir aparato tecnológico para realizar o cruzamento de dados, momento em que o INSS - e não o segurado - deveria avaliar se o benefício poderia, ou não, ser cumulado com outros benefícios anteriormente concedidos.
Trata-se de providência que não compete ao segurado, pois ele apenas encaminha a solicitação à Autarquia, que, por sua vez, tem o poder-dever de apreciar a solicitação, o preenchimento dos requisitos e, principalmente, se há algum óbice à concessão - como ocorria in casu.
Para caracterizar a má-fé é necessária a presença do elemento subjetivo, além da verificação da conduta, do dano e do nexo de causalidade, como leciona Alexandre Freitas Câmara (O novo processo civil brasileiro, São Paulo, Atlas, 2015, p. 67):
É que a boa-fé que aqui se viola é a subjetiva, não a objetiva. Daí porque, aliás, fala-se em litigância de má-fé. É que, como notório, a violação da boa-fé objetiva leva a que se possa falar, tão somente, em ausência de boa-fé, enquanto a violação da boa-fé subjetiva se caracteriza como má-fé. Assim, ao falar a lei processual em litigância de má-fé, muito claramente se verifica que a obrigação de pagar a multa e indenizar os danos causados pela conduta processual ímproba exige a presença de um elemento subjetivo: má-fé.
Mais além, presumir a má-fé do autor em obter vantagem ilícita é violar o princípio da boa-fé, pois segundo o E. Superior Tribunal de Justiça a má-fé não se presume, pelo contrário, tem que ser baseada em elementos concretos, o que não é o caso:
"A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar a parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova" (REsp 956.943⁄PR - Repetitivo, Rel. p⁄ acórdão Ministro João Otávio Noronha, Corte Especial, DJe de 01.12.2014).
Desse modo, merece reforma a decisão, não sendo exigível a restituição de tais valores recebidos em razão de erro administrativo, dado o contido no Tema 979 do STJ e a ausência de comprovação de má-fé da parte autora no recebimento.
Assim, é possível notar que a parte autora em nada colaborou com o ocorrido, já que somente deduziu o seu pedido junto à Autarquia Previdenciária, para que o INSS concedesse, ou não, o pretendido benefício, se amoldando no contido no precedente.
Nesse sentido, o entendimento deste Tribunal Regional Federal da 3ª Região, ipsis litteris:
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO PAGO INDEVIDAMENTE. RECEBIMENTO DE BOA-FÉ. ERRO DA ADMINISTRAÇÃO. INEXEGIBILIDADE DA RESTITUIÇÃO AO ERÁRIO. 1.Não há que se falar na incompetência da Justiça Estadual para apreciar a questão relativa à necessidade de devolução de valores recebidos indevidamente a título de benefício previdenciário, em virtude da competência federal delegada prevista no Art. 109, § 3º, da Constituição Federal. 2. Restou pacificado pelo e. Supremo Tribunal Federal ser desnecessária a restituição dos valores recebidos de boa fé, devido ao seu caráter alimentar, em razão do princípio da irrepetibilidade dos alimentos (MS 26085, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Tribunal Pleno; RE 587371, Relator Ministro Teori Zavascki, Tribunal Pleno; RE 638115, RE 638115, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno). 3. Pelo princípio da autotutela, a Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (Súmula nº 473/STF). 4. Uma vez descontado pelo INSS, não se pode cogitar na hipótese de devolução de valores, compelindo a Administração a pagar algo que, efetivamente, não deve. A natureza alimentar do benefício não abarca as prestações já descontadas e que não eram devidas. 5. Tendo a autoria decaído de parte do pedido, devem ser observadas as disposições contidas nos §§ 2º, 3º, I, e 4º, do Art. 85, e no Art. 86, do CPC. 6. Apelação provida em parte. (TRF 3ª Região, 10ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 6088312-34.2019.4.03.9999, Rel. Desembargador Federal PAULO OCTAVIO BAPTISTA PEREIRA, julgado em 28/9/2021, DJEN DATA: 6/10/2021)
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E 12.435/2011. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. DEVOLUÇÃO DE VALORES. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA.
- O benefício de prestação continuada é devido ao portador de deficiência ou idoso que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
- Na hipótese dos autos, a parte autora não demonstrou o preenchimento de requisito essencial à concessão do benefício assistencial.
- O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), fixou a seguinte tese: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo (material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido."
- A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma. Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007).
- A Autarquia Federal não efetuou a reavaliação da continuidade das condições que originaram a concessão do benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, nos termos do art. 21 da Lei de Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214, fugindo à razoabilidade a tentativa de cobrar da Autora o pagamento de quantia que alcançou monta tão vultosa, em consequência do extenso lapso temporal em que a mesma auferiu o referido benefício em suposto desacordo com a norma legal.
- Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto equívoco administrativo na concessão do benefício, o que afasta a existência de má-fé. - Ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé da Autora e, em vista do caráter alimentar do amparo social, inexigível a devolução dos valores já pagos. - Na hipótese dos autos, incabível a condenação ao pagamento de honorários advocatícios, por se tratar de pessoas jurídicas de direito público integrantes da mesma fazenda, a teor da Súmula nº 421 do Superior Tribunal de Justiça. - Tendo em vista que as partes envolvidas integram o âmbito do mesmo ente federativo e, de acordo com o entendimento jurisprudencial consolidado, torna-se inviável a condenação às verbas de sucumbência. Apelação provida em parte.
(ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP 5003254-09.2022.4.03.6141, 9ª Turma, 28/09/2023, Desembargador Federal GILBERTO JORDAN).
Assim, é impositiva a reforma da sentença para afastar a exigibilidade da cobrança.
Hipótese de reforma da sentença, inverto os honorários sucumbenciais e advocatícios a serem pagos pelo INSS, que fixo em 10% sobre o valor do proveito econômico obtido pelo autor.
Importante esclarecer que é possível o pagamento de honorários advocatício à Defensoria Pública por qualquer ente público, mesmo aquele que integra, conforme Tema nº. 1.002 do E. Supremo Tribunal Federal, cujo julgamento transitou em julgado em 17/11/2023:
"1. É devido o pagamento de honorários sucumbenciais à Defensoria Pública, quando representa parte vencedora em demanda ajuizada contra qualquer ente público, inclusive aquele que integra; 2. O valor recebido a título de honorários sucumbenciais deve ser destinado, exclusivamente, ao aparelhamento das Defensorias Públicas, vedado o seu rateio entre os membros da instituição".
O art. 4º, I, da Lei 9.289/96, que dispõe sobre as custas devidas à União, estabelece que as autarquias federais são isentas do pagamento de custas processuais nos processos em trâmite perante a Justiça Federal.
Entretanto, consoante disposto no § 1º do artigo 1º da mencionada lei, "rege-se pela legislação estadual respectiva a cobrança de custas nas causas ajuizadas perante a Justiça Estadual, no exercício da jurisdição federal.".
Conclui-se, assim, que a isenção de custas nas causas processadas na Justiça Estadual depende de lei local que a preveja.
Nesse passo, verifico que no que se refere às ações que tramitam perante a Justiça Estadual de São Paulo, como in casu, a isenção de custas processuais para o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS está assegurada nas Leis Estaduais nº. 4.952/85 e 11.608/03.
Tal isenção, decorrente de lei, não exime o INSS do reembolso das custas recolhidas pela parte autora (art. 4º, parágrafo único, da Lei nº. 9.289/96), inexistentes, no caso, tendo em conta a gratuidade processual que foi concedida à parte autora.
Diante do exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO à apelação da parte autora, para declarar inexigível a cobrança nos termos da fundamentação.
É o voto.
/gabcm/gdsouza
DECLARAÇÃO DE VOTO
A Exma. Sra. Desembargadora Federal Daldice Santana: A Desembargadora Federal Cristina Melo deu parcial provimento à apelação da parte autora, para declarar inexigível a cobrança administrativa.
Não obstante os judiciosos fundamentos expostos no voto de Sua Excelência, deles ouso divergir, pelas seguintes razões.
Efetivamente, quanto à devolução de valores recebidos de boa-fé em razão de erro da Administração, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de recurso repetitivo (Tema 979), julgado em 10/3/2021, DJe 23/4/2021, assim deliberou sobre a matéria:
“Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis os valores, sendo legítimo o seu desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) do valor do benefício mensal, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.”
Desse julgamento é possível extrair as seguintes conclusões: (i) o pagamento indevido decorrente de interpretação errônea ou má aplicação da lei pela Administração Previdenciária não é suscetível de repetição; (ii) o pagamento indevido decorrente de erro material ou operacional da Administração Previdenciária é repetível, salvo se o segurado demonstrar que não lhe era possível constatar o erro (boa-fé objetiva); (iii) a hipótese de repetição em razão de erro da Administração Previdenciária atinge somente os processos distribuídos desde 23/4/2021 (modulação dos efeitos); (iv) admitida a repetição, é permitido o desconto do percentual de até 30% do valor mensal do benefício do segurado.
Sobre a boa-fé objetiva, nos dizeres da Ministra Nancy Andrighi, “esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (STJ, REsp n. 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007).
Por sua vez, a boa-fé subjetiva está relacionada à intenção do agente, contrapondo-se à má-fé (pressuposto do ilícito civil), a qual não se presume e deve ser demonstrada.
Neste caso, a ação foi ajuizada em 31/1/2022, depois, portanto, do julgamento do Tema n. 979, estando fora do alcance da modulação dos efeitos do julgado.
A parte autora pretende a declaração de inexigibilidade da obrigação de devolver os valores recebidos a título de benefício de amparo social à pessoa deficiente (NB 87/100.273.623-1– DER 18/4/1996) entre 30/9/2015 e 31/8/2021.
Realizada revisão periódica administrativa, o INSS identificou irregularidade no pagamento do benefício assistencial à parte autora, por ter sido constatada superação da renda per capita do grupo familiar, em razão do recebimento de aposentadoria e pensão por morte pela genitora, contrariando o disposto no § 3º do artigo 20 do Lei n. 8.742/1993.
Dessa forma, entende o INSS que o autor não mais preenchia os requisitos necessários à manutenção do benefício, faltando-lhe a miserabilidade.
Do conjunto probatório carreado aos autos não há elementos capazes de ilidir essa constatação e demonstrar que, de fato, remanescia situação de miserabilidade depois de alterada a renda per capita do grupo familiar. Seria ônus da parte postulante, do qual, neste caso, ela não se desincumbiu.
Em conformidade com as provas colacionadas aos autos, está evidenciado erro operacional da Administração Previdenciária pelo não cumprimento da determinação legal, prevista no artigo 21 da Lei n. 8.742/1993 (LOAS), de rever o benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.
Em razão desse erro remanesce a obrigação da parte beneficiária devolver os valores, nos termos delineados no Tema n. 979 do STJ.
Ademais, não há demonstração de que "não lhe era possível constatar o pagamento indevido" do benefício assistencial, conforme ressalva disposta na tese jurídica fixada.
Em decorrência, é impositiva a manutenção da sentença.
Fica mantida a condenação da parte autora a pagar custas processuais e honorários de advogado, arbitrados em 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º e 11, do CPC, suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
Diante do exposto, nego provimento à apelação.
É o voto.
Desembargadora Federal DALDICE SANTANA
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E 12.435/2011. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. DEVOLUÇÃO DE VALORES. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA. APELAÇÃO DA PARTE AUTORA PARCIALMENTE PROVIDA.
- O benefício de prestação continuada possui dois os requisitos para a concessão do benefício assistencial : a) condição de deficiente ou idoso (65 anos ou mais); e b) situação de risco social (estado de miserabilidade, hipossuficiência econômica ou situação de desamparo) da parte autora e de sua família.
- É indevida a devolução de valores recebidos em decorrência de erro da Administração Pública no pagamento do benefício previdenciário, tanto em razão da boa-fé do segurado e da sua condição de hipossuficiente, como também em virtude do caráter alimentar das parcelas e da irrepetibilidade dos alimentos.
- Por se tratar de ônus probatório do INSS, a má-fé não pode ser imputada à requerente sem que haja provas cabais nesse sentido, como já tem sido decidido nessa Corte.
- Sentença reformada. Inversão do ônus sucumbencial.
- Apelo da parte parcialmente provido.
