
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000527-91.2023.4.03.6125
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: JOAQUIM DE CAMPOS SALLES NETO
REPRESENTANTE: CLEUSA DA CUNHA SALLES
Advogados do(a) APELANTE: ATILA MOURA ABELLA - RS66173-A, RENAN NASCIMENTO DE OLIVEIRA - RS80622-A,
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000527-91.2023.4.03.6125
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: JOAQUIM DE CAMPOS SALLES NETO
REPRESENTANTE: CLEUSA DA CUNHA SALLES
Advogados do(a) APELANTE: ATILA MOURA ABELLA - RS66173-A, RENAN NASCIMENTO DE OLIVEIRA - RS80622-A,
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
R E L A T Ó R I O
Cuida-se de apelação interposta pela parte autora em face de sentença que julgou improcedentes seus pedidos.
Sem custas e sem honorários advocatícios.
Nas razões recursais, a parte autora alega, em síntese, o preenchimento dos requisitos necessários ao restabelecimento do benefício assistencial de prestação continuada. Alega, ainda, ser indevida a restituição dos valores pagos indevidamente a título de benefício assistencial e requer a reforma integral do julgado.
Sem contrarrazões, os autos subiram a esta Corte.
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo parcial provimento do recurso, apenas para afastar a exigibilidade da cobrança dos valores já pagos a título de benefício assistencial.
É o relatório.
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000527-91.2023.4.03.6125
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: JOAQUIM DE CAMPOS SALLES NETO
REPRESENTANTE: CLEUSA DA CUNHA SALLES
Advogados do(a) APELANTE: ATILA MOURA ABELLA - RS66173-A, RENAN NASCIMENTO DE OLIVEIRA - RS80622-A,
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
V O T O
Conheço da apelação, em razão da satisfação dos seus requisitos.
Discute-se nos autos o direito da parte autora a benefício assistencial de prestação continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, regulamentado, atualmente, pelos Decretos n. 6.214/2007 e 7.617/2011.
Essa lei conferiu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal (CF/1988) ao estabelecer as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar a situação de miserabilidade ou hipossuficiência, ou seja, não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
DA HIPOSSUFICIÊNCIA OU MISERABILIDADE
A respeito do requisito objetivo, o tema foi levado à apreciação do Pretório Excelso por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), movida pelo Procurador Geral da República, na qual, em meio à análise de outros temas, decidiu-se que o benefício de que trata o artigo 203, inciso V, da CF/1988 pode ser exigido somente a partir da edição da Lei n. 8.742/1993.
Trata-se da ADIN n. 1.232-2, de 27/8/1998, publicada no DJU de 1º/6/2001, de relatoria do Ministro Maurício Correa (RTJ 154/818), na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) reputou constitucional a restrição contida no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993.
Posteriormente, em controle difuso de constitucionalidade, o STF manteve aquele entendimento (vide RE n. 213.736-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Informativo STF n. 179; RE 256.594-6, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 28/4/2000, Informativo STF n. 186; RE n. 280.663-3, São Paulo, j. 6/9/2001, Rel. Min. Maurício Corrêa).
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em vários precedentes, considerou que a presunção objetiva absoluta de miserabilidade, da qual fala a lei, não afasta a possibilidade de comprovação da condição de miserabilidade por outros meios de prova (REsp n. 435.871, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 19/9/2002, DJ 21/10/2002, p. 61;REsp n. 222.764, STJ, 5ªT,, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 13/2/2001, DJ 12/3/2001, p. 512; REsp n. 223.603/SP, STJ, 5ª T., Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 21/2/2000, p. 163).
Recentemente, o STF reviu seu posicionamento e, em sede de repercussão geral, reconheceu que o requisito do artigo 20, §3º, da Lei n. 8.742/1993 não pode ser considerado taxativo (RE n. 580963, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n. 225, 14/11/2013).
No mesmo julgamento, ao examinar, incidenter tantum, a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), o Plenário do STF manifestou-se pela “inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo”.
Referido normativo dispõe expressamente que o valor do benefício assistencial auferido por idoso “não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a LOAS”.
Contudo, diante do entendimento consagrado por ocasião do julgamento do RE n. 580963, abriu-se a possibilidade de exclusão, do cálculo da renda familiar, dos benefícios assistenciais recebidos por idosos e por deficientes e também dos benefícios previdenciários concedidos ao idoso, no valor de até um salário mínimo.
A decisão concluiu, ainda, que a mera interpretação gramatical do preceito, por si só, pode resultar no indeferimento da prestação assistencial em casos nos quais, embora o limite legal de renda per capita seja ultrapassado, evidencia-se um quadro de notória hipossuficiência econômica.
Essa insuficiência da regra decorre não apenas das modificações fáticas (políticas, econômicas e sociais), mas principalmente das alterações legislativas que ocorreram no País desde a edição da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993.
A legislação federal recente, por exemplo, reiterada pela adoção de vários programas assistenciais destinados a famílias carentes, considera pobres aqueles que possuem renda mensal per capita de até meio salário mínimo (nesse sentido, a Lei n. 9.533, de 10/12/1997, regulamentada pelos Decretos n. 2.609/1998 e 2.728/1999, as Portarias n. 458 e 879, de 3/12/2001, da Secretaria da Assistência Social, o Decreto n. 4.102/2002, a Lei n. 10.689/2003, criadora do Programa Nacional de Acesso à Alimentação).
Assim, não há como considerar o critério previsto no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993 como absoluto e único para aferição da situação de miserabilidade, até porque o próprio Estado Brasileiro elegeu outros parâmetros, como os defluentes da legislação acima citada.
Deve-se verificar, na questão in concreto, a ocorrência de situação de pobreza – entendida como a falta de recursos e de acesso ao mínimo existencial –, para se concluir se é devida ou não a prestação pecuniária da assistência social constitucionalmente prevista.
Assim, ao menos desde 14/11/2013 (RE n. 580963), o critério da miserabilidade contido no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 não impede o julgador de levar em conta outros dados, a fim de identificar a situação de vida do idoso ou do deficiente, principalmente quando estiverem presentes peculiaridades, a exemplo de necessidades especiais com medicamentos ou com educação.
Nesse diapasão, podem-se estabelecer alguns parâmetros norteadores da análise individual de cada caso, como, por exemplo: (i) todos os que recebem renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo são miseráveis; (ii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo e inferior a ½ salário mínimo são miseráveis; (iii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ½ salário mínimo deixam de ser miseráveis; (iv) todos os que perceberem renda mensal familiar superior a um salário mínimo (artigo 7º, IV, da CF/1988) não são miseráveis.
Dessa forma, em todos os casos, outras circunstâncias devem ser levadas em conta, mormente se o patrimônio do requerente também se subsome à noção de hipossuficiência, devendo ser apurado se vive em casa própria, com ou sem ar condicionado, se possui veículo, telefones celulares, auxílio permanente de parentes ou de terceiros etc.
Cumpre salientar que o benefício de prestação continuada foi previsto, na impossibilidade de atender a um público maior, para socorrer aos desamparados (artigo 6º, caput, da CF/1988), ou seja, àquelas pessoas que nem sequer teriam possibilidade de equacionar um orçamento doméstico, pelo fato de não terem renda ou de ser essa insignificante.
CONCEITO DE FAMÍLIA
Para apurar se a renda per capita do requerente atinge ou não o âmbito da hipossuficiência, faz-se necessário abordar o conceito de família.
Nesse sentido, o artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 estabelecia, para efeitos de concessão do benefício, os conceitos de família (conjunto de pessoas do artigo 16 da Lei n. 8.213/1991, desde que vivendo sob o mesmo teto - § 1º), de pessoa portadora de deficiência (aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho - § 2º) e de família incapacitada de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa (aquela com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo - § 3º).
A Lei n. 12.435, vigente desde 7/7/2011, alterou os §§ 1º e 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 e estabeleceu que a família, para fins de concessão do benefício assistencial, deve ser aquela composta pelo requerente, pelo cônjuge ou companheiro, pelos pais e, na ausência de um deles, pela madrasta ou pelo padrasto, pelos irmãos solteiros, pelos filhos e enteados solteiros e pelos menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Ao mesmo tempo, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio artigo 203, V, da CF/1988 estabelece que o benefício será devido quando o sustento não puder ser provido pela família. Essa conclusão tem arrimo no princípio da solidariedade social, conformado no artigo 3º, I, do Texto Magno.
Com isso, à guisa de regra mínima de coexistência entre as pessoas em sociedade, a técnica de proteção social prioritária é a família, em cumprimento ao disposto no artigo 229 da CF/1988, que assim estabelece: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
A propósito, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), ao analisar um pedido de uniformização formulado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), fixou a tese de que “o benefício assistencial de prestação continuada pode ser indeferido se ficar demonstrado que os devedores legais podem prestar alimentos civis sem prejuízo de sua manutenção”.
A decisão foi proferida durante sessão realizada em 23/2/2017, em Brasília. Quanto ao mérito, o relator afirmou em seu voto que a interpretação do artigo 20, §1º, da Lei n. 8.742/1993, conforme as normas veiculadas pelos artigos 203, V, 229 e 230, da CF/1988, deve ser a de que “a assistência social estatal não deve afastar a obrigação de prestar alimentos devidos pelos parentes da pessoa em condição de miserabilidade socioeconômica (arts. 1694 e 1697, do Código Civil), em obediência ao princípio da subsidiariedade”.
SUBSIDIARIEDADE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
À vista da preponderância do dever familiar de sustento, hospedado no artigo 229 da CF/1988, a Assistência Social, tal como regulada na Lei n. 8.742/1993, terá caráter subsidiário em relação às demais técnicas de proteção social (previdência social, previdência privada, caridade, família, poupança etc.), considerada a gratuidade de suas prestações.
Com efeito, levando-se em conta o alto custo do pretendido “Estado de bem-estar social”, forjado no Brasil pela Constituição Federal quando a grande maioria dos países europeus já havia reconhecido sua inviabilidade financeira, é lícito inferir que ela só deve ser prestada em casos de real necessidade, sob pena de comprometer – dada a crescente dificuldade de custeio – a proteção social da coletividade, não apenas das futuras gerações, mas também da atual.
De fato, o benefício previsto no artigo 203, V, da CF/1988 tem o valor de 1 (um) salário mínimo, ou seja, a mesma quantia paga a milhões de brasileiros que se aposentaram no Regime Geral de Previdência Social mediante o pagamento de contribuições, durante vários anos.
Destarte, a assistência social deve ser fornecida com critério, pois, de outro modo, serão gerados privilégios e desigualdades, em oposição à própria natureza dos direitos sociais, que é a de propiciar igualdade e isonomia de condições a todos, observados os fins sociais (não individuais) da norma, à luz do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Diga-se, de passagem, que a concessão indiscriminada do benefício assistencial, mediante interpretação extensiva ou ampliativa dos requisitos constitucionais, geraria não apenas injustiça aos contribuintes da previdência social, mas incentivo para que esses deixem de contribuir, ou mesmo não se filiem ou não contribuam para a Seguridade Social, o que constituiria situação anômala e gravíssima do ponto de vista atuarial, apta a comprometer o custeio de todo o sistema.
É pertinente rememorar, in casu, o ensinamento do professor de direito previdenciário Wagner Balera a respeito da dimensão do princípio da subsidiariedade:
“O Estado é, sobretudo, o guardião dos direitos e garantias dos indivíduos. Cumpre-lhe, assinala Leão XIII, agir em favor dos fracos e dos indigentes exigindo que sejam por todos respeitados os direitos dos pequenos. Mas, segundo o princípio da subsidiariedade - que é noção fundamental para a compreensão do conteúdo da doutrina social cristã – o Estado não deve sobrepor-se aos indivíduos e aos grupos sociais na condução do interesse coletivo. Há de se configurar uma permanente simbiose entre o Estado e a sociedade, de tal sorte que ao primeiro não cabe destruir, nem muito menos exaurir a dinâmica da vida social I (é o magistério de Pio XI, na Encíclica comemorativa dos quarenta anos da 'RerumNovarum', a 'Quadragésimo Anno', pontos 79-80).” (Centenárias Situações e Novidade da 'RerumNovarum', p. 545).
Por fim, quanto a esse tópico, é lícito concluir que quem está coberto pela previdência social está, em regra, fora da abrangência da assistência social. Nesse sentido, prelecionou Celso Bastos:
“A Assistência Social tem como propósito satisfazer as necessidades de pessoas que não podem gozar dos benefícios previdenciários, mas o faz de uma maneira comedida, para não incentivar seus assistidos à ociosidade. Concluímos, portanto, que os beneficiários da previdência social estão automaticamente excluídos da assistência social. O benefício da assistência social, frise-se, não pode ser cumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o de assistência médica.” (Celso Bastos e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, 8o Vol., Saraiva, 2000, p. 429).
PESSOAS IDOSAS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Na hipótese de postulante pessoa idosa, a idade mínima de 70 (setenta) anos foi reduzida para 67 (sessenta e sete) anos pela Lei n. 9.720/1998, a partir de 1º de janeiro de 1998, e, mais recentemente, para 65 (sessenta e cinco) anos, com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), atualmente denominado Estatuto da Pessoa Idosa (Lei n. 10.741/2022).
No que se refere ao conceito de pessoa com deficiência - previsto no § 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, com a redação dada pela Lei n. 13.146/2015, passou a ser considerada aquela com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, possam obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Assim, ratificou-se o entendimento consolidado nesta Corte de que o rol previsto no art. 4º do Decreto n. 3.298/1999 (regulamentador da Lei n. 7.853/1989, que dispõe sobre a Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência) não era exaustivo. Constatado, portanto, que os males sofridos pelo postulante impedem sua inserção social, restará preenchido um dos requisitos exigidos para a percepção do benefício.
Menciona-se também o conceito apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU), elaborado por meio da Resolução n. 3.447 (XXX): “1. O termo ‘pessoa deficiente’ refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais”.
Esse conceito dá maior ênfase à necessidade, inclusive da vida individual, ao passo que o conceito proposto por Luiz Alberto David Araujo prioriza a questão da integração social, como se verá.
Nair Lemos Gonçalves apresentou os principais requisitos para sua definição: “desvio acentuado dos mencionados padrões médios e sua relação com o desenvolvimento físico, mental, sensorial ou emocional, considerados esses aspectos do desenvolvimento separada, combinada ou globalmente” (Verbete Excepcionais. In: Enciclopédia Saraiva de Direito, n. XXXIV. São Paulo: Saraiva, 1999).
Luiz Alberto David Araujo, por sua vez, compilou muitos significados da palavra “deficiente”, extraídos dos dicionários de Língua Portuguesa. Observa ele que, geralmente, os dicionários trazem a ideia de que a pessoa deficiente sofre de falta, de carência ou de falha.
Esse autor critica essas noções porque a ideia de deficiência não se apresenta tão simples, à medida em que as noções de falta, de carência ou de falha não abrangem todas as situações de deficiência, como, por exemplo, o caso dos superdotados, ou o de um portador do vírus HIV que consiga levar a vida normalmente, sem manifestação da doença, ou ainda o de um trabalhador intelectual que tenha um dedo amputado.
Por serem as noções de falta, de carência ou de falha insuficientes à caracterização da deficiência, Luiz Alberto David Araujo propõe um norte mais seguro para a identificação da pessoa protegida, cujo fator determinante do enquadramento ou não no conceito de pessoa com deficiência seja o meio social:
“O indivíduo portador de deficiência, quer por falta, quer por excesso sensorial ou motor, deve apresentar dificuldades para seu relacionamento social. O que define a pessoa portadora de deficiência não é falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade para a sua integração social é o que definirá quem é ou não portador de deficiência.” (A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 18-22)
Assim, quanto mais complexo o meio social, maior rigor se exigirá da pessoa com deficiência para sua adaptação social. De outra parte, na vida em comunidades mais simples, como nos meios agrícolas, a pessoa com deficiência poderá integrar-se com mais facilidade.
Desse modo, o conceito de Luiz Alberto David Araujo é adequado e de acordo com a norma constitucional, motivo pelo qual é possível seu acolhimento para a caracterização desse grupo de pessoas protegidas nas várias situações reguladas pela CF/1988, nos artigos 7º, XXXI, 23, II, 24, XIV, 37, VIII, 203, V e 208, III.
Mas é preciso delimitar a proteção constitucional apenas àquelas pessoas que realmente dela necessitam, porquanto existem graus de deficiência que apresentam menores dificuldades de adaptação à pessoa. E essa verificação somente poderá ser feita diante de um caso concreto.
Luiz Alberto David Araujo salienta que os casos-limite podem, desde logo, ser excluídos, como o exemplo do bibliotecário que perde um dedo ou do operário que perde um artelho; em ambos os casos, as pessoas continuam integradas socialmente. Em outro exemplo, pequenas manifestações de retardo mental (deficiência mental leve) podem passar despercebidas em comunidades simples, pois essa pessoa poderá “não encontrar problemas de adaptação a sua realidade social (escola, trabalho, família)”, de maneira que não se pode afirmar que ela deverá receber proteção, “tal como aquele que sofre restrições sérias em seu meio social” (obra citada, p. 42-43). E continua:
“A questão, assim, não se resolve sob o ângulo da deficiência, mas, sim sob o prisma da integração social. Há pessoas portadoras de deficiência que não encontram qualquer problema de adaptação no meio social. Dentro de uma comunidade de doentes, isolados por qualquer motivo, a pessoa portadora de deficiência não encontra qualquer outro problema de integração, pois todos têm o mesmo tipo de dificuldade” (obra citada, p. 43).
Enfim, a constatação da existência de graus de deficiência é de fundamental importância para identificar aqueles que receberão a proteção social prevista no artigo 203, V, da CF/1988.
Feitas essas considerações, torna-se possível inferir que não será qualquer pessoa com deficiência que se subsumirá no molde jurídico protetor da Assistência Social.
Noutro passo, o conceito de pessoa com deficiência, para fins de concessão do benefício de amparo social, foi tipificado no artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, que em sua redação original assim dispunha: “§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.”
Como se vê, pressupunha-se que o deficiente era aquele que: (i) tinha necessidade de trabalhar, mas não podia, em razão da deficiência; (ii) estava também incapacitado para a vida independente. Assim, o benefício era devido a quem deveria trabalhar, mas não poderia e, além disso, não tinha capacidade para a vida independente sem a ajuda de terceiros.
É lícito concluir que, tal como os benefícios previdenciários, o benefício de amparo social, enquanto vigente a redação original do artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, era substitutivo do salário. Isto é, era reservado aos que tinham a possibilidade jurídica de trabalhar, mas não tinham a possibilidade física ou mental para tanto.
Mas a redação original do artigo 20, § 2º, da LOAS foi alterada pelo Congresso Nacional, exatamente porque sua dicção gerava um sem número de controvérsias interpretativas na jurisprudência, sobrevindo a Lei n. 12.435/2011, alterando o teor do dispositivo, que passou a vigorar com a seguinte redação:
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se:
I - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas;
II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”
Com a novel legislação, o benefício continuou sendo destinado àqueles deficientes que: (i) tinham necessidade de trabalhar, mas não podiam, por conta de limitações físicas ou mentais; (ii) estavam também incapacitados para a vida independente.
Todavia, o legislador, não satisfeito, mais uma vez alterou o conceito de pessoa com deficiência, introduzindo, pela Lei n. 12.470/2011, modificações no artigo 20, da Lei n. 8.742/1993:
“Art. 20 (...)
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
(...)
“§ 10 Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”
Nota-se que, com o advento dessa lei, dispensou-se a menção à incapacidade para o trabalho ou à incapacidade para a vida independente como requisito à concessão do benefício assistencial.
Finalmente, a Lei n. 13.146/2015, que “institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência”, com início de vigência em 02/01/2016, novamente alterou a redação do artigo 20, § 2º, da LOAS:
“§ 2º Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
Reafirma-se, assim, que o foco, doravante, para fins de identificação da pessoa com deficiência, passa a ser a existência de impedimentos de longo prazo (que produza efeitos pelo prazo mínimo de dois anos), apenas e tão somente, tornando-se despicienda a referência à necessidade de trabalho.
RESERVA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
O benefício assistencial de prestação continuada não pode ser postulado como substituto de aposentadoria por invalidez, atualmente denominada aposentadoria por incapacidade permanente (Emenda Constitucional n. 103/2019).
Muitos casos de incapacidade temporária ou mesmo permanente para o trabalho devem ser tutelados exclusivamente pelo seguro social (artigo 201, da CF/1988).
Afinal, a cobertura dos eventos (riscos sociais) incapacidade temporária ou permanente para o trabalho depende do pagamento de contribuições, na forma dos artigos 201, caput e inciso I, da CF/1988, abaixo transcrito:
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: I - cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; (...)”.
Como se vê, a pretendida ampliação do espectro da norma do artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993 encontra óbice na própria Constituição da República, segundo a qual caberá à Previdência Social a cobertura dos eventos de incapacidade para o trabalho.
CASO CONCRETO
A condição de pessoa com deficiência do autor está comprovada e não há controvérsia nos autos nesse ponto.
No tocante à condição socioeconômica, o estudo social, datado de 30/9/2023, trouxe as seguintes informações:
(i) em uma primeira tentativa frustrada de realização da visita pela assistente social, a genitora do autor se recusou a fazer a prova e xingou os peritos que tentaram explicar o motivo da visita;
(ii) redesignada a prova, a assistente informou que o núcleo familiar é composto pelo autor e sua genitora Cleusa da Cunha Sales (nascida em 13/1/1961);
(iii) a família reside em casa "cedida por conhecidos", composta por uma área coberta, garagem coberta, cozinha com copa, um quarto de costura, um quarto de dispensa, sala, um banheiro, um quarto utilizado como dormitório e uma área externa e coberta de lavanderia. A residência não tem forro, porém possui em boas condições de habitabilidade. A casa é guarnecida com móveis e utensílios em bom estado de conservação, destacando-se geladeira modelo “inverse”, com freezer na parte debaixo, dois freezers, panela de arroz, panela de pressão elétrica, fritadeira, micro-ondas, bebedouro elétrico com filtro e modo de água gelada, TV Smart de 40 polegadas, rack, guarda roupas, uma cama de solteiro, cama de casal, chuveiro elétrico, box, três aparelhos celulares, todos smartphones, e tapete.
(iv) a genitora declarou não possuir renda, sobrevivendo apenas com a ajuda de terceiros;
(v) as despesas mensais declaradas referem-se a custos com água (R$ 20,00), energia elétrica (R$ 275,52), internet (R$ 113,00), celular (R$ 60,00), alimentação (R$ 610,00), medicamentos (R$ 500,00) e IPTU (R$ 400,00);
(vi) foi apontada a existência de um automóvel na garagem, o qual estava coberto com capa na garagem. A senhora Cleusa não autorizou a retirada da lona para fotos e relatou ser do vizinho. Todavia, por ocasião da tentativa de realização da primeira vizinha, os vizinhos relataram não terem bom relacionamento com ela;
A assistente social apontou o desconforto da senhora Cleusa com a realização da visita, a qual "chorou durante a maior parte do tempo e tentava mostrar de todas as formas que vivia em situação de vulnerabilidade social, como se tivesse sido dado a ela um 'roteiro' de como proceder, quais informações passar, como se comportar, etc. Inclusive pediu uma foto comigo no fim da visita e depois através do meu WhatsApp (número utilizado para entrar em contato com a mesma) solicitou o envio de todas as fotos que foram tiradas e uma cópia do relatório".
A assistente social ainda observou a existência de inúmeras sacolas e caixas cheias de roupas, retalhos e tecidos e a genitora do autor acabou afirmado realizar serviços esporádicos de costura. No relatório social, ela também apontou algumas inconsistências entre as declarações da entrevistada com os dados observados, concluindo pela ausência de situação de vulnerabilidade social. Vejamos (destaquei):
"Com relação a todas as observações acima, a família apresenta gastos mensais bastante elevados para quem refere contar apenas com a ajuda de conhecidos.
A informação constante no Cadastro único atualizado em 24/04/2023 também não bate com as informações passadas pela genitora, uma vez que o cadastro único também é realizado de acordo com a declaração mais comprovante de renda e nesta ultima atualização a renda per capta foi declarada no valor de R$ 824,00 – totalizando então uma renda familiar total de R$ 1648,00.
Nas ultimas duas atualizações em 04/2021 apresentou uma renda per capta de R$ 1072,00 e em 11/2011 atualizou novamente declarando renda 0. Devido à renda declarada na atualização realizada em 24/04/2023, a família não recebe nenhum beneficio do Governo Federal.
Cleusa informou no dia da visita que não havia localizado sua carteira de trabalho, porém ressalto ainda que a carteira de trabalho passou por nova atualização e agora é acessada de modo digital, portanto pode ser que uma nova atualização trabalhista realmente não conste na antiga carteira apresentada nos autos do processo.
Diante dos fatos relatados acima, não verifiquei no momento da visita, situação que possa ser caracterizada como vulnerabilidade social."
Não obstante a descrição do estudo social, os demais elementos de prova infirmam a alegação de miserabilidade.
Com efeito, os autos revelam haver razoáveis condições de moradia e de sobrevivência, pois o autor reside em imóvel com aluguel irrisório, localizado em bairro abastecido pelos serviços de água encanada, esgoto de energia elétrica. Conta, ainda, com bens suficientes ao conforto da família e, consoante informado, ainda arca com os custos de financiamento e manutenção de automóvel.
Ademais, as fotos apresentadas em complementação ao estudo social demonstram que a casa da família, conquanto seja simples, é ampla, em bom estado de conservação e guarnecida com móveis e utensílios suficientes ao conforto da família, inclusive com eletrodomésticos novos (air fryer, panelas elétricas de arroz e de pressão), além de coifa, freezer horizontal.
Por fim, embora a genitora do autor não tenha declarado o valor da renda da família, os dados do Cadúnico informam a renda per capita da família de R$ 824,00, em em abril de 2023.
Nesse contexto, não resta configurada a miserabilidade.
Ressalte-se que o já mencionado artigo 203, V, da CF/1988 é claro ao estabelecer que, para fins de concessão desse benefício, a responsabilidade do Estado é subsidiária.
Vale dizer: o benefício somente deve ser concedido àqueles que comprovem não possuir mios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Não se destina à complementação de renda familiar.
Nesse sentido, reporto-me ao seguinte julgado (g. n.):
“CONSTITUCIONAL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA - ART. 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. I - O Supremo Tribunal Federal, no RE n. 567.985, reconheceu a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art.20, §3º, da Lei nº 8.742/93, e do art. 34, par. único, da Lei nº 10.741/2003. II - a autora contava com 68 (sessenta e oito) anos, na data do requerimento administrativo, tendo por isso a condição de idosa. III - Os elementos de prova existentes nos autos apontam em sentido contrário à alegada miserabilidade da autora. V - Na época do estudo social, as despesas giravam em torno de R$ 1.300,00, consistindo em alimentação, água, energia elétrica, farmácia e gás; ou seja, as despesas eram inferiores às receitas. VI - A autora não vive em situação de risco social ou vulnerabilidade social, não podendo o benefício assistencial ser utilizado para fins de complementação de renda. VII - O benefício assistencial não tem por fim a complementação da renda familiar ou proporcionar maior conforto ao beneficiário, mas sim, destina-se ao idoso ou deficiente em estado de penúria, que comprove os requisitos legais, sob pena de ser concedido indiscriminadamente em prejuízo daqueles que realmente necessitam, na forma da lei. VIII - Apelação improvida.” (TRF 3ª Região - AC n. 5562391-33.2019.4.03.9999 - 9ª Turma - Rel. Des. Fed. Marisa Santos - 05/11/2019, e-DJF3 Judicial 1, Data: 07/11/2019)
Assim, embora o pretendido benefício pudesse melhorar o padrão de vida do postulante, o sistema de assistência social foi concebido para auxiliar pessoas em situação de penúria (incapazes de sobrevivência sem a ação do Estado), e não para incremento de padrão de vida.
Desse modo, ausente o requisito da miserabilidade, não é possível o restabelecimento do benefício pretendido, sendo de rigor a manutenção da sentença nesse ponto.
DA DEVOLUÇÃO DE VALORES
Discute-se, ainda, a cobrança dos valores auferidos pelo autor a título de benefício assistencial à pessoa com deficiência (NB 87/101.649.639-4) no período de 12/11/2013 a 30/4/2020.
Com efeito, a Administração Pública goza de prerrogativas, dentre as quais o controle administrativo, sendo-lhe dado rever os atos de seus próprios órgãos, anulando aqueles eivados de ilegalidade (art. 37 da CF/1988), bem como revogando os atos cuja conveniência e oportunidade não mais subsistam.
Trata-se do poder de autotutela administrativo, enunciado nas Súmulas n. 346 e 473 do STF, tendo como fundamento os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade administrativa e da supremacia do interesse público, desde que obedecidos os regramentos constitucionais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, da CF), além da Lei n. 9.784/1999, aplicável à espécie:
"A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos."
"A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos a apreciação judicial."
Por sua vez, à luz do Código Civil (art. 876), percebe pagamento indevido todo "aquele que recebeu o que não era devido" e, por consequência, "fica obrigado a restituir".
Ademais, deve ser levado em consideração o princípio geral do direito, positivado como regra no atual Código Civil, consistente na proibição do enriquecimento ilícito ou sem causa.
É o que textualmente estabelece o artigo 884 do Código Civil:
"Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido."
Na seara do direito previdenciário, a possibilidade de cobrança imediata dos valores pagos indevidamente, mediante descontos no valor do benefício, está prevista no artigo 115, II, da Lei n. 8.213/1991.
Assim, ao estabelecer hipóteses de desconto sobre o valor do benefício, o próprio legislador reconheceu que as prestações previdenciárias, embora tenham a natureza de verbas alimentares, são repetíveis em quaisquer circunstâncias.
Nesse sentido: TRF 3ª Região, NONA TURMA, Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1028622 - 0021597-06.2005.4.03.9999, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MARISA SANTOS, julgado em 24/05/2010, e-DJF3 Judicial 1 DATA:08/07/2010 PÁGINA: 1303; TRF 3ª Região, SÉTIMA TURMA, Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1627788 - 0016651-78.2011.4.03.9999, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS, julgado em 02/10/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:16/10/2017.
A propósito, especificamente sobre devolução de valores recebidos em razão de erro da Administração, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de recurso repetitivo (REsp 1.381.734/RN – Tema 979), julgado em 10/3/2021, DJe 23/4/2021, assim deliberou sobre a matéria:
“Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis os valores, sendo legítimo o seu desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) do valor do benefício mensal, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.”
Cumpre salientar que, conforme modulação de efeitos definida pelo Colegiado, o entendimento firmado sob o Tema n. 979 somente deve atingir os processos distribuídos após a publicação do acórdão.
Desse julgamento é possível extrair as seguintes conclusões: (i) o pagamento indevido decorrente de interpretação errônea ou má aplicação da lei pela Administração Previdenciária não é suscetível de repetição; (ii) o pagamento indevido decorrente de erro material ou operacional da Administração Previdenciária é repetível, salvo se o segurado demonstrar que não lhe era possível constatar o erro (boa-fé objetiva); (iii) a hipótese de repetição em razão de erro da Administração Previdenciária atinge somente os processos distribuídos desde 23/4/2021 (modulação dos efeitos); (iv) admitida a repetição, é permitido o desconto do percentual de até 30% do valor mensal do benefício do segurado.
Sobre a boa-fé objetiva, nos dizeres da Ministra Nancy Andrighi, “esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (STJ, REsp n. 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007).
Por sua vez, a boa-fé subjetiva está relacionada a intenção do agente, contrapondo-se à má-fé (pressuposto do ilícito civil), a qual não se presume e deve ser demonstrada.
Efetivamente, somente cabe cogitar de aplicação do Tema n. 979 se afastada a discussão sobre a má-fé do agente.
Neste caso, a ação foi ajuizada em 25/4/2023, depois, portanto, do julgamento do Tema n. 979, estando fora do alcance da modulação dos efeitos do julgado.
Consta dos autos que à autora foi concedido o benefício de amparo assistencial à pessoa com deficiência (NB 87/101.649.639-4), no âmbito administrativo, desde 17/4/1996 (DIB).
Realizada a revisão periódica administrativa, o INSS identificou indício de irregularidade na manutenção do benefício, uma vez que a renda per capita do grupo familiar passou a ser igual ou superior a ¼ do salário mínimo vigente (art. 20, §3º, da Lei n. 8.742/1993).
Extrai-se do Ofício n. 202000183410, de 15 de abril de 2020, o seguinte trecho:
“1. O Instituto Nacional do Seguro Social, por intermédio de Ofício de Defesa, comunicou a V.Sa. sobre a apuração dos indícios de irregularidade no Benefício de Prestação Continuada.
2. Facultado o prazo de 30 (trinta) dias para apresentação de defesa escrita, da análise da defesa apresentada observa-se que não houve prova suficiente, ou novos elementos que pudessem modificar a decisão do INSS e caracterizar o direito à manutenção do benefício assistencial.
3. Exposição das razões pelo servidor: Conforme análise das consultas extraídos dos sistemas do INSS, bem como dos documentos apresentados na ocasião da defesa, é possível constatar o recebimento indevido do benefício assistencial a partir de 01/07/1996, pois renda per capita familiar superou 1/4 do salário mínimo, tendo em vista as quantias recebidas pelo membro do grupo familiar CLEUSA DA CUNHA SALLES em razão do vínculo de emprego mantido com FLAVIA SASSON, iniciado dia 01/07/1996 e sem data fim, com remuneração mais recente de R$ 1.172,50. Dessa forma, houve desrespeito às regras do art. 20 da lei nº 8.742/93.”
Dessa forma, entende o INSS que o autor não mais preenchia os requisitos necessários à concessão e manutenção do benefício, faltando-lhe a miserabilidade.
Do conjunto probatório carreado aos autos não há elementos capazes de ilidir essa constatação e demonstrar que, de fato, remanescia situação de miserabilidade depois de alterada a renda per capita do grupo familiar. Seria ônus da parte postulante, do qual, neste caso, ela não se desincumbiu.
Enfim, em conformidade com as provas colacionadas aos autos, está claro erro administrativo pelo não cumprimento da determinação legal, prevista no artigo 21 da Lei n. 8.742/1993 (LOAS), de rever o benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.
Em razão desse erro remanesce a obrigação da parte beneficiária devolver os valores, nos termos delineados no Tema n. 979 do STJ.
Ademais, não há demonstração de que "não lhe era possível constatar o pagamento indevido" do benefício assistencial, conforme ressalva disposta na tese jurídica fixada.
Em decorrência, impõe-se a manutenção da sentença.
Diante do exposto, nego provimento à apelação.
É o voto.
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. SITUAÇÃO DE MISERABILIDADE NÃO COMPROVADA. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. DECLARAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO. ERRO ADMINISTRATIVO. DEVOLUÇÃO DE VALORES. TEMA 979 DO STJ.
- São condições para a concessão do benefício da assistência social: ser o postulante pessoa com deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
- Ausente qualquer dos requisitos previstos no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, é inviável o restabelecimento do benefício assistencial.
- A Administração Pública goza de prerrogativas, dentre as quais o controle administrativo, sendo dado rever os atos de seus próprios órgãos, anulando aqueles eivados de ilegalidade, bem como revogando os atos cuja conveniência e oportunidade não mais subsistam.
- A ação foi ajuizada após o julgamento do REsp 1.381.734/RN, não sendo atingida pela modulação dos efeitos do julgado.
- Evidenciado erro administrativo na manutenção de benefício, remanesce a obrigação da parte beneficiária devolver os valores recebidos indevidamente, nos termos delineados no Tema n. 979 do STJ.
- Apelação desprovida.
