
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001110-60.2024.4.03.9999
RELATOR: Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: EMILIO PEREIRA DE SOUZA
Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A
OUTROS PARTICIPANTES:
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001110-60.2024.4.03.9999
RELATOR: Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: EMILIO PEREIRA DE SOUZA
Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
Trata-se de apelação interposta pelo INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL-INSS em ação ajuizada com o fito de reconhecer e inexigibilidade de débito decorrente de benefício de prestação continuada pago de forma indevida.
A parte autora requereu o benefício em 01/2004, ocasião na qual foi reconhecida a sua hipossuficiência e determinado o pagamento.
Em 02/2020 teve o seu benefício suspenso, em razão de apuração de irregularidade, uma vez que a esposa do recorrido recebia aposentadoria por tempo de contribuição, com renda mensal de R$ 1.141,00 (id 290072046, página 13).
Ofertada a defesa, concluiu a autarquia pela cassação da benesse.
O recorrido, então, ingressou com a presente ação, na qual se requer o reconhecimento da inexigibilidade do débito, ao argumento, em síntese, que não houve má-fé na manutenção do benefício irregular.
A sentença foi proferida no seguinte sentido, in verbis:
Ante o exposto, hei por bem JULGAR PROCEDENTES os pedidos formulados na prefacial, para o fim de:
a) declarar a inexistência do débito descrito na prefacial, referente ao período em que houve pagamento administrativo do benefício assistencial ao idoso NB 88/127.918-150.5; e
b) condenar a parte ré, em virtude da sucumbência, ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 10% (dez por cento) da condenação, haja vista a reduzida complexidade e duração da demanda, nos termos do art. 85, § 2º, do CPC
Em sede de apelação, impugna o INSS, preliminarmente, a competência da Justiça Estadual para processar a demanda, uma vez que se trata de matéria de competência absoluta da Justiça Federal; se opõe, também, ao valor da causa, argumentando que a parte autora se excedera no cálculo e que o valor a ser cobrado não foi aferido administrativamente pelo setor responsável; aduz que não há interesse de agir, já que a autarquia não adotou nenhum ato de cobrança dos valores pagos; no mérito, argumenta que a cobrança dos débitos não dependem da comprovação da má-fé, sendo suficiente a comprovação de que o recorrido não comunicou a perda da condição para a manutenção do benefício cassado.
Subiram a esta instância.
É o relatório
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001110-60.2024.4.03.9999
RELATOR: Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: EMILIO PEREIRA DE SOUZA
Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
Tempestivo o recurso e presentes os demais requisitos de admissibilidade, passo ao exame da matéria objeto de devolução.
DA ANÁLISE DAS PRELIMINARES.
Com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 103, de 2019, o §3º, do art. 109, da Constituição Federal passou a dispor:
“§ 3º Lei poderá autorizar que as causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal.”
Nesse contexto, o artigo 15, III e § 2º, da Lei n.º 5.019/66, com redação dada pela Lei n.º 13.876, de 20.09.2019, com vigência a partir de 01.01.2020, passou a estabelecer:
“Art. 15. Quando a Comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça Estadual: (...)
III - as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária, quando a Comarca de domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 km (setenta quilômetros) de Município sede de Vara Federal; (...)
§ 2º Caberá ao respectivo Tribunal Regional Federal indicar as Comarcas que se enquadram no critério de distância previsto no inciso III do caput deste artigo."
Como se vê, a Lei 5.010/66, em seu art. 15, §2º, com a redação dada pela Lei 13.876/19, estabeleceu que cabe a cada Tribunal Regional Federal indicar as Comarcas que se enquadram no critério de distância de 70km, previsto no inciso II do mesmo artigo.
Inicialmente, por meio da resolução 603, de 12.11.19, o CJF determinou a apuração da distância na forma da tabela do IBGE. Ao depois, o CJF editou a resolução 705, de 27.4.21, alterando o critério de apuração de distância para o deslocamento real e estabeleceu que as ações ajuizadas até 30 de junho de 2021, cuja competência tivesse sido alterada em função da Res. 603/19, continuarão a ser processadas no juízo federal em que distribuídas, ante a perpetuação da jurisdição.
Neste Eg. Tribunal Regional Federal, inicialmente a questão foi tratada na Resolução nº 322/2019, cujo anexo I listava as comarcas e mantinha a competência federal delegada para a Justiça Estadual na Comarca, em razão da distância superior a 70 km da sede da subseção da Justiça Federal mais próxima.
A Resolução nº 322/2019 ainda estabelecia que, quanto às ações, em fase de conhecimento ou de execução, ajuizadas anteriormente a 1º de janeiro de 2020, seria mantido o processamento no juízo estadual, com esteio no quanto disposto no art. 109, § 3.º, da CF, inc. III, do art. 15, da Lei n.º 5010/66, em sua redação original e do art. 43 do CPC.
Para adequação ao quanto disposto na Resolução nº 705/21, a Presidência deste E. Tribunal editou a Resolução n.º 429, de 11.06.2021, indicando as comarcas que permaneceriam com competência delegada, alterando o anexo I, da Resolução n.º 322/2019.
No presente caso, a ação foi movida no ano de 2022, após a vigência da Lei 13.876/2019, em 01.01.2020, pelo que aplicável ao caso o quanto disposto na lei em comento, com a regulamentação pela Resolução nº 429/21.
Diversa solução há nos casos em que movida a ação antes da vigência da Lei 13.876/19, em que, por conta da perpetuação de jurisdição, a justiça estadual em competência delegada continua a processar as ações, à luz do quanto decidido pela 1ª Seção do C. STJ no IAC n. 170.051 (tema IAC n. 6).
A Comarca de Aparecida do Taboado/MS, consta da legislação como competente delegada para as ações que seriam ajuizadas na subseção de Três Lagoas/MS.
A legislação em comento, ao manter a faculdade de o segurado de ajuizar ação previdenciária no juízo estadual da comarca de seu domicílio, sem a necessidade de deslocamento por mais de 70 km, tem por escopo a proteção do hipossuficiente, sendo certo que, na hipótese vertente, na forma da Resolução nº 429/2021, evidenciada está distância superior a 70 km entre os centros urbanos dos dois municípios aqui tratados.
Quanto à impugnação ao valor da causa, também não assiste razão à apelante, uma vez que quantum apurado pela parte autora se refere a uma projeção, considerando as parcelas mensais, do que seria cobrado pela autarquia, refletindo, desta feita, o proveito a ser obtido.
A alegação da ausência de interesse de agir também não prospera, vez que, com a cassação do benefício ante o reconhecimento de irregularidade, a consequência imediata é a cobrança dos valores recebidos indevidamente. Ademais, a autarquia contestou o pedido da parte autora no presente processo, sustentando que é devida a restituição dos valores, argumentando, inclusive, pela desnecessidade de comprovação da má-fé para tanto.
Forçosa, portanto, a rejeição das preliminares.
PODER DEVER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO
É assegurada à Administração Pública a possibilidade de revisão dos atos por ela praticados, com base no seu poder de autotutela, conforme se observa, respectivamente, das Súmulas n.º 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal:
"A administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos".
"A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".
Também é pacífico o entendimento de que a mera suspeita de irregularidade, sem o regular procedimento administrativo, não implica suspensão ou cancelamento unilateral do benefício, por ser um ato perfeito e acabado. Aliás, é o que preceitua o artigo 5º, LV, da Constituição Federal, ao consagrar como direito e garantia fundamental, o princípio do contraditório e da ampla defesa, in verbis:
"Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Ainda, o art. 115, II, da lei 8213/91 impõe à autarquia a cobrança dos valores pagos indevidamente, identificados em regular processo administrativo, sem comprovação na CTPS e no CNIS.
DO ATO ILÍCITO
Todo aquele que cometer ato ilícito, fica obrigado a reparar o dano proveniente de sua conduta ou omissão.
Confira-se o disposto no art. 186, do Código Civil:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Ainda sobre o tema objeto da ação, dispõem os artigos 876, 884 e 927 do Código Civil de 2002:
“Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.”
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187). causar dano a outrem. fica obrigado a repará-lo.”
No que concerne à Previdência Social, é prevista no artigo 115 da Lei n. 8.213/91 a autorização do INSS para descontar de benefícios os valores outrora pagos indevidamente:
"Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios: [...] II – pagamento de benefício além do devido; [...] § 1º Na hipótese do inciso II, o desconto será feito em parcelas, conforme dispuser o regulamento, salvo má-fé”.
Também, no Decreto n. 3.048/99:
“Art. 154. O Instituto Nacional do Seguro Social pode descontar da renda mensal do benefício: [...] II – pagamentos de benefícios além do devido, observado o disposto nos §§ 2º ao 5º; [...] § 2º A restituição de importância recebida indevidamente por beneficiário da previdência so-cial, nos casos comprovados de dolo, fraude ou má-fé, deverá ser atualizada nos moldes do art. 175, e feita de uma só vez ou mediante acordo de parcelamento na forma do art. 244, independentemente de outras penalidades legais. (Redação dada pelo Decreto n. 5.699/06).”
DEVOLUÇÃO OU NÃO DE VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ
O e. Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), cuja questão levada a julgamento foi a “Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração da Previdência Social”, fixou a seguinte tese:
"Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo (material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido."
Extrai-se da tese fixada, portanto, que, para a eventual determinação de devolução de valores recebidos indevidamente, decorrente de erro administrativo diverso de interpretação errônea ou equivocada da lei, faz-se necessária a análise da presença, ou não, de boa-fé objetiva em sua percepção.
A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma. Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007).
Por seu turno, leciona Carlos Roberto Gonçalves que “Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar” (Direito Civil Brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais, Saraiva, 2013, 10ª ed., p. 54/61).
CASO DOS AUTOS
Consoante narrado acima, a parte autora teve o seu benefício deferido pelo INSS, que entendeu, naquele momento, que restou demonstrada a condição de miserabilidade.
A cassação do benefício, vale reverberar, decorreu do fato de a esposa do autor estar em gozo de benefício previdenciário, informação da qual a autarquia tinha condições de ter conhecimento durante todo o período em que o benefício cassado esteve vigente.
Dessa forma, não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pelo autor que tenha concorrido para o suposto equívoco administrativo na manutenção do benefício, o que permite inferir a boa-fé objetiva no recebimento dos valores.
Assim sendo, ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé do autor e, em vista do caráter alimentar do amparo social, entendo inexigível a devolução dos valores já pagos.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
Em razão da sucumbência recursal majoro em 100 % os honorários fixados em sentença, observando-se o limite máximo de 20% sobre o valor da causa, a teor dos §§ 2º e 11 do art. 85 do CPC/2015.
Ante o exposto, rejeito as preliminares e nego provimento à apelação, nos termos da fundamentação, observado o exposto acerca dos honorários.
É o voto.
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. COMPETÊNCIA DELEGADA. CONFIGURADO O INTERESSE DE AGIR. PRELIMINARES REJEITADAS. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E 12.435/2011. DEVOLUÇÃO DE VALORES. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
- No presente caso, a ação foi movida no ano de 2022, após a vigência da Lei 13.876/2019, em 01.01.2020, pelo que aplicável ao caso o quanto disposto na lei em comento, com a regulamentação pela Resolução nº 429/21.
- A alegação da ausência de interesse de agir também não prospera, vez que, com a cassação do benefício ante o reconhecimento de irregularidade, a consequência imediata é a cobrança dos valores recebidos indevidamente. Ademais, a autarquia contestou o pedido da parte autora no presente processo, sustentando que é devida a restituição dos valores, argumentando, inclusive, pela desnecessidade de comprovação da má-fé para tanto.
- Rejeitadas as preliminares.
- O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), fixou a seguinte tese: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo (material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido."
- A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma. Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007).
- Não há qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado pela parte autora pelo suposto equívoco administrativo na manutenção do benefício, o que afasta a existência de má-fé.
- Ausente a comprovação de má-fé, presume-se a boa-fé do autor e, em vista do caráter alimentar do amparo social, inexigível a devolução dos valores já pagos.
- Majorados os honorários advocatícios.
- Apelação do INSS não provida.
ACÓRDÃO
DESEMBARGADOR FEDERAL
