Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP
5671570-96.2019.4.03.9999
Relator(a)
Desembargador Federal DALDICE MARIA SANTANA DE ALMEIDA
Órgão Julgador
9ª Turma
Data do Julgamento
20/10/2019
Data da Publicação/Fonte
e - DJF3 Judicial 1 DATA: 22/10/2019
Ementa
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL.
PESSOA COM DEFICIÊNCIA. MISERABILIDADE NÃO CONFIGURADA. IMPROCEDÊNCIA DO
PEDIDO. SUCUMBÊNCIA RECURSAL. APELAÇÃO PROVIDA.
- Discute-se o preenchimento dos requisitos necessários à concessão do benefício de prestação
continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/93, regulamentado, atualmente, pelos Decretos n.
6.214/2007 e 7.617/2011.
- A LOAS deu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal, ao estabelecer, em seu
artigo 20, as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o
postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir
meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
- O Supremo Tribunal Federal reviu seu posicionamento ao reconhecer que o requisito do artigo
20, §3º, da Lei n. 8.742/93 não pode ser considerado taxativo, acórdão produzido com
repercussão geral (RE n. 580963).
- O BPC não pode ser concedido com base em critérios puramente matemáticos de renda,
devendo ser investigada a real condição social e econômica do núcleo familiar. Sob pena de
abusos e de malversação da função constitucional da assistência social, que é conceder
dignidade a "desamparados" (artigo 6º da CF), não para incrementar renda.
- A respeito do conceito de família, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
destes em relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio
artigo 203, V, da Constituição Federal estabelece que o benefício é devido quando o sustento não
puder ser provido pela família. Aplicação do princípio da solidariedade social, conformado no
artigo 3º, I, do Texto Magno.
- Para fins de identificação da pessoa com deficiência, exige-sea presença de impedimentos de
longo prazo, apenas e tão somente (art. 20, § 2º, da LOAS, com a redação dada pela Lei n.
13.146/2015).
- Deficiência comprovada.
- Mesmo consideradas as dificuldades econômicas e sociais do núcleo familiar, constatado o
acesso aos mínimos sociais, patenteada está a ausência de miserabilidade.
- Benefício indevido.
- Custas processuais e honorários de advogado a cargo da parte autora, arbitrados em 12%
(doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados em razão da fase recursal,
conforme critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 4º, III, doCPC, suspensa, porém, a exigibilidade,
na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por tratar-se de beneficiária da justiça
gratuita.
- Apelação provida.
Acórdao
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5671570-96.2019.4.03.9999
RELATOR:Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: ANDRESA CRISTINA SILVA
Advogados do(a) APELADO: ALESSANDRO BRAS RODRIGUES - SP143006-N, LORRANA
KARLA DE OLIVEIRA MOLINA - SP362285-N
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5671570-96.2019.4.03.9999
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: ANDRESA CRISTINA SILVA
Advogados do(a) APELADO: ALESSANDRO BRAS RODRIGUES - SP143006-N, LORRANA
KARLA DE OLIVEIRA MOLINA - SP362285-N
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
A Exma. Sra. Desembargadora Federal DALDICE SANTANA: Cuida-se de apelação interposta
em face de sentença que julgou procedente o pedido e condenou o INSS a pagar à parte autora o
benefício assistencial, desde a DER, discriminando consectários.
Nas razões de apelação, requer o INSS a reforma do julgado para fins de improcedência do
pedido, sob o fundamento de que a parte autora não podia ser considerada hipossuficiente.
Contrarrazões apresentadas.
Subiram os autos a esta egrégia Corte.
Manifestou-se a Procuradoria Regional da República pelo provimento do recurso.
É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5671570-96.2019.4.03.9999
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: ANDRESA CRISTINA SILVA
Advogados do(a) APELADO: ALESSANDRO BRAS RODRIGUES - SP143006-N, LORRANA
KARLA DE OLIVEIRA MOLINA - SP362285-N
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
A Exma. Sra. Desembargadora Federal DALDICE SANTANA:Conheço do recurso em razão da
satisfação de seus requisitos.
Discute-se o preenchimento dos requisitos necessários à concessão do benefício assistencial de
prestação continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/93, regulamentado, atualmente, pelos
Decretos n. 6.214/2007 e 7.617/2011.
Essa lei deu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal, ao estabelecer, em seu
artigo 20, as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o
postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar a
miserabilidade ou a hipossuficiência, ou seja, não possuir meios de prover a própria manutenção
nem de tê-la provida por sua família.
1.DA HIPOSSUFICIÊNCIA OU MISERABILIDADE
A respeito do requisito objetivo, o tema foi levado à apreciação do Pretório Excelso por meio de
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, movida pelo Procurador Geral da República, quando,
em meio a apreciações sobre outros temas, decidiu que o benefício do art. 203, inciso V, da CF
só pode ser exigido a partir da edição da Lei n.° 8.742/93.
Trata-se da ADIN 1.232-2, de 27/08/98, publicada no DJU de 1/6/2001, Pleno, Relator Ministro
Maurício Correa, RTJ 154/818, ocasião em que o STF reputou constitucional a restrição
conformada no § 3o do art. 20 da Lei n.° 8.742/93, conforme a ementa a seguir transcrita:
Posteriormente, em controle difuso de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal manteve
o entendimento (vide RE 213.736-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, informativo STF n.° 179; RE
256.594-6, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 28/4/2000, Informativo STF n.° 186; RE n.° 280.663-3, São
Paulo, j. 06/09/2001, relator Maurício Corrêa).
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, em vários precedentes, considerou que a
presunção objetiva absoluta de miserabilidade, da qual fala a Lei, não afasta a possibilidade de
comprovação da condição de miserabilidade por outros meios de prova (REsp n. 435.871, 5ª
Turma Rel. Min. Felix Fischer, j. 19/9/2002, DJ 21/10/2002, p. 61, REsp n. 222.764, STJ, 5ªT.,
Rel. Min. Gilson Dipp, j. 13/2/2001, DJ 12/3/2001, p. 512; REsp n. 223.603/SP, STJ, 5ª T., Rel.
Min. Edson Vidigal, DJU 21/2/2000, p. 163).
Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal reviu seu posicionamento ao reconhecer que o
requisito do artigo 20, §3º, da Lei n. 8.742/93 não pode ser considerado taxativo, acórdão
produzido com repercussão geral (STF, RE n. 580963, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes,
DJe n. 225, 14/11/2013).
Contudo, a fim de se evitar o descompasso entre a renda per capita ao final obtida e aquela
inicialmente considerada, deverá o titular de benefício de salário mínimo deficiente ou idoso
(artigo 34, § único, do EI e RE 580963) deverá ser excluído do núcleo familiar, consoante
precedentes da TNU.
A decisão concluiu que a mera interpretação gramatical do preceito, por si só, pode resultar no
indeferimento da prestação assistencial em casos que, embora o limite legal de renda per capita
seja ultrapassado, evidenciam um quadro de notória hipossuficiência econômica.
Essa insuficiência da regra decorre não só das modificações fáticas (políticas, econômicas e
sociais), mas principalmente das alterações legislativas que ocorreram no País desde a edição da
Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993.
Assim, não há como considerar o critério previsto no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93 como
absoluto e único para a aferição da situação de miserabilidade, até porque o próprio Estado
Brasileiro elegeu outros parâmetros, como os defluentes da legislação acima citada.
Deve-se verificar, na questão in concreto, a ocorrência de situação de pobreza - entendida como
a de falta de recursos e de acesso ao mínimo existencial -, a fim de se concluir por devida a
prestação pecuniária da assistência social constitucionalmente prevista.
Sendo assim, ao menos desde 14/11/2013 (RE 580963), o critério da miserabilidade do § 3º do
artigo 20 da Lei n. 8.742/93 não impede o julgador de levar em conta outros dados, a fim de
identificar a situação de vida do idoso ou do deficiente, principalmente quando estiverem
presentes peculiaridades, a exemplo de necessidades especiais com medicamentos ou com
educação.
Nesse diapasão, apresento alguns parâmetros razoáveis, norteadores da análise individual de
cada caso:
a) todos os que recebem renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo são miseráveis;
b) nem todos que percebem renda familiar per capita superior a ¼ e inferior a ½ salário mínimo
são miseráveis;
c) nem todos que percebem renda familiar per capita superior a ½ salário mínimo deixam de ser
miseráveis;
d) todos que perceberem renda mensal familiar superior a um salário mínimo (artigo 7º, IV, da
Constituição Federal) não são miseráveis.
No mais, outras circunstâncias diversas da renda devem ser levadas em conta, mormente se o
patrimônio do requerente também se subsume à noção de hipossuficiência. Vale dizer, é de ser
apurado se o interessado possui poupança, se vive em casa própria, com ou sem ar
condicionado, se possui veículo, telefones celulares, plano de saúde, auxílio permanente de
parentes ou terceiros etc.
Cumpre salientar que o benefício de prestação continuada foi previsto, na impossibilidade de
atender a um público maior, para socorrer os desamparados (artigo 6º, caput, da CF), ou seja,
àquelas pessoas que sequer teriam possibilidade de equacionar um orçamento doméstico, pelo
fato de não terem renda ou de ser essa insignificante.
2.CONCEITO DE FAMÍLIA
Para se apurar se a renda per capita do requerente atinge, ou não, o âmbito da hipossuficiência,
faz-se mister abordar o conceito de família.
O artigo 20 da Lei n. 8.742/93 estabelecia, ainda, para efeitos da concessão do benefício, os
conceitos de família (conjunto de pessoas do art. 16 da Lei n. 8.213/91, desde que vivendo sob o
mesmo teto - § 1º), de pessoa portadora de deficiência (aquela incapacitada para a vida
independente e para o trabalho - § 2º) e de família incapacitada de prover a manutenção da
pessoa portadora de deficiência ou idosa (aquela com renda mensal per capita inferior a um
quarto do salário mínimo - § 3º).
A Lei n. 12.435, vigente desde 7/7/2011, alterou os §§ 1º e 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/93,
estabelecendo que a família, para fins de concessão do benefício assistencial, deve ser aquela
composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a
madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores
tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Ao mesmo tempo, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e destes em
relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio artigo 203, V,
da Constituição Federal estabelece que o benefício é devido quando o sustento não puder ser
provido pela família. Essa conclusão tem arrimo no próprio princípio da solidariedade social,
conformado no artigo 3º, I, do Texto Magno.
O que quero dizer é que, à guisa de regra mínima de coexistência entre as pessoas em
sociedade, a técnica de proteção social prioritária é a família, em cumprimento ao disposto no
artigo 229 da Constituição Federal, in verbis:
" Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o
dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade."
A propósito, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), ao
analisar um pedido de uniformização do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), fixou a
tese que “o benefício assistencial de prestação continuada pode ser indeferido se ficar
demonstrado que os devedores legais podem prestar alimentos civis sem prejuízo de sua
manutenção”. A decisão aconteceu durante sessão realizada em 23/2/17, em Brasília. Quanto ao
mérito, o relator afirmou em seu voto que a interpretação do art. 20, §1º, da Lei n. 8.742/93,
conforme as normas veiculadas pelos arts. 203, V, 229 e 230, da Constituição da República de
1988, deve ser no sentido de que “a assistência social estatal não deve afastar a obrigação de
prestar alimentos devidos pelos parentes da pessoa em condição de miserabilidade
socioeconômica (arts. 1694 e 1697, do Código Civil), em obediência ao princípio da
subsidiariedade”.
3.SUBSIDIARIEDADE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
Por conseguinte, à vista da preponderância do dever familiar de sustento, hospedado no artigo
229 da Constituição da República, a Assistência Social, tal como regulada na Lei nº 8.742/93, terá
caráter subsidiário em relação às demais técnicas de proteção social (previdência social,
previdência privada, caridade, família, poupança etc), dada a gratuidade de suas prestações.
Com efeito, levando-se em conta o alto custo do pretendido “Estado de bem-estar social”, forjado
no Brasil pela Constituição Federal de 1988 quando a grande maioria dos países europeus já
haviam reconhecido sua inviabilidade financeira, forçoso é reconhecer que a assistência social, a
par da dimensão social do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, do CF), só
deve ser prestada em casos de real necessidade, sob pena de comprometer – dada a crescente
dificuldade de custeio – a proteção social da coletividade, não apenas das futuras gerações, mas
também da atual.
De fato, o benefício previsto no artigo 203, V, da Constituição Federal tem o valor de 1 (um)
salário mínimo, ou seja, a mesma quantia paga a milhões de brasileiros que se aposentaram no
Regime Geral de Previdência Social mediante o pagamento de contribuições, durante vários
anos.
De modo que a assistência social deve ser fornecida com critério, pois do contrário se gerarão
privilégios e desigualdades, em oposição à própria natureza dos direitos sociais que é a de
propiciar igualdade, isonomia de condições a todos, observados os fins sociais (não individuais)
da norma, à luz do artigo 5º da LINDB.
Diga-se de passagem que a concessão indiscriminada do benefício assistencial, mediante
interpretação extensiva ou ampliativa dos requisitos constitucionais, geraria não apenas injustiça
aos contribuintes da previdência social, mas incentivo para que estes parem de contribuir, ou
mesmo não se filiem ou não contribuam ao seguro social, o que constituiria situação anômala e
gravíssima do ponto de vista atuarial, apta a comprometer o custeio de todo o sitema.
Pertinente, in casu, o ensinamento do professor de direito previdenciário Wagner Balera, quando
pondera a respeito da dimensão do princípio da subsidiariedade:
"O Estado é, sobretudo, o guardião dos direitos e garantias dos indivíduos. Cumpre-lhe, assinala
Leão XIII, agir em favor dos fracos e dos indigentes exigindo que sejam, por todos respeitados os
direitos dos pequenos. Mas, segundo o princípio da subsidiariedade - que é noção fundamental
para a compreensão do conteúdo da doutrina social cristã - o Estado não deve sobrepor-se aos
indivíduos e aos grupos sociais na condução do interesse coletivo. Há de se configurar uma
permanente simbiose entre o Estado e a sociedade, de tal sorte que ao primeiro não cabe
destruir, nem muito menos exaurir a dinâmica da vida social I (é o magistério de Pio XI, na
Encíclica comemorativa dos quarenta anos da 'Rerum Novarum', a 'Quadragésimo Anno', pontos
79-80)." (Centenárias Situações e Novidade da 'Rerum Novarum', p. 545).
Por fim, quanto a esse tópico, lícito é inferir que quem está coberto pela previdência social está,
em regra, fora da abrangência da assistência social. Nesse sentido, prelecionou Celso Bastos, in
verbis:
“A assistência Social tem como propósito satisfazer as necessidades de pessoas que não podem
gozar dos benefícios previdenciários, mas o faz de uma maneira comedida, para não incentivar
seus assistidos à ociosidade. Concluímos, portanto, que os beneficiários da previdência social
estão automaticamente excluídos da assistência social. O benefício da assistência social, frise-se,
não pode ser cumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou
de outro regime, salvo o de assistência médica” (Celso Bastos e Ives Gandra Martins, in
Comentários à Constituição do Brasil, 8o Vol., Saraiva, 2000, p. 429).
Prudência, portanto, mostra-se altamente recomendável ao julgador, para que as atribuições da
sociedade (família, entidades assistenciais e caridade) não seja desprezadas para a assunção
desmedida de funções do Estado, num país onde o estágio de desenvolvimento não autoriza a
sobrecarga na concessão de direitos sociais de prestação.
Assaz pertinente, neste final de tópico, as fundadas e lúcidas considerações de Elival da Silva
Ramos, Professor da FADUSP, em artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo v. 102 p. 327 - 356 jan./dez. 2007, denominado “CONTROLE
JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: a efetivação dos direitos sociais à luz da
Constituição brasileira de 1988”:
“Em Países como o Brasil, detentores de um Produto Interno Bruto considerável, porém ainda
relativamente pobres, sob o ângulo da renda per capita, e profundamente desiguais, no que toca
à distribuição de renda, as expectativas da sociedade em relação à melhoria das condições
materiais de vida tendem a se intensificar em velocidade que não consegue ser acompanhada
pelo ritmo de implantação e ampliação dos serviços públicos hábeis à sua concretização. No
plano jurídico, essa frustração freqüentemente é captada pelos doutrinadores e operadores do
Direito, transformando-se em propostas de ativismo judiciário, as quais, se implementadas,
tendem a provocar a desorganização das finanças públicas, tornando ainda mais precária, em
decorrência, a prestação dos serviços estatais. E, pior ainda, o resultado de decisões judiciais
que, em vão, tentam suprir, mediante tutelas individuais ou coletivas, a ausência de riqueza
suficiente para propiciar o cabal atendimento às necessidades da população, é o aumento da
frustração e, inclusive, da desigualdade social, pois não-raramente segmentos melhor
organizados e com mais recursos conseguem fazer valer direitos em detrimento da maioria.
Não resta dúvida de que esse ativismo judiciário, ainda contido, mas que vem se disseminando
de forma preocupante, está relacionado a pelo menos dois fatores: de um lado, as disfunções do
sistema político, que não tem sido competente para lidar com as reivindicações legítimas que se
apresentam, canalizando-as para consistentes planos de governo que, elaborados de forma
transparente e participativa, possam atendê-las na medida em que o crescimento econômico o
permitir; de outra parte, a cultura nacional, permeada de elevada dose de um voluntarismo
inconsequente e formalista, que simplifica o complexo quadro de um País em busca do
desenvolvimento e, por conta dessa simplificação e da formação majoritária de suas lideranças,
procura no instrumental jurídico as soluções para todas as deficiências da sociedade.
Não há nada que melhor exemplifique essa tendência do que o debate que se instalou após o
advento da Constituição, de 1988, acerca da implementação dos direitos sociais de índole
programática. Com base em premissas verdadeiras, como é o caso do princípio da supremacia
da Constituição, da vinculação dos Poderes Públicos às normas constitucionais de qualquer
natureza, da fundamentalidade dos direitos sociais, da legitimidade do Poder Judiciário para
controlar os atos e omissões dos Poderes Públicos etc., são extraídas conclusões altamente
contestáveis, de modo a instar os órgãos jurisdicionais, em toda e qualquer circunstância, a
tutelar diretamente os direitos sociais a prestações reconhecidos pela Constituição, convertendo
os direitos in fieri que, via de regra, o Constituinte proclamou em completos direitos públicos
subjetivos. Não tenho o menor receio de impugnar o caráter “democrático” dessas propostas
doutrinárias, que vicejam no Brasil sob a aura do “politicamente correto”, porquanto traduzem elas
a democracia teleológica, tão a gosto do liberalismo clássico, que não se furtava de propugnar
sensíveis restrições à participação política, para que não se desviasse o Poder Público da
concepção liberal de Estado. Se o próprio Constituinte condicionou a efetiva fruição dos direitos
sociais prestacionais a desdobramentos que estão situados no plano do processo governamental,
não se afigura compatível com os postulados democráticos e muito menos com o princípio da
supremacia da Constituição, a assunção pelo Poder Judiciário de um papel concretizador que,
absolutamente, o Constituinte não lhe atribuiu e para o qual não está minimamente legitimado
pela cidadania.”
4.IDOSOS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Na hipótese de postulante idoso, a idade mínima de 70 (setenta) anos foi reduzida para 67
(sessenta e sete) anos pela Lei n. 9.720/98, a partir de 1º de janeiro de 1998, e, mais
recentemente, para 65 (sessenta e cinco) anos, com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso (Lei
n. 10.741/03).
No que se refere ao conceito de pessoa portadora de deficiência - previsto no § 2º da Lei n.
8.742/93, com a redação dada pela Lei nº 13.146/2015 -, passou a ser considerada aquela com
impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, possam obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas.
A Lei nº 13.146/2015, que "institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência", com
início de vigência em 02/01/2016, alterou a redação do artigo 20, § 2º, da LOAS (atualmente em
vigor), in verbis:
"§ 2o Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com
deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."
O foco, doravante, para fins de identificação da pessoa com deficiência, passa a ser a existência
de impedimentos de longo prazo, apenas e tão somente, tornando-se despicienda a referência à
necessidade de trabalho.
5.CASO CONCRETO
Quanto ao requisito da deficiência, restou caracterizado.
No caso vertente, segundo o laudo pericial, a autora tem incapacidade total e permanente autora,
em razão de cegueira num dos olhos e visão parcial em outro.
Atendidos, assim, os termos da redação do artigo 20, § 2º, da LOAS.
No que toca à hipossuficiência, não restou patenteado, como bem observou a Procuradoria
Regional da República.
O estudo social (f. 130 e seguintes), realizado em 09/10/2017, atesta que autora vive com marido
e dois filhos pequenos.
A residência é alugada (R$ 450,00), com acesso a água, energia elétrica, saneamento básico.
A rua é pavimentada e há coleta de lixo.
No momento da realização do estudo social, o marido da autora encontrava-se desempregado e
declarou não realizar qualquer atividade.
Todavia, o BPC não pode ser concedido com base em critérios puramente matemáticos de renda,
devendo ser investigada a real condição social e econômica do núcleo familiar. Sob pena de
abusos e de flagrante malversação da função constitucional da assistência social, que é conceder
dignidade a "desamparados" (artigo 6º da CF), não para incrementar renda com base em
pretensões legalistas, mas não constitucionais.
Ora, quando a parte autora apresentou a DER, em 14.3.2016, o marido recebia R$ 1482,00 por
mês (f. 33 e 260).
A última remuneração de que se tem notícia nos autos, em julho de 2019, o marido recebeu R$
2.444,63, tendo auferido remuneração superior em outros meses, como por exemplo R$ 2.999,47
em março de 2019 (extrato do CNIS, que apresenta informações diversas do juntado aos autos
pelo MPF).
A despeito do teor do RE n. 580963 (STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n. 225,
14/11/2013, que tem repercussão geral), o benefício não poderia ser concedido. Mesmo porque,
se o critério da baixa renda não é “taxativo”, pode ser levado em conta tanto para a concessão
quanto para o indeferimento do pleito.
Reitero, neste final, o alerta de Elival da Silva Ramos, transcrito no item 3, supra.
Não se desconsideram as dificuldades econômicas e sociais do núcleo familiar, mas não se trata
de situação de penúria, porquanto há acesso aos mínimos sociais.
A propósito, decidiu este e. TRF 3.ª Região:
"O benefício de prestação continuada não tem por fim a complementação da renda familiar ou
proporcionar maior conforto ao beneficiário, mas sim, destina-se ao idoso ou deficiente em estado
de penúria" (AC 876500. 9.ª Turma. Rel. Des. Fed. Marisa Santos. DJU, 04.09.2003).
Ante o exposto, conheço da apelação e lhe dou provimento, para julgar improcedente o pedido,
com resolução do mérito.
Invertida a sucumbência, condeno a parte autora a pagar custas processuais e honorários de
advogado, arbitrados em 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados
em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 4º, III, doCPC,
suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por
tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
É o voto.
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL.
PESSOA COM DEFICIÊNCIA. MISERABILIDADE NÃO CONFIGURADA. IMPROCEDÊNCIA DO
PEDIDO. SUCUMBÊNCIA RECURSAL. APELAÇÃO PROVIDA.
- Discute-se o preenchimento dos requisitos necessários à concessão do benefício de prestação
continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/93, regulamentado, atualmente, pelos Decretos n.
6.214/2007 e 7.617/2011.
- A LOAS deu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal, ao estabelecer, em seu
artigo 20, as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o
postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar não possuir
meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
- O Supremo Tribunal Federal reviu seu posicionamento ao reconhecer que o requisito do artigo
20, §3º, da Lei n. 8.742/93 não pode ser considerado taxativo, acórdão produzido com
repercussão geral (RE n. 580963).
- O BPC não pode ser concedido com base em critérios puramente matemáticos de renda,
devendo ser investigada a real condição social e econômica do núcleo familiar. Sob pena de
abusos e de malversação da função constitucional da assistência social, que é conceder
dignidade a "desamparados" (artigo 6º da CF), não para incrementar renda.
- A respeito do conceito de família, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e
destes em relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio
artigo 203, V, da Constituição Federal estabelece que o benefício é devido quando o sustento não
puder ser provido pela família. Aplicação do princípio da solidariedade social, conformado no
artigo 3º, I, do Texto Magno.
- Para fins de identificação da pessoa com deficiência, exige-sea presença de impedimentos de
longo prazo, apenas e tão somente (art. 20, § 2º, da LOAS, com a redação dada pela Lei n.
13.146/2015).
- Deficiência comprovada.
- Mesmo consideradas as dificuldades econômicas e sociais do núcleo familiar, constatado o
acesso aos mínimos sociais, patenteada está a ausência de miserabilidade.
- Benefício indevido.
- Custas processuais e honorários de advogado a cargo da parte autora, arbitrados em 12%
(doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados em razão da fase recursal,
conforme critérios do artigo 85, §§ 1º, 2º, 3º, I, e 4º, III, doCPC, suspensa, porém, a exigibilidade,
na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por tratar-se de beneficiária da justiça
gratuita.
- Apelação provida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Nona Turma, por
unanimidade, decidiu conhecer da apelação e lhe dar provimento, nos termos do relatório e voto
que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA
