Processo
ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL / SP
5079366-27.2018.4.03.9999
Relator(a)
Juiz Federal Convocado VANESSA VIEIRA DE MELLO
Órgão Julgador
9ª Turma
Data do Julgamento
14/11/2019
Data da Publicação/Fonte
Intimação via sistema DATA: 22/11/2019
Ementa
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. ART. 475, § 2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
DE 1973. SENTENÇA EXTRA PETITA. BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIO E ASSISTENCIAL.
FUNGIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ART. 1.013, § 3º, INCISO II, DO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. ART. 203,
CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, E LEI Nº 8.742/1993. PESSOA PORTADORA DE HIV.
CONDIÇÕES PESSOAIS. REQUISITOS PREENCHIDOS. BENEFÍCIO CONCEDIDO.
- A sentença recorrida extrapolou os limites do pedido deduzido pela autora, na petição inicial, de
concessão de benefício de prestação continuada ao deficiente, visto que a MM. Juíza "a quo",
entendendo não restar comprovado nos autos o preenchimento do requisito da incapacidade ao
trabalho, apto a amparar a outorga dos benefícios de aposentadoria por invalidez ou auxílio-
doença, julgou improcedente o pedido.
- Conquanto o c. Superior Tribunal de Justiça albergue entendimento no sentido de que "o pleito
contido na peça inaugural, mormente quando se trata de benefício com caráter previdenciário,
deve ser analisado com certa flexibilidade" (cf. AIRESP 1412645, 1ª Turma, Relator Ministro
Napoleão Nunes Maia Filho, DJE 31.10.2017), o princípio da fungibilidade se aplicaria, apenas,
aos benefícios de mesma natureza, qual seja, previdenciária, o que não ocorre com o benefício
assistencial.
- Atrelam-se, cumulativamente, à concessão do benefício de prestação continuada, o implemento
de requisito etário ou a detecção de deficiência, demonstrada por exame pericial, e a verificação
Jurisprudência/TRF3 - Acórdãos
da ausência de meios hábeis ao provimento da subsistência do postulante da benesse, ou de tê-
la suprida pela família.
- Tratando-se de pedido de concessão de benefício assistencial formulado por pessoa portadora
do vírus da AIDS, a análise da deficiência deve ser feita levando-se em conta as condições
pessoais, sociais, econômicas e culturais da parte autora. Inteligência da Súmula 78, aprovada
pela Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU).
- A diretriz do princípio processual do livre convencimento motivado, pautado na persuasão
racional, elencado nos artigos 130 e 131 do Código de Processo Civil vigente, permitem ao
magistrado formar a sua convicção com base nas provas disponíveis nos autos, desde que
indique na decisão os motivos que lhe formaram o convencimento.
- In casu, a parte autora conta com mais de 41 anos de idade, não possui qualquer formação
técnico-profissional e tem, como atividade habitual, a função de trabalhadora rural, constatando-
se barreiras graves no concernente ao domínio “Fatores Ambientais” e dificuldade moderada para
execução de tarefas, associadas às suas condições de saúde, sintomas da patologia e da
medicação da qual faz uso para problemas secundários, os quais, de forma oscilante, limitam-na
para a execução de tarefas domésticas e autocuidado, bem como para a manutenção de relações
sociais mais consistentes, pois sofre para reservar sigilo quanto à patologia, por medo de
discriminação e agravamento nas relações familiares, limitar sua participação nas reuniões
sociais e comunitárias e estabelecer relações interpessoais.
- Por ser portadora do vírus HIV e diante do desconhecimento que cerca essa patologia, sem
esconder essa condição, dificilmente a autora seria contratada para trabalhar.
- Forçar a recolocação da parte autora no mercado de trabalho, submetendo-a ao estigma e ao
preconceito, poderia ocasionar a redução drástica da sua qualidade de vida, desaguando na sua
exclusão social, com abalos psicológicos trágicos, daí decorrentes.
- Presentes a deficiência e a hipossuficiência econômica, é devido o Benefício de Prestação
Continuada, a partir da data de entrada do requerimento administrativo. Precedentes.
- Juros de mora, correção monetária e custas processuais fixados na forma explicitada.
- Honorários advocatícios a cargo do INSS em percentual mínimo a ser definido na fase de
liquidação.
- Isenção da autarquia previdenciária do pagamento de custas processuais, com exceção das
custas e despesas comprovadamente realizadas pela parte autora.
- Revisão do Benefício de Prestação Continuada a cada dois anos, para avaliação da
continuidade das condições que lhe deram origem.
- Preliminar suscitada pelo Ministério Público Federal acolhida, para anular a sentença de
primeiro grau.
- Apelação da parte autora prejudicada.
- Pedido julgado procedente, com fulcro no art. 1.013, § 3º, inciso II, do Código de Processo Civil.
Efeitos da tutela de mérito antecipados.
Acórdao
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5079366-27.2018.4.03.9999
RELATOR:Gab. 32 - JUÍZA CONVOCADA VANESSA MELLO
APELANTE: MARIA ANGELA GOMES
Advogado do(a) APELANTE: TAKESHI SASAKI - SP48810-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5079366-27.2018.4.03.9999
RELATOR:Gab. 32 - JUÍZA CONVOCADA VANESSA MELLO
APELANTE: MARIA ANGELA GOMES
Advogado do(a) APELANTE: TAKESHI SASAKI - SP48810-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
Trata-se de recurso de apelação, interposto pela parte autora, em face da r. sentença que julgou
improcedente o pedido deduzido na inicial, de concessão de benefício assistencial a pessoa
deficiente.
Pretendeo apelante seja reformado o julgado, sustentando, em síntese, a presença dos requisitos
à outorga da benesse.
Decorrido, “in albis”, o prazo para as contrarrazões de recurso, subiram os autos a esta Corte.
O Ministério Público Federal ofertou parecer manifestando-se, preliminarmente, pela nulidade da
sentença, por incorrer em julgamento extra petita, visto estar fundamentada nas condicionantes à
outorga dos benefícios de aposentadoria por invalidez e auxílio-doença. Pleiteia imediato
julgamento do mérito, nos termos do art. 1.013 § 3º, II, do Código de Processo Civil. No mérito,
considerando os fatores sociais e o baixo grau de instrução da demandante, vislumbra a
existência de várias barreiras para sua plena participação na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas, conquanto o quadro médico não gere incapacidade laborativa
do ponto de vista clínico.
É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº5079366-27.2018.4.03.9999
RELATOR:Gab. 32 - JUÍZA CONVOCADA VANESSA MELLO
APELANTE: MARIA ANGELA GOMES
Advogado do(a) APELANTE: TAKESHI SASAKI - SP48810-N
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
A teor do disposto no art. 1.011 do Código de Processo Civil, conheço do recurso de apelação,
uma vez cumpridos os requisitos de admissibilidade.
Verifico, outrossim, a ocorrência, na hipótese, de julgamento extra petita.
De se observar que a presente ação objetiva a concessão de benefício de prestação continuada
ao deficiente.
Ocorre que a MM. Juíza "a quo", entendendo não restar comprovado nos autos o preenchimento
do requisito da incapacidade ao trabalho, apto a amparar a outorga dos benefícios de
aposentadoria por invalidez ou auxílio-doença, julgou improcedente o pedido.
A sentença ora recorrida extrapolou, portanto, os limites do pedido deduzido pela autora, na
petição inicial.
Conquanto o c. Superior Tribunal de Justiça albergue entendimento no sentido de que "o pleito
contido na peça inaugural, mormente quando se trata de benefício com caráter previdenciário,
deve ser analisado com certa flexibilidade" (cf. AIRESP 1412645, 1ª Turma, Relator Ministro
Napoleão Nunes Maia Filho, DJE 31.10.2017), o princípio da fungibilidade se aplicaria, apenas,
aos benefícios de mesma natureza, qual seja, previdenciária, o que não ocorre com o benefício
assistencial.
Nesse sentido, os precedentes da Nona Turma deste E. Tribunal, tirados de situações parelhas
(negritei):
"PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA/APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. ALTERAÇÃO DO
PEDIDO INICIAL DE OFÍCIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. FUNGIBILIDADE DOS BENEFÍCIOS
POR INCAPACIDADE. AUSÊNCIA DE CONCORDÂNCIA DO RÉU. IMPOSSIBILIDADE.
CERCEAMENTO DE DEFESA CARACTERIZADO. SENTENÇA ANULADA. - Diante da
conclusão do laudo pericial, o Juízo a quo, de ofício, aplicando a fungibilidade dos benefícios
previdenciários e por concluir ser a mesma a causa de pedir, entendeu ser o caso de concessão
de benefício assistencial. Contestação que já fora apresentada pelo réu em momento anterior. -
Não oportunizada manifestação quanto à concordância do réu com a alteração do pedido ou
aditamento da defesa. Cerceamento de defesa caracterizado. - O benefício assistencial não tem
natureza previdenciária, não podendo ser equiparado aos benefícios previdenciários por
incapacidade, sendo os requisitos para sua concessão distintos dos necessários à concessão dos
benefícios desta espécie. Fungibilidade de benefícios. Impossibilidade. - Ausência de prévio
requerimento administrativo do benefício assistencial. Falta de interesse de agir no tocante ao
referido pedido, considerando a jurisprudência do C. STF (RE631240). - Parte autora que alega o
agravamento da doença, tendo requerido a produção de provas e formulado quesitos
suplementares, o que não foi analisado pelo Juízo a quo. - Sentença anulada. Prejudicada a
apelação do réu." (Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 2277974 0037038-07.2017.4.03.9999,
DESEMBARGADOR FEDERAL GILBERTO JORDAN, TRF3 - NONA TURMA, e-DJF3 Judicial 1
DATA:07/03/2018)
"PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO LEGAL. DECISÃO MONOCRÁTICA.
CPC/1973. ARTIGO 557. INDEVIDA FUNGIBILIDADE DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIO E
ASSISTENCIAL. PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA ENTRE PEDIDO E SENTENÇA. BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL NÃO REQUERIDO. SENTENÇA ANULADA. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO
INDEVIDO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. RECURSO DESPROVIDO. -
Considerando que a decisão atacada foi proferida na vigência do CPC/1973, aplicam-se ao
presente recurso as regras do artigo 557 e §§ daquele código. - O artigo 557 do CPC revestia de
plena constitucionalidade, ressaltando-se que alegações de descabimento da decisão
monocrática ou nulidade perdem o objeto com a mera submissão do agravo ao crivo da Turma
(STJ-Corte Especial, REsp 1.049.974, Min. Luiz Fux, j. 2.6.10, DJ 3.8910). - O benefício
previdenciário por incapacidade pretendido pelo autor é indevido, pelas razões constantes do voto
e da decisão monocrática que desafiou a interposição deste agravo legal. - Não se afigura
razoável aplicar as facilidades previstas na Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) às
relações jurídicas previdenciárias discutidas em juízo, dada a natureza jurídica diversa das
prestações previdenciárias em relação aos direitos do consumidor. - Os artigos 461 do CPC/73 e
84 do CDC não autorizam que o princípio da congruência entre o pedido e a sentença seja
menosprezado, ainda mais em se tratando de direitos sociais, cujos pressupostos constitucionais
são estritos. Fungibilidade de benefícios indevida no caso. - Não se admite autorizar o juiz a
decidir em desconformidade com o pedido, pois atribuiria ao Poder Judiciário função exorbitante,
não tipificada na Constituição Federal e no Código de Processo Civil, gerando um convite
permanente ao excesso ou desvio de poder. - O Estado Democrático de Direito formatado na
Constituição da República pressupõe o respeito estrito ao princípio ne procedat judex ex officio,
sob pena de extravasamento e deturpação da função jurisdicional. - Se a parte autora faz jus ao
benefício assistencial, cabe-lhe requerê-lo pelas vias ordinárias, mesmo porque a concessão
judicial de benefício assistencial sem prévio requerimento administrativo ofende o disposto no do
RE 631240, julgado pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. - Não se deve deslembrar
que condenação do INSS a conceder benefício não requerido na petição inicial também implica
ofensa ao princípio da ampla defesa, pois não debatida nos autos a possibilidade de concessão
de benefício assistencial em vez de benefício previdenciário. - Segundo entendimento firmado
nesta Corte, a decisão do Relator não deve ser alterada quando fundamentada e nela não se
vislumbrar ilegalidade ou abuso de poder que resulte em dano irreparável ou de difícil reparação
para a parte. - A decisão agravada abordou todas as questões suscitadas e orientou-se pelo
entendimento jurisprudencial dominante. Pretende o agravante, em sede de agravo, rediscutir
argumentos já enfrentados pela decisão recorrida. - Agravo legal desprovido." (Ap - APELAÇÃO
CÍVEL - 2055494 0003140-47.2010.4.03.6119, JUIZ CONVOCADO RODRIGO ZACHARIAS,
TRF3 - NONA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:26/09/2016)
Desse modo, considerando-se o disposto pelo art. 492 do Código de Processo Civil, de rigor o
acolhimento da preliminar suscitada pelo Órgão Ministerial, para anular a sentença, restando, em
decorrência, prejudicado o apelo autoral.
Passo à análise do mérito, nos termos do estabelecido no art. 1.013, § 3º, inciso II, do mesmo
Codex.
Discute-se o direito da parte autora à concessão de benefício assistencial a pessoa deficiente.
Previsto no art. 203, caput, da Constituição Federal e disciplinado pela Lei nº 8.742/1993, de
natureza assistencial e não previdenciária, o benefício de prestação continuada tem sua
concessão desvinculada do cumprimento dos quesitos de carência e de qualidade de segurado,
atrelando-se, cumulativamente, ao implemento de requisito etário ou à detecção de deficiência,
nos termos do art. 20, §2º, da Lei n° 8.742/93, demonstrada por exame pericial; à verificação da
ausência de meios hábeis ao provimento da subsistência do postulante da benesse, ou de tê-lo
suprido pela família; e, originalmente, à constatação de renda mensal per capita não superior a ¼
(um quarto) do salário mínimo. Recorde-se, a este passo, da sucessiva redução da idade mínima,
primeiramente de 70 para 67 anos, pelo art. 1º da Lei nº 9.720/98 e, ao depois, para 65 anos,
conforme art. 34 da Lei nº 10.741/ 2003.
No que diz respeito ao critério da deficiência, as sucessivas alterações legislativas ocorridas na
redação do § 2º, do art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social demonstram a evidente
evolução na sua conceituação.
Em sua redação originária, a Lei 8.742/1993 definia a pessoa portadora de deficiência, para efeito
de concessão do benefício assistencial, aquela incapacitada para a vida independente e para o
trabalho.
Posteriormente, a Lei n. 12.435/2011 promoveu modificação ao dispositivo legal, ampliando o
conceito de deficiência, com base no Decreto n. 6.949/2009, que promulgou a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
O § 2º da art. 20 da Lei n. 8.742 passou então a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 20
(...)
§ 2º - para efeito de concessão deste benefício, considera-se:
I - pessoa com deficiência, aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.
II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida
independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos."
Vê-se, portanto, que ao fixar o entendimento da expressão "impedimentos de longo prazo", a Lei
n. 12.435/2011 optou por restringir a concessão do benefício exclusivamente às pessoas com
deficiência que apresentem incapacidade para a vida independente e para o trabalho pelo prazo
mínimo de 2 (dois) anos.
Atualmente, o dispositivo em exame encontra-se vigendo com a redação conferida pelo Estatuto
da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146/2015, a qual explicitou a definição legal de pessoa com
deficiência:
"Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com
deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."
De se registrar que o § 10 do mesmo dispositivo, incluído pela Lei n. 12.470/2011, considera de
longo prazo o impedimento cujos efeitos perduram pelo prazo mínimo de 02 (dois) anos.
Acerca do derradeiro pressuposto, o C. STF, no âmbito da Reclamação nº 4374 e dos Recursos
Extraordinários nºs. 567985 e 580963, submetidos à sistemática da repercussão geral, reputou
defasado esse método aritmético de aferição de contexto de miserabilidade, suplantando, assim,
o que outrora restou decidido na ADI 1.232-DF, ajuizada pelo Procurador-Geral da República e
em cujo âmbito se declarara a constitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93. A
motivação empregada pela Excelsa Corte, no RE nº 580963, reside no fato de terem sido
"editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios
assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que
instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa
Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios
que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas".
À vista disso, a mensuração da hipossuficiência não mais se restringe ao parâmetro da renda
familiar, devendo, sim, aflorar da análise desse requisito e das demais circunstâncias concretas
de cada caso, na linha do que já preconizava a jurisprudência majoritária, no sentido de que a
diretiva do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não consistiria em singular meio para se verificar a
condição de miserabilidade preceituada na Carta Magna, cuidando-se, tão-apenas, de critério
objetivo mínimo, a revelar a impossibilidade de subsistência do portador de deficiência e do idoso,
não empecendo a utilização, pelo julgador, de outros fatores igualmente capazes de denotar a
condição de precariedade financeira da parte autora. Veja-se, a exemplo, STJ: REsp nº
314264/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Félix Fischer, j. 15/05/2001, v.u., DJ 18/06/2001, p. 185;
EDcl no AgRg no REsp 658705/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Felix Fischer, j. 08/03/2005, v.u., DJ
04/04/2005, p. 342; REsp 308711/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 19/09/2002,
v.u., DJ 10/03/2003, p. 323.
Em plena sintonia com o acima esposado, o c. STJ, quando da apreciação do RESP n.
1.112.557/MG, acentuou que o art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93 comporta exegese tendente ao
amparo do cidadão vulnerável, donde concluir-se que a delimitação do valor de renda familiar per
capita não pode ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado.
Em substituição à diretriz inicialmente estampada na lei, a jurisprudência vem evoluindo para
eleger a renda mensal familiar per capita inferior à metade do salário mínimo como indicativo de
situação de precariedade financeira, tendo em conta que outros programas sociais, dentre eles o
bolsa família, o Programa Nacional de Acesso à Alimentação e o bolsa escola, instituídos pelas
Leis nºs 10.836/04, 10.689/03 e 10.219/01, nessa ordem, contemplam esse patamar.
Consultem-se arestos da Terceira Seção nesse diapasão:
"AGRAVO LEGAL EM EMBARGOS INFRINGENTES. PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL À PESSOA IDOSA. PREENCHIDOS OS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO
DO BENEFÍCIO. AGRAVO IMPROVIDO (...) 3 - Da análise do sistema CNIS/DATAPREV,
verifica-se que o filho da autora possui apenas pequenos vínculos de trabalho, na maioria inferior
a 03 meses, sendo que na maior parte do tempo esteve desempregado. Desse modo, mesmo
incluindo a aposentadoria do marido da autora, a renda familiar per capita corresponde a pouco
mais de R$ 300,00, ou seja, inferior a meio salário mínimo. 4 - Restou demonstrada, quantum
satis, no caso em comento, situação de miserabilidade, prevista no art. 20, § 3º, da Lei
8.742/1993, a ensejar a concessão do benefício assistencial. 5 - Agravo improvido." (EI
00072617120124036112, Relator Desembargador Federal Toru Yamamoto, TRF3, j. 22/10/2015,
e-DJF3 05/11/2015)
"PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL (LOAS). EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM
AGRAVO LEGAL. CARÁTER INFRINGENTE. IMPOSSIBILIDADE. CONTRADIÇÃO
INEXISTENTE. (...)- No caso em exame, não há omissão a ser sanada, sendo o benefício
indeferido pelo fato da renda familiar "per capita" ser superior a 1/2 salário mínimo. (...) 5-
Embargos de declaração rejeitados." (AR 00082598120084030000, Relator Juiz Convocado Silva
Neto, TRF3, j. 25/09/2014, e-DJF3 08/10/2014)
Nesse exercício de sopesamento do conjunto probatório, importa averiguar a necessidade, na
precisão da renda familiar, de abatimento do benefício de valor mínimo percebido por idoso ou
deficiente, pertencente à unidade familiar. Nesta quadra, há, inclusive, precedente do egrégio
STF, no julgamento do RE nº 580.963/PR, disponibilizado no DJe 14.11.2013, submetido à
sistemática da repercussão geral, em que se consagrou a inconstitucionalidade por omissão do
art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, considerando a "inexistência de justificativa
plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos
idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios
previdenciários no valor de até um salário mínimo.".
Quanto à questão da composição da renda familiar per capita, o C. STJ, no julgamento do RESP
n. 1.355.052/SP, exarado na sistemática dos recursos representativos de controvérsia, assentou,
no mesmo sentido, a aplicação analógica do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, com
vistas à exclusão do benefício previdenciário recebido por idoso ou por deficiente, no valor de um
salário mínimo, no cálculo da renda per capita prevista no art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93
De se realçar que a jurisprudência - antes, mesmo, do aludido recurso repetitivo - já se firmara no
sentido da exclusão de qualquer benefício de valor mínimo recebido por idoso com mais de 65
anos, por analogia ao disposto no art. 34, parágrafo único, da Lei nº 10.741/2003, preceito esse
que, na origem, limitava-se a autorizar a desconsideração de benefício de prestação continuada
percebido pelos referidos idosos.
Note-se que os precedentes não autorizam o descarte do benefício de valor mínimo recebido por
qualquer idoso, assim compreendidas pessoas com idade superior a 60 anos, mas, sim, pelos
idosos com idade superior a 65 anos.
Essa é a inteligência reinante na jurisprudência. A propósito, os seguintes julgados: STJ, AGP
8479, Rel. Des. Convocada Marilza Maynard, 3ª Seção, DJE 03/02/2014; STJ, AGP 8609, Rel.
Min. Assusete Magalhães, 3ª Seção, DJE 25/11/2013; STJ, AGRESP 1178377, Rel. Min. Maria
Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, DJE 19/3/2012. E da atenta leitura da íntegra do acórdão do
recurso representativo de controvérsia - nº 1.355.052/SP - chega-se à idêntica conclusão.
Outro dado sobremodo relevante diz respeito à acepção de família, para a finalidade da Lei nº
8.742/1993, cujo conceito experimentou modificação ao longo do tempo. Num primeiro lanço, o
art. 20, § 1º, do citado diploma nomeava família "a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo
teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes". Ao depois, a Lei nº 9.720,
em 30/11/98, fruto de conversão da Medida Provisória nº 1.473-34, de 11/08/97, passou a
compreendê-la como o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº 8.213/91, dês que
conviventes sob mesmo teto. Finalmente, na vigência da Lei nº 12.435/2011, é havida como o
núcleo integrado pelo requerente, cônjuge ou companheiro, os pais, ou, na ausência destes, pela
madrasta ou padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados,
todos, também, sob o mesmo teto.
SITUAÇÃO DOS AUTOS
No caso dos autos, o laudo médico colacionado ao doc. 8785408, realizado em 13/03/2018,
considerou que a autora, então, com 41 anos de idade, primeiro grau incompleto, sem formação
profissional e que trabalhou por quinze anos como rurícola, portadora do vírus HIV há quatro
anos, em uso de medicação específica, quadro depressivo e síndrome do pânico, há um ano,
atualmente controlado, não apresenta qualquer limitação ou deficiência física que possa gerar
restrições para as práticas laborais.
Do ponto de estritamente médico, o laudo é hígido e bem fundamentado, não deixando dúvidas
quanto à sua conclusão. Ou seja, segundo o laudo médico, a parte autora está clinicamente apta
ao trabalho rural.
Todavia, o juiz é livre para formar seu próprio convencimento, desde que fundamente sua
decisão.
Essa é a diretriz do princípio processual do livre convencimento motivado, pautado na persuasão
racional, elencado nos artigos 371 e 479 do Código de Processo Civil. Tais dispositivos legais
permitem ao magistrado formar a sua convicção com base nas provas disponíveis nos autos,
desde que indique na decisão os motivos que lhe formaram o convencimento.
Desse modo, o laudo pericial é dirigido ao juiz, competindo a este, com espeque no livre
convencimento motivado, sopesá-lo, adotando-o ou rejeitando-o a partir dos demais elementos
probatórios carreados aos autos.
Tratando-se de ação envolvendo pessoa portadora de HIV, mister se faz que se aprecie o pedido
avaliando as condições sociais da parte autora. Neste sentido é a redação da súmula 78,
aprovada pela Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU) na
sessão realizada no dia 11 de setembro, em Brasília, verbis:
"Comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe ao julgador verificar as
condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, de forma a analisar a incapacidade em
sentido amplo, em face da elevada estigmatização social da doença."
Relevante reconhecer que a nova ordem constitucional estabeleceu como prioridade a dignidade
da pessoa humana, consubstanciada em uma sociedade livre, justa e solidária, que mira erradicar
a pobreza e reduzir as desigualdades sociais. Não se erradicam as desigualdades sem enfrentar
o preconceito que permeia os mais diversos substratos sociais.
Logo, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu novas diretrizes à aplicação e à interpretação
do direito, tendo sempre como esteio a dignidade da pessoa humana.
Destarte, no cumprimento de seu dever maior, o juiz deve assegurar a máxima eficácia aos
direitos fundamentais.
Conforme mencionado, tratando-se de pedido de concessão de benefício assistencial formulado
por pessoa portadora do vírus da AIDS, a análise da deficiência deve ser feita levando-se em
conta as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais. E essa regra não comporta
qualquer exceção.
A produção científica e os avanços tecnológicos revolucionaram a sociedade. E essa
transformação se torna ainda mais patente no campo da medicina.
Hoje, diversas patologias consideradas fatais na década de 80 podem ser tratadas, possibilitando
a seus portadores um aumento da expectativa e da qualidade de vida.
Todavia, se os avanços tecnológicos atenuam as causas biológicas da doença, o mesmo não
aconteceu com relação à extirpação do preconceito. E a desinformação contribui com a
perpetuação dessa situação.
Mesmo diante de tratamentos cada vez mais eficazes, algumas patologias possuem um forte e
negativo apelo social, na medida em que seus portadores são estigmatizados e tratados com
párias.
Patente que a AIDS é uma doença com caráter estigmatizante muito forte, uma vez que o
tratamento envolve o controle da doença e não a cura definitiva.
Um dos piores efeitos sociais para os portadores dessa doença ocorre, justamente, no ambiente
de trabalho.
É sabido que os portadores dessa síndrome vivenciam situações de negativas causadas pelo
preconceito no ambiente de trabalho.
Por ser uma doença estigmatizante, os portadores do vírus HIV enfrentam, sem omitir essa
condição, uma enorme dificuldade de conseguir emprego. Aqueles que conseguem colocação no
mercado de trabalho encaram, diariamente, o descrédito e afastamento social de seus colegas,
clientes e superiores.
Atento a essa mazela social e constada essa situação fática, recentemente o Tribunal Superior do
Trabalho editou a seguinte súmula:
"Súmula nº 443 do TST. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO
PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À
REINTEGRAÇÃO - Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV
ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem
direito à reintegração no emprego."
Veja-se que a parte autora conta com mais de 41 anos de idade e não possui qualquer formação
técnico-profissional. Tem, como atividade habitual, a função de trabalhadora rural.
Do estudo social, colacionado ao doc. 8785392, realizado em 14/12/2017, haure-se que, no
concernente ao domínio “Fatores Ambientais”, existem barreiras graves características do mundo
físico, social e de atitude, notando-se, inclusive, que os familiares da autora, sequer, sabem que é
portadora de HIV, bem assim que a mesma vem realizando tratamento médico para controle da
doença, em município diverso de Mirandópolis/SP, no qual reside, “temendo que descubram ser
portadora de HIV”, com atitudes preconceituosas e discriminatórias daí decorrentes.
Transcrevo excerto do laudo, nesse ponto:
“Autora no momento e aparentemente, não apresenta dificuldade para realização de tarefas
domésticas, auto cuidado, mas tem saúde oscilante. Segundo documentos e informações da
autora, é portadora de HIV; queixou-se que a doença a fez perder a capacidade de prover seu
próprio sustento. Sem renda e condições para o labor, a autonomia da família está prejudicada;
não tem acesso a moradia própria, a que habita é salubre, requer infraestrutura mais adequada,
que garanta condições mais satisfatórias quanto ao bem estar do grupo familiar. Tem acesso às
políticas públicas mas não é bem atendida em todas as suas necessidades. Utiliza os serviços da
rede assistencial para acesso a medicamentos, consultas, transporte para locomoção aos
serviços de saúde. Tem limitada aceitação da abordagem dos técnicos de saúde e Assistência
Social local, temendo que descubram ser portadora de HIV (efetuando acompanhamento em
outra localidade) o que não pretende revelar temendo atitudes preconceituosas e discriminatórias
(o mesmo ocorrendo com relação aos familiares, com os quais aquela não se relaciona
satisfatoriamente, não recebendo apoio humano e financeiro). De forma restrita, mantém relações
comunitárias e sociais, com disponibilidade de conhecidos em lhe oferecer algum apoio físico.”
Ainda, no que tange ao domínio “Atividades e Participação”, constatou-se dificuldade moderada
para execução de tarefas, considerando a condição física da pretendente, seu baixo nível de
instrução e profissão humilde. A perita salientou que, muitas das dificuldades da autora estão
associadas às suas condições de saúde, sintomas da patologia, da medicação da qual faz uso
para problemas secundários e que, de forma oscilante, limitam-na para a execução de tarefas
domésticas e autocuidado, bem como para a manutenção de relações sociais mais consistentes,
pois sofre para reservar sigilo quanto à patologia, por medo de sofrer discriminação e
agravamento nas relações familiares, limitar sua participação nas reuniões sociais e comunitárias
e estabelecer relações interpessoais.
Ademais, por ser portadora do vírus HIV e diante do desconhecimento que cerca essa patologia,
a parte autora, sem esconder essa condição, dificilmente seria contratada para trabalhar.
O temor de contágio e o preconceito criariam uma barreira invisível, difícil de ser derrubada pela
autora.
A condição social da parte autora e a sua profissão habitual, inegavelmente, a tornam duplamente
vitimada. Além da enfermidade acometida e das mazelas decorrentes da doença, caso voltasse a
exercer a profissão de trabalhadora rural, ela passaria a ser estigmatizada, ou seja, seria tratada
por seus empregadores e colegas de forma negativa, suportando, consequentemente, o
preconceito.
Ademais, pode ser que a autora, ao relatar ser portadora do vírus HIV, jamais consiga nova
colocação no mercado de trabalho, diante do medo e da ignorância que cercam tal doença, como
anteriormente salientado, ainda que a desculpa pela recusa da concessão do emprego seja
camuflada por outro motivo.
Forçar a recolocação da parte autora no mercado de trabalho, submetendo-a ao estigma e ao
preconceito poderia ocasionar a redução drástica da sua qualidade de vida, desaguando na sua
exclusão social.
Os abalos psicológicos decorrentes da exclusão social seriam trágicos. Notório que o fator
emocional interfere, negativamente, na saúde do ser humano, incluído o próprio sistema
imunológico. E no portador do vírus HIV esse vital sistema de defesa já está suficientemente
fragilizado.
O juiz deve estar atento ao contexto social que o cerca. Sendo assim, apesar de estar
clinicamente apta ao trabalho, a patologia que acomete a parte autora causa grande estigma
social, autorizando concluir pela existência de comprometimento ou restrições sociais decorrentes
da enfermidade verificada, por mais de 2 (dois) anos, configurando-se, por conseguinte, quadro
de deficiência necessário à concessão do benefício de prestação continuada, nos termos
estabelecidos no art. 20, § 10, da Lei nº 8.742/1993.
Avançando, então, na análise da hipossuficiência, importa examinar o mencionado estudo social.
Segundo o laudo adrede confeccionado, a autora, separada judicialmente há oito anos, reside
com duas filhas, de 14 e 10 anos, idades correspondentes à data do estudo socioeconômico.
Moram em casa cedida pela genitora da proponente, construída em madeira, com restos de
materiais, alguns cedidos pela Prefeitura da localidade. O terreno é irregular (declive).
A casa compõe-se por pequenas repartições, sendo dois dormitórios, sala, cozinha e banheiro
externo, guarnecidos por mobília básica, “tudo em condições de uso pouco satisfatórias”. O
banheiro externo dificulta a acessibilidade, principalmente nas ocasiões em que a pretendente
está com a saúde mais debilitada.
Os ganhos da família advém da transferência de R$ 330,00 pelos programas Renda Cidadã e
Bolsa Família. “Rara e recentemente, quando se sente menos debilitada”, a requerente “faz uma
ou outra faxina, recebendo, por isto, R$ 50,00/dia”.
Averbe-se ter sido ajuizada ação para obtenção de alimentos para as filhas, no entanto, inexitosa.
A esta altura, cabe lembrar que, na contabilização da renda familiar, torna-se imperiosa a
exclusão dos rendimentos percebidos dos aludidos programas sociais, por força do disposto no
Decreto nº 6.135/2007, que dispõe sobre o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo
Federal.
Assim, considerado o núcleo de três pessoas, a renda familiar per capita totaliza valor inferior à
metade do salário mínimo, à época, de R$ 937,00.
No mais, não há qualquer bem ou objeto de valor economicamente apreciável.
As despesas, à época do laudo, consistiam em tarifas de água, esgoto e energia elétrica, alguns
alimentos e pequenas necessidades não especificadas. De toda forma, os dispêndios não são
supridos com a renda percebida dos programas sociais. A família depende, à sobrevivência, da
ajuda de vizinhos e da igreja.
Há, ainda, comprovação de cobrança por atraso no pagamento de tarifas de água, esgoto e
energia elétrica de exercícios anteriores.
Dessa forma, divisa-secaracterizada conjuntura de miserabilidade.
Reforça mais essa conclusão, a opinião da perita no sentido de que, do ponto de vista
sociológico, a família vivencia contexto de vulnerabilidade social.
Assim, restou demonstrada situação de hipossuficiência econômica, como indicado no sobredito
paradigma do C. Supremo Tribunal Federal, exarado em repercussão geral, a autorizar o implante
da benesse.
De acordo com o entendimento esposado pela jurisprudência dominante, o termo inicial do
benefício deve ser fixado a partir do requerimento administrativo. Nesse sentido: APELREEX
00122689420114036139, Nona Turma, Relatora Desembargadora Federal Marisa Santos, j.
30/05/2016, e-DJF3 13/06/2016; APELREEX 00331902220114039999, Nona Turma, Relator Juiz
Convocado Rodrigo Zacharias, j. 14/03/2016, e-DJF3 31/03/2016.
Passo à análise dos consectários.
Cumpre esclarecer que, em 20 de setembro de 2017, o STF concluiu o julgamento do RE
870.947, definindo as seguintes teses de repercussão geral sobre a incidência da Lei n.
11.960/2009: "1) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na
parte em que disciplina os juros moratórios aplicáveis a condenações da Fazenda Pública, é
inconstitucional ao incidir sobre débitos oriundos de relação jurídico-tributária, aos quais devem
ser aplicados os mesmos juros de mora pelos quais a Fazenda Pública remunera seu crédito
tributário, em respeito ao princípio constitucional da isonomia (CRFB, art. 5º, caput); quanto às
condenações oriundas de relação jurídica não-tributária, a fixação dos juros moratórios segundo o
índice de remuneração da caderneta de poupança é constitucional, permanecendo hígido, nesta
extensão, o disposto no art. 1º-F da Lei nº 9.494/97 com a redação dada pela Lei nº 11.960/09; e
2) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que
disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a
remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição
desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica
como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a
promover os fins a que se destina."
Assim, a questão relativa à aplicação da Lei n. 11.960/2009, no que se refere aos juros de mora e
à correção monetária, não comporta mais discussão, cabendo apenas o cumprimento da decisão
exarada pelo STF em sede de repercussão geral.
Nesse cenário, sobre os valores em atraso incidirão juros e correção monetária em conformidade
com os critérios legais compendiados no Manual de Orientação de Procedimentos para os
Cálculos na Justiça Federal, observadas as teses fixadas no julgamento final do RE 870.947, de
relatoria do Ministro Luiz Fux.
Quanto à modulação dos efeitos da decisão do citado RE, destaca-se a pendência de apreciação,
pelo STF, de Embargos de Declaração, ficando remarcada, desta forma, a sujeição da questão
da incidência da correção monetária ao desfecho do referido leading case.
Deve o INSS arcar com os honorários advocatícios em percentual mínimo a ser definido na fase
de liquidação, nos termos do inciso II do § 4º do art. 85 do Código de Processo Civil, observando-
se o disposto nos §§ 3º e 5º desse mesmo dispositivo legal e considerando-se as parcelas
vencidas até a data da decisão concessiva do benefício, nos termos da Súmula n. 111 do
Superior Tribunal de Justiça.
Está o instituto previdenciário isento do pagamento de custas processuais, consoante o art. 4º,
inciso I, da Lei Federal n. 9.289/96, art. 6º, da Lei do Estado de São Paulo n. 11.608/2003 e das
Leis do Mato Grosso do Sul, de n. 1.135/91 e 1.936/98, alteradas pelos arts. 1º e 2º, da Lei n.
2.185/2000. Excluem-se da isenção as respectivas despesas processuais, além daquelas devidas
à parte contrária.
Os valores já pagos, seja na via administrativa ou por força de decisão judicial, a título de
quaisquer benefícios previdenciários ouassistenciaisnão cumuláveis, deverão ser integralmente
abatidos do débito.
Saliente-se que, nos termos do art. 21, caput, da Lei n. 8.742/93, o benefício de prestação
continuada deve ser revistoa cada dois anos,para avaliação da continuidade das condições que
lhe deram origem.
Ante a natureza alimentar da prestação, oficie-se ao INSS com cópia dos documentos
necessários, para que sejam adotadas medidas para a imediata implantação do benefício,
independentemente de trânsito em julgado, conforme requerido initio litis.
Ante o exposto, ACOLHO A PRELIMINAR SUSCITADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL, PARA ANULAR A SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU, restando, em decorrência,
PREJUDICADA A APELAÇÃO AUTORAL. Com fulcro no art. 1.013, § 3º, inciso II, do Código de
Processo Civil, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO, concedendo, à parte autora, o benefício de
prestação continuada, a partir da data de entrada do requerimento administrativo, e fixando
consectários na forma explicitada, abatidos eventuais valores já recebidos.
É como voto.
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. ART. 475, § 2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
DE 1973. SENTENÇA EXTRA PETITA. BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIO E ASSISTENCIAL.
FUNGIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ART. 1.013, § 3º, INCISO II, DO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. ART. 203,
CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, E LEI Nº 8.742/1993. PESSOA PORTADORA DE HIV.
CONDIÇÕES PESSOAIS. REQUISITOS PREENCHIDOS. BENEFÍCIO CONCEDIDO.
- A sentença recorrida extrapolou os limites do pedido deduzido pela autora, na petição inicial, de
concessão de benefício de prestação continuada ao deficiente, visto que a MM. Juíza "a quo",
entendendo não restar comprovado nos autos o preenchimento do requisito da incapacidade ao
trabalho, apto a amparar a outorga dos benefícios de aposentadoria por invalidez ou auxílio-
doença, julgou improcedente o pedido.
- Conquanto o c. Superior Tribunal de Justiça albergue entendimento no sentido de que "o pleito
contido na peça inaugural, mormente quando se trata de benefício com caráter previdenciário,
deve ser analisado com certa flexibilidade" (cf. AIRESP 1412645, 1ª Turma, Relator Ministro
Napoleão Nunes Maia Filho, DJE 31.10.2017), o princípio da fungibilidade se aplicaria, apenas,
aos benefícios de mesma natureza, qual seja, previdenciária, o que não ocorre com o benefício
assistencial.
- Atrelam-se, cumulativamente, à concessão do benefício de prestação continuada, o implemento
de requisito etário ou a detecção de deficiência, demonstrada por exame pericial, e a verificação
da ausência de meios hábeis ao provimento da subsistência do postulante da benesse, ou de tê-
la suprida pela família.
- Tratando-se de pedido de concessão de benefício assistencial formulado por pessoa portadora
do vírus da AIDS, a análise da deficiência deve ser feita levando-se em conta as condições
pessoais, sociais, econômicas e culturais da parte autora. Inteligência da Súmula 78, aprovada
pela Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU).
- A diretriz do princípio processual do livre convencimento motivado, pautado na persuasão
racional, elencado nos artigos 130 e 131 do Código de Processo Civil vigente, permitem ao
magistrado formar a sua convicção com base nas provas disponíveis nos autos, desde que
indique na decisão os motivos que lhe formaram o convencimento.
- In casu, a parte autora conta com mais de 41 anos de idade, não possui qualquer formação
técnico-profissional e tem, como atividade habitual, a função de trabalhadora rural, constatando-
se barreiras graves no concernente ao domínio “Fatores Ambientais” e dificuldade moderada para
execução de tarefas, associadas às suas condições de saúde, sintomas da patologia e da
medicação da qual faz uso para problemas secundários, os quais, de forma oscilante, limitam-na
para a execução de tarefas domésticas e autocuidado, bem como para a manutenção de relações
sociais mais consistentes, pois sofre para reservar sigilo quanto à patologia, por medo de
discriminação e agravamento nas relações familiares, limitar sua participação nas reuniões
sociais e comunitárias e estabelecer relações interpessoais.
- Por ser portadora do vírus HIV e diante do desconhecimento que cerca essa patologia, sem
esconder essa condição, dificilmente a autora seria contratada para trabalhar.
- Forçar a recolocação da parte autora no mercado de trabalho, submetendo-a ao estigma e ao
preconceito, poderia ocasionar a redução drástica da sua qualidade de vida, desaguando na sua
exclusão social, com abalos psicológicos trágicos, daí decorrentes.
- Presentes a deficiência e a hipossuficiência econômica, é devido o Benefício de Prestação
Continuada, a partir da data de entrada do requerimento administrativo. Precedentes.
- Juros de mora, correção monetária e custas processuais fixados na forma explicitada.
- Honorários advocatícios a cargo do INSS em percentual mínimo a ser definido na fase de
liquidação.
- Isenção da autarquia previdenciária do pagamento de custas processuais, com exceção das
custas e despesas comprovadamente realizadas pela parte autora.
- Revisão do Benefício de Prestação Continuada a cada dois anos, para avaliação da
continuidade das condições que lhe deram origem.
- Preliminar suscitada pelo Ministério Público Federal acolhida, para anular a sentença de
primeiro grau.
- Apelação da parte autora prejudicada.
- Pedido julgado procedente, com fulcro no art. 1.013, § 3º, inciso II, do Código de Processo Civil.
Efeitos da tutela de mérito antecipados. ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Nona Turma, por
unanimidade, decidiu acolher a preliminar suscitada pelo Ministério Público Federal, para anular a
sentença de primeiro grau, restando, em decorrência, prejudicada a apelação da parte autora e,
com fulcro no art. 1.013, § 3º, inciso II, do Código de Processo Civil, julgar procedente o pedido,
nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Resumo Estruturado
VIDE EMENTA
