
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002538-45.2023.4.03.6141
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: FLAVIO OLIVEIRA VAZ
Advogado do(a) APELANTE: JOSE JAIME GONCALVES QUEIROZ - SP385422-A
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002538-45.2023.4.03.6141
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: FLAVIO OLIVEIRA VAZ
Advogado do(a) APELANTE: JOSE JAIME GONCALVES QUEIROZ - SP385422-A
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
Trata-se de ação de conhecimento proposta em face do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), na qual a parte autora pleiteia inexigibilidade de débito, com vistas ao restabelecimento de aposentadoria por tempo de contribuição.
A sentença julgou improcedente o pedido.
Não resignada, a parte autora apresentou apelação, na qual salienta que o "equívoco na concessão do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição decorreu, única e exclusivamente de erro administrativo" e que "não pode o Apelante se ver obrigado a ressarcir valores que recebeu em virtude de erro administrativo".
Sem contrarrazões, os autos subiram a esta Corte.
É o relatório.
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002538-45.2023.4.03.6141
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: FLAVIO OLIVEIRA VAZ
Advogado do(a) APELANTE: JOSE JAIME GONCALVES QUEIROZ - SP385422-A
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
O recurso atende aos pressupostos de admissibilidade e merece ser conhecido.
Trata-se de pretensão na qual a parte autora busca a inexigibilidade de débito, com vistas ao restabelecimento de aposentadoria por tempo de contribuição indevidamente cessada.
Salienta ter sido notificada a comprovar lapsos de trabalho, inclusive em condições especiais, os quais não restaram validados pela autarquia. Assim, sua aposentadoria foi suspensa com a geração de passivo decorrente da irregular concessão.
Sustenta sua boa-fé na percepção dos proventos.
Passo à análise das questões trazidas a julgamento.
Da devolução dos valores
A Administração Pública goza de prerrogativas, dentre as quais o controle administrativo, sendo-lhe dado rever os atos de seus próprios órgãos, anulando aqueles eivados de ilegalidade (artigo 37 da Constituição Federal/1988), bem como revogando os atos cuja conveniência e oportunidade não mais subsistam.
Trata-se do poder de autotutela administrativo, enunciado nas Súmulas n. 346 e 473 do STF, tendo como fundamento os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade administrativa e da supremacia do interesse público, desde que obedecidos os regramentos constitucionais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, da CF), além da Lei n. 9.784/1999, aplicável à espécie:
"A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos."
"A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos a apreciação judicial."
No caso dos autos, em revisão administrativa nos termos do artigo 11 da Lei 10.666/2003, a Administração Pública identificou anormalidades na concessão do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição da parte autora (NB 42/158.226.968-5), em razão da não comprovação do exercício de atividade para os "períodos de 06/76 a 09/76, 04/80 a 06/80, 08/93 a 10/93 e de 01/05 a 03/05 e de atividades passíveis de conversão como categoria profissional ou de exposição a agentes agressivos para os períodos de trabalho na empresa "Erete Construções Elétricas", além de incompatibilidades de vínculos lançados no sistema em face das anotações na CTPS.
A auditoria foi deflagrada por meio da Portaria n. 59/AUDGER/INSS/2011 e conduzida pelo Grupo de trabalho constituído pela Portaria INSS - GEXSP-CENTRO/PT N. 175/2012, a partir de denúncia de concessões irregulares por servidores da APSSP de Vila Prudente.
Em razão das circunstâncias que ocasionaram a auditagem do benefício previdenciário, aliado ao fato de que o autor sequer empenhou-se para espancar de vez as dúvidas que pairaram sobre o deferimento do benefício, sobretudo com o esclarecimento de rasuras em sua CTPS e a demonstração do labor em condições insalutíferas via formulários, não se vislumbram elementos que possam caracterizar o recebimento dos valores de boa-fé.
No processo administrativo, foi constatado que a concessão do benefício previdenciário ao autor foi realizada mediante fraude, uma vez que: o "enquadramento realizado não está amparado por formulário, houve inserção de recolhimentos indevidos por meio de artifício fraudulento descrito pela auditoria e cômputo de períodos fundados em CTPS com rasuras. Ante o exposto, imputa-se a irregularidade do ato face a não confirmação de autenticidade dos formulários de atividade exercida em condições especiais e inviabilidade da conversão por categoria profissional, reduzindo o tempo de contribuição a ser computado para 32 ANOS 2 MESES 18 DIAS, insuficiente para a concessão na data do requerimento, inclusive na modalidade proporcional ..." (ID 284604535 - Pág. 130).
Nesse contexto, sopesados os pontos destacados, entendo que na apuração administrativa ficou demonstrada a ocorrência do padrão de fraude investigada.
Quanto à necessidade de devolução dos valores, à luz do Código Civil (art. 876), percebe pagamento indevido todo "aquele que recebeu o que não era devido" e, por consequência, "fica obrigado a restituir".
Ademais, deve ser levado em consideração o princípio geral do direito, positivado como regra no atual Código Civil, consistente na proibição do enriquecimento ilícito ou sem causa.
É o que textualmente estabelece o artigo 884 do Código Civil:
"Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido."
Na seara do direito previdenciário, a possibilidade de cobrança imediata dos valores pagos indevidamente, mediante descontos no valor do benefício, está prevista no artigo 115, II, da Lei n. 8.213/1991.
Assim, ao estabelecer hipóteses de desconto sobre o valor do benefício, o próprio legislador reconheceu que as prestações previdenciárias, embora tenham a natureza de verbas alimentares, são repetíveis em quaisquer circunstâncias.
Nesse sentido: TRF 3ª Região, NONA TURMA, Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1028622 - 0021597-06.2005.4.03.9999, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MARISA SANTOS, julgado em 24/05/2010, e-DJF3 Judicial 1 DATA:08/07/2010 PÁGINA: 1303; TRF 3ª Região, SÉTIMA TURMA, Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1627788 - 0016651-78.2011.4.03.9999, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS, julgado em 02/10/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA: 16/10/2017.
A propósito, especificamente sobre devolução de valores recebidos em razão de erro da Administração, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de recurso repetitivo (Tema 979), julgado em 10/3/2021, DJe 23/4/2021, assim deliberou sobre a matéria:
“Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis os valores, sendo legítimo o seu desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) do valor do benefício mensal, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.”
Desse julgamento é possível extrair as seguintes conclusões: (i) o pagamento indevido decorrente de interpretação errônea ou má aplicação da lei pela Administração Previdenciária não é suscetível de repetição; (ii) o pagamento indevido decorrente de erro material ou operacional da Administração Previdenciária é repetível, salvo se o segurado demonstrar que não lhe era possível constatar o erro (boa-fé objetiva); (iii) a hipótese de repetição em razão de erro da Administração Previdenciária atinge somente os processos distribuídos desde 23/4/2021 (modulação dos efeitos); e (iv) admitida a repetição, é permitido o desconto do percentual de até 30% do valor mensal do benefício do segurado.
Sobre a boa-fé objetiva, nos dizeres da Ministra Nancy Andrighi, “esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (STJ, REsp n. 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007).
Por sua vez, a boa-fé subjetiva está relacionada a intenção do agente, contrapondo-se à má-fé (pressuposto do ilícito civil), a qual não se presume e deve ser demonstrada.
Ainda que o beneficiário também tenha sido vítima de fraude, beneficiou-se da conduta supostamente criminosa cometida por servidor público lotado nos quadros da autarquia previdenciária, de modo que permanece seu dever de ressarcir o Erário, sem prejuízo do exercício de direito de regresso contra o agente que lhe causou o dano.
Enfim, cabe frisar o fato de que este caso não se confunde com o erro administrativo tratado no Tema n. 979 do STJ.
Vale dizer: não houve erro operacional da Administração, senão a prática de ato viciado, em virtude do emprego de meios artificiosos, de modo que não há como eximir o beneficiário de restituir os valores indevidamente recebidos e apurados administrativamente.
Incide na espécie, portanto, a regra da repetibilidade dos valores indevidamente recebidos (artigos 115, II, da Lei n. 8.213/1991, e 154, § 3º, do Decreto n. 3.048/1999), a qual prescinde da aferição da presença ou não de boa-fé objetiva da beneficiária ou da natureza alimentar do benefício.
Nas circunstâncias dos autos, a devolução é imperativa.
Em decorrência, impõe-se a manutenção da sentença.
Fica mantida a condenação da parte autora a pagar custas processuais e honorários de advogado, arbitrados em 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º e 11, do CPC, suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
Diante do exposto, nego provimento à apelação.
É o voto.
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. RESTABELECIMENTO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. IRREGULARIDADES NA CTPS. ATIVIDADE ESPECIAL NÃO COMPROVADA. DEVOLUÇÃO DE VALORES. FRAUDE.
- A Administração Pública goza de prerrogativas, dentre as quais o controle administrativo, sendo dado rever os atos de seus próprios órgãos, anulando aqueles eivados de ilegalidade, bem como revogando os atos cuja conveniência e oportunidade não mais subsistam.
- Demonstrada a irregularidade na obtenção do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, que teve por base condição laboral que efetivamente não ocorreu, devida é a restituição dos valores indevidamente recebidos.
- Por envolver fraude perpetrada contra a Administração, matéria que não se confunde com o erro administrativo tratado no Tema n. 979 do STJ, não há como eximir o beneficiário de restituir os valores indevidamente recebidos e apurados administrativamente.
- Incide na espécie a regra da repetibilidade dos valores indevidamente recebidos (artigos 115, II, da Lei n. 8.213/1991, e 154, § 3º, do Decreto n. 3.048/1999), cuja aplicação prescinde da aferição da presença ou não de boa-fé da parte beneficiária ou da natureza alimentar do benefício.
- Mantida a condenação da parte autora a pagar custas processuais e honorários de advogado, arbitrados em 12% (doze por cento) sobre o valor atualizado da causa, já majorados em razão da fase recursal, conforme critérios do artigo 85, §§ 1º e 11, do CPC, suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo estatuto processual, por tratar-se de beneficiária da justiça gratuita.
- Apelação da parte autora desprovida.
