
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5005606-46.2022.4.03.6332
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: ROBERTA DE JESUS SANTOS, INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
REPRESENTANTE: MANOEL MESSIAS CASTOR DOS SANTOS
Advogados do(a) APELANTE: MARCELA MENEZES BARROS - SP260479-A,
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, ROBERTA DE JESUS SANTOS
REPRESENTANTE: MANOEL MESSIAS CASTOR DOS SANTOS
Advogados do(a) APELADO: MARCELA MENEZES BARROS - SP260479-A,
OUTROS PARTICIPANTES:
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5005606-46.2022.4.03.6332
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: ROBERTA DE JESUS SANTOS, INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
REPRESENTANTE: MANOEL MESSIAS CASTOR DOS SANTOS
Advogados do(a) APELANTE: MARCELA MENEZES BARROS - SP260479-A,
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, ROBERTA DE JESUS SANTOS
REPRESENTANTE: MANOEL MESSIAS CASTOR DOS SANTOS
Advogados do(a) APELADO: MARCELA MENEZES BARROS - SP260479-A,
R E L A T Ó R I O
Cuida-se de apelações interpostas pelas partes em face da sentença, integrada por embargos de declaração, que julgou: (i) procedente o pedido de restabelecimento do benefício assistencial NB 702.243.582-1, desde a cessação em 1/1/2022, (ii) procedente o pedido de declaração de inexigibilidade dos valores cobrados a título do referido benefício assistencial, (iii) improcedente o pedido de indenização por danos morais. Ademais, condenou ambas as partes ao pagamento dos honorários advocatícios, em razão da sucumbência recíproca e antecipou os efeitos da tutela.
Nas razões recursais, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) alega a ausência da miserabilidade, a impor a reforma do julgado. Impugna, ainda, o termo inicial, a correção monetária, os juros de mora e os honorários de advogado.
Por sua vez, o autor requer a condenação do INSS ao pagamento de indenização por danos morais.
Com contrarrazões ao recurso autárquico, os autos subiram a esta Corte.
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo desprovimento dos recursos.
É o relatório.
DECLARAÇÃO DE VOTO
O Exmo. Desembargador Federal Gilberto Jordan:
Trata-se de apelação em ação ajuizada em face do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, objetivando a concessão de benefício assistencial, previsto no art. 203, V, da Constituição Federal.
A e. Relatora proferiu voto em que deu provimento à apelação do INSS e julgou prejudicada a apelação da parte autora, reformando a sentença de procedência do pedido de restabelecimento do benefício assistencial formulado na exordial. Revoga a tutela.
Com a máxima vênia, divirjo da e. Relatora no tocante à possibilidade de restabelecimento do benefício assistencial vindicado, dada a presença dos requisitos legais.
DO CASO DOS AUTOS
Trata-se de pedido de restabelecimento de benefício assistencial concedido à pessoa com deficiência em 03/12/2015 e cessado em 01/12/2021, após o INSS concluir revisão administrativa considerando renda do grupo familiar acima do limite legal permitido.
Foi proferida sentença de parcial procedência do pedido, sendo declarado o direito ao restabelecimento do benefício, a inexigibilidade do débito de R$ 70.526,91 (atualizado para dezembro/2021) e negado somente o pedido de indenização por danos morais, no valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais).
As partes apelaram.
A parte autora requer a reforma parcial da sentença, apenas no que se refere ao pedido de condenação por danos morais, afirmando ser a indenização devida à Autora.
O recurso autárquico cinge-se à impossibilidade de restabelecimento do benefício assistencial, alegando ausente a miserabilidade necessária, de modo que a declaração da inexigibilidade do débito não é objeto recursal e fica mantida nos termos da sentença.
Acerca da miserabilidade, a falta de condições da requerente de prover o seu sustento, ou de tê-lo provido pela família, restou demonstrada no curso do processo.
De fato, o estudo social (Id. 294922035), de 20/09/2022, indica que o núcleo familiar é composto pela Autora, diagnosticada com autismo e retardo mental, e seus pais idosos, Naise (70 anos|) e Manoel (72 anos).
A moradia está assim descrita no laudo: “A residência é própria. O padrão da residência é muito simples; Nº de Cômodos: 03; Infraestrutura do local: No local da moradia as ruas são pavimentadas, têm guias, o bairro tem rede de esgoto, tem energia elétrica e tem fornecimento de água, tem linhas de ônibus para vários bairros da cidade. Estado da Casa: possui regular estado de conservação. Estado dos Móveis: regular estado de conservação. Cômodos da casa: uma cozinha, um banheiro, dois quartos. Estado e móveis da casa: Uma cama de casal, uma beliche, um armário, um sofá, em regulares condições. Estado e eletrodomésticos: Tem um fogão, uma geladeira, micro-ondas, televisão, em regular estado de conservação. Habitabilidade: A moradia possui regulares condições de habitabilidade”. Há imagens fotográficas anexadas ao estudo.
Ao tempo da cessação do benefício (11/2021), a renda familiar advinha exclusivamente do benefício previdenciário do genitor da Autora, no valor R$1.146,09, ligeiramente acima ao do salário-mínimo da época (R$ 1.100,00).
Embora o INSS tenha considerado existência de renda da genitora da Autora nessa ocasião, a prova dos autos é no sentido de que a Sra. Naise realizava contribuição como facultativa, portanto, nos termos do art. 13 da Lei 8.213/91, é pessoa sem remuneração, eis que o segurado facultativo é “o maior de 14 (quatorze) anos que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social, mediante contribuição, desde que não incluído nas disposições do art. 11”.
Destarte, ao tempo da cessação, a renda per capita era de R$ 382,03, portanto, inferior ao meio salário-mínimo da época, que correspondia a R$ 550,00, de modo que indevida a cessação do benefício em 01/12/2021.
A renda do grupo familiar sofreu alteração somente em 09/05/2023, data de início do benefício de aposentadoria por idade de um salário-mínimo que a Sra. Naise passou a receber.
Contudo, essa renda não será considerada no cálculo do benefício assistencial da Autora, conforme Tema Repetitivo 640, no qual o C. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1355052, sob a sistemática do art. 543-C do CPC/1973 (artigo 1.036 do CPC/2015), assentou que não se computa o valor de um salário-mínimo percebido por idoso a título de benefício assistencial ou previdenciário para aferição de hipossuficiência de núcleo familiar.
Assim, após a aposentadoria de um salário-mínimo da genitora, já observado o Tema 640 do STJ, a renda per capita passou a ser R$ 668,69, época em que meio salário-mínimo correspondia a R$ 660,00, portanto, apenas R$ 8,69 excedentes.
Não obstante, tal valor é deduzido do cálculo, pois foram apresentadas provas de gastos que comprometem a suficiência da renda auferida com serviços, exames ou medicamentos não disponibilizados gratuitamente pelo SUS, comprovadamente necessários à preservação da sua saúde e sua vida, nos termos do inciso III do art. 20-B da Lei de Assistência Social.
A Portaria Conjunta/MC/MTP/INSS nº 14, de 07 de outubro de 2021, atualizada em 2022, deduz do valor da renda auferida pelo grupo familiar o valor de R$ 45,00 gastos com medicamentos, de R$ 90,00 gastos com consultas e tratamentos médicos, de R$ 99,00 gastos com fraldas e de R$ 121,00 gastos com alimentação especial.
Por fim, constata-se que, a partir de 2024, a renda do genitor da Autora corresponde ao exato valor do salário-mínimo vigente, R$ 1.412,00.
Assim sendo, aplicando o Tema Repetitivo 640 do STJ ao caso, tendo em vista ser o núcleo familiar composto por apenas dois integrantes para o cálculo, dependendo da renda acima disposta e diante das demais informações constantes do estudo social, constata-se que a Autora está submetida a risco social, sendo devido o restabelecimento desde a data da cessação, nos termos da sentença.
Ressalto que o benefício assistencial deve ser revisto a cada 2 (dois) anos, para a avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem, nos termos do art. 21 da Lei de Assistência, consignando, ainda, que: “(...)§ 5º O beneficiário em gozo de benefício de prestação continuada concedido judicial ou administrativamente poderá ser convocado para avaliação das condições que ensejaram sua concessão ou manutenção, sendo-lhe exigida a presença dos requisitos previstos nesta Lei e no regulamento."
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS
Ante a manutenção do benefício concedido pela sentença, conheço quanto ao mérito do apelo da autoria.
A parte Autora requer o reconhecimento de lesão aos direitos da personalidade da Recorrente para condenar o INSS ao pagamento de danos morais, no valor que sugere não seja inferior a R$ 15.000,00 (quinze mil reais).
Consoante apurado, após o INSS constatar renda nos registros previdenciários do grupo familiar da Autora que, em tese, superariam o limite legal, em 01/12/2021, após dada a devida oportunidade de manifestação, o benefício foi cessado.
Assim, nota-se que a Autarquia agiu consoante regramento competente, não havendo que se falar em uso indevido da autotutela.
Com efeito, não se observa conduta do INSS apta a justificar sua condenação ao pagamento de indenização por dano moral. Além disso, não restou demonstrado o alegado constrangimento e o prejuízo moral sofrido pela parte autora. Nesse sentido:
"PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO LEGAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. SUSPENSÃO DO BENEFÍCIO. DANOS MORAIS INDEVIDOS. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. REDISCUSSÃO DE MATÉRIA JÁ DECIDIDA.
- O artigo 557 do Código de Processo Civil consagra a possibilidade de o recurso ser julgado pelo respectivo Relator.
- As dificuldades financeiras passadas pela autora não podem ser imputadas ao INSS, que indeferiu a continuidade do benefício à luz das conclusões da perícia, realizada por servidor público médico, dentro dos padrões da legalidade.
- A mera contrariedade acarretada pela decisão administrativa, de negar benefícios previdenciários, não pode ser alçada à categoria de dano moral, já que não patenteada a conduta de má-fé do instituto réu, encarregado de zelar pelo dinheiro público.
- Segundo entendimento firmado nesta Corte, a decisão do Relator não deve ser alterada quando fundamentada e nela não se vislumbrar ilegalidade ou abuso de poder que resulte em dano irreparável ou de difícil reparação para a parte.
- A decisão agravada abordou todas as questões suscitadas e orientou-se pelo entendimento jurisprudencial dominante. Pretende o agravante, em sede de agravo, rediscutir argumentos já enfrentados pela decisão recorrida.
- Agravo desprovido. Decisão mantida."
(TRF 3ª Região, NONA TURMA, AC 0003358-29.2010.4.03.6102, Rel. JUIZ CONVOCADO RODRIGO ZACHARIAS, julgado em 27/01/2014, e-DJF3 Judicial 1 DATA:05/02/2014)
"PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. AGRAVO LEGAL. DANO S MORAIS . INCABÍVEL. AGRAVO IMPROVIDO.
1 - A decisão agravada está em consonância com o disposto no artigo 557 do Código de Processo Civil, visto que supedaneada em jurisprudência consolidada do Colendo Superior Tribunal de Justiça e desta Corte.
2 - Não merece prosperar o pedido de pagamento de indenização por danos morais, pois a autora não logrou êxito em demonstrar a existência do dano, nem a conduta lesiva do INSS e, muito menos, o nexo de causalidade entre elas. O fato de a autarquia ter indeferido o requerimento administrativo da aposentadoria por invalidez ou auxílio-doença, por si só, não gera o dano moral, mormente quando o indeferimento é realizado em razão de entendimento no sentido de não terem sido preenchidos os requisitos necessários para a concessão do benefício, sob a ótica autárquica.
3 - As razões recursais não contrapõem tal fundamento a ponto de demonstrar o desacerto do decisum, limitando-se a reproduzir argumento visando à rediscussão da matéria nele contida.
4 - Agravo improvido."
(TRF 3ª Região, SÉTIMA TURMA, AC 0002807-79.2011.4.03.6113, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL TORU YAMAMOTO, julgado em 20/10/2014, e-DJF3 Judicial 1 DATA:28/10/2014)
Desse modo, indevido o pedido de indenização por danos morais.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
Mantidos os honorários nos termos fixados em sentença.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, com a devida vênia à e. relatora, nego provimento ao apelo do INSS e em conhecer e negar provimento à apelação da parte autora.
É o voto.
9ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5005606-46.2022.4.03.6332
RELATOR: Gab. 31 - DES. FED. DALDICE SANTANA
APELANTE: ROBERTA DE JESUS SANTOS, INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
REPRESENTANTE: MANOEL MESSIAS CASTOR DOS SANTOS
Advogados do(a) APELANTE: MARCELA MENEZES BARROS - SP260479-A,
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, ROBERTA DE JESUS SANTOS
REPRESENTANTE: MANOEL MESSIAS CASTOR DOS SANTOS
Advogados do(a) APELADO: MARCELA MENEZES BARROS - SP260479-A,
V O T O
Os recursos atendem aos pressupostos de admissibilidade e merecem ser conhecidos.
Discute-se nos autos o direito da parte autora a benefício assistencial de prestação continuada previsto no artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, regulamentado, atualmente, pelos Decretos n. 6.214/2007 e 7.617/2011.
Essa lei conferiu eficácia ao inciso V do artigo 203 da Constituição Federal (CF/1988) ao estabelecer as condições para a concessão do benefício da assistência social, a saber: ser o postulante portador de deficiência ou idoso e, em ambas as hipóteses, comprovar a situação de miserabilidade ou hipossuficiência, ou seja, não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
DA HIPOSSUFICIÊNCIA OU MISERABILIDADE
A respeito do requisito objetivo, o tema foi levado à apreciação do Pretório Excelso por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), movida pelo Procurador Geral da República, na qual, em meio à análise de outros temas, decidiu-se que o benefício de que trata o artigo 203, inciso V, da CF/1988 pode ser exigido somente a partir da edição da Lei n. 8.742/1993.
Trata-se da ADIN n. 1.232-2, de 27/8/1998, publicada no DJU de 1º/6/2001, de relatoria do Ministro Maurício Correa (RTJ 154/818), na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) reputou constitucional a restrição contida no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993.
Posteriormente, em controle difuso de constitucionalidade, o STF manteve aquele entendimento (vide RE n. 213.736-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Informativo STF n. 179; RE 256.594-6, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 28/4/2000, Informativo STF n. 186; RE n. 280.663-3, São Paulo, j. 6/9/2001, Rel. Min. Maurício Corrêa).
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em vários precedentes, considerou que a presunção objetiva absoluta de miserabilidade, da qual fala a lei, não afasta a possibilidade de comprovação da condição de miserabilidade por outros meios de prova (REsp n. 435.871, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 19/9/2002, DJ 21/10/2002, p. 61;REsp n. 222.764, STJ, 5ªT,, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 13/2/2001, DJ 12/3/2001, p. 512; REsp n. 223.603/SP, STJ, 5ª T., Rel. Min. Edson Vidigal, DJU 21/2/2000, p. 163).
Recentemente, o STF reviu seu posicionamento e, em sede de repercussão geral, reconheceu que o requisito do artigo 20, §3º, da Lei n. 8.742/1993 não pode ser considerado taxativo (RE n. 580963, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n. 225, 14/11/2013).
No mesmo julgamento, ao examinar, incidenter tantum, a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), o Plenário do STF manifestou-se pela “inexistência de justificativa plausível para discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo”.
Referido normativo dispõe expressamente que o valor do benefício assistencial auferido por idoso “não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a LOAS”.
Contudo, diante do entendimento consagrado por ocasião do julgamento do RE n. 580963, abriu-se a possibilidade de exclusão, do cálculo da renda familiar, dos benefícios assistenciais recebidos por idosos e por deficientes e também dos benefícios previdenciários concedidos ao idoso, no valor de até um salário mínimo.
A decisão concluiu, ainda, que a mera interpretação gramatical do preceito, por si só, pode resultar no indeferimento da prestação assistencial em casos nos quais, embora o limite legal de renda per capita seja ultrapassado, evidencia-se um quadro de notória hipossuficiência econômica.
Essa insuficiência da regra decorre não apenas das modificações fáticas (políticas, econômicas e sociais), mas principalmente das alterações legislativas que ocorreram no País desde a edição da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993.
A legislação federal recente, por exemplo, reiterada pela adoção de vários programas assistenciais destinados a famílias carentes, considera pobres aqueles que possuem renda mensal per capita de até meio salário mínimo (nesse sentido, a Lei n. 9.533, de 10/12/1997, regulamentada pelos Decretos n. 2.609/1998 e 2.728/1999, as Portarias n. 458 e 879, de 3/12/2001, da Secretaria da Assistência Social, o Decreto n. 4.102/2002, a Lei n. 10.689/2003, criadora do Programa Nacional de Acesso à Alimentação).
Assim, não há como considerar o critério previsto no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993 como absoluto e único para aferição da situação de miserabilidade, até porque o próprio Estado Brasileiro elegeu outros parâmetros, como os defluentes da legislação acima citada.
Deve-se verificar, na questão in concreto, a ocorrência de situação de pobreza – entendida como a falta de recursos e de acesso ao mínimo existencial –, para se concluir se é devida ou não a prestação pecuniária da assistência social constitucionalmente prevista.
Assim, ao menos desde 14/11/2013 (RE n. 580963), o critério da miserabilidade contido no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 não impede o julgador de levar em conta outros dados, a fim de identificar a situação de vida do idoso ou do deficiente, principalmente quando estiverem presentes peculiaridades, a exemplo de necessidades especiais com medicamentos ou com educação.
Nesse diapasão, podem-se estabelecer alguns parâmetros norteadores da análise individual de cada caso, como, por exemplo: (i) todos os que recebem renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo são miseráveis; (ii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo e inferior a ½ salário mínimo são miseráveis; (iii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ½ salário mínimo deixam de ser miseráveis; (iv) todos os que perceberem renda mensal familiar superior a um salário mínimo (artigo 7º, IV, da CF/1988) não são miseráveis.
Dessa forma, em todos os casos, outras circunstâncias devem ser levadas em conta, mormente se o patrimônio do requerente também se subsome à noção de hipossuficiência, devendo ser apurado se vive em casa própria, com ou sem ar condicionado, se possui veículo, telefones celulares, auxílio permanente de parentes ou de terceiros etc.
Cumpre salientar que o benefício de prestação continuada foi previsto, na impossibilidade de atender a um público maior, para socorrer aos desamparados (artigo 6º, caput, da CF/1988), ou seja, àquelas pessoas que nem sequer teriam possibilidade de equacionar um orçamento doméstico, pelo fato de não terem renda ou de ser essa insignificante.
CONCEITO DE FAMÍLIA
Para apurar se a renda per capita do requerente atinge ou não o âmbito da hipossuficiência, faz-se necessário abordar o conceito de família.
Nesse sentido, o artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 estabelecia, para efeitos de concessão do benefício, os conceitos de família (conjunto de pessoas do artigo 16 da Lei n. 8.213/1991, desde que vivendo sob o mesmo teto - § 1º), de pessoa portadora de deficiência (aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho - § 2º) e de família incapacitada de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa (aquela com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo - § 3º).
A Lei n. 12.435, vigente desde 7/7/2011, alterou os §§ 1º e 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 e estabeleceu que a família, para fins de concessão do benefício assistencial, deve ser aquela composta pelo requerente, pelo cônjuge ou companheiro, pelos pais e, na ausência de um deles, pela madrasta ou pelo padrasto, pelos irmãos solteiros, pelos filhos e enteados solteiros e pelos menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Ao mesmo tempo, o dever de sustento familiar (dos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles) não pode ser substituído pela intervenção Estatal, pois o próprio artigo 203, V, da CF/1988 estabelece que o benefício será devido quando o sustento não puder ser provido pela família. Essa conclusão tem arrimo no princípio da solidariedade social, conformado no artigo 3º, I, do Texto Magno.
Com isso, à guisa de regra mínima de coexistência entre as pessoas em sociedade, a técnica de proteção social prioritária é a família, em cumprimento ao disposto no artigo 229 da CF/1988, que assim estabelece: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
A propósito, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), ao analisar um pedido de uniformização formulado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), fixou a tese de que “o benefício assistencial de prestação continuada pode ser indeferido se ficar demonstrado que os devedores legais podem prestar alimentos civis sem prejuízo de sua manutenção”.
A decisão foi proferida durante sessão realizada em 23/2/2017, em Brasília. Quanto ao mérito, o relator afirmou em seu voto que a interpretação do artigo 20, §1º, da Lei n. 8.742/1993, conforme as normas veiculadas pelos artigos 203, V, 229 e 230, da CF/1988, deve ser a de que “a assistência social estatal não deve afastar a obrigação de prestar alimentos devidos pelos parentes da pessoa em condição de miserabilidade socioeconômica (arts. 1694 e 1697, do Código Civil), em obediência ao princípio da subsidiariedade”.
SUBSIDIARIEDADE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
À vista da preponderância do dever familiar de sustento, hospedado no artigo 229 da CF/1988, a Assistência Social, tal como regulada na Lei n. 8.742/1993, terá caráter subsidiário em relação às demais técnicas de proteção social (previdência social, previdência privada, caridade, família, poupança etc.), considerada a gratuidade de suas prestações.
Com efeito, levando-se em conta o alto custo do pretendido “Estado de bem-estar social”, forjado no Brasil pela Constituição Federal quando a grande maioria dos países europeus já havia reconhecido sua inviabilidade financeira, é lícito inferir que ela só deve ser prestada em casos de real necessidade, sob pena de comprometer – dada a crescente dificuldade de custeio – a proteção social da coletividade, não apenas das futuras gerações, mas também da atual.
De fato, o benefício previsto no artigo 203, V, da CF/1988 tem o valor de 1 (um) salário mínimo, ou seja, a mesma quantia paga a milhões de brasileiros que se aposentaram no Regime Geral de Previdência Social mediante o pagamento de contribuições, durante vários anos.
Destarte, a assistência social deve ser fornecida com critério, pois, de outro modo, serão gerados privilégios e desigualdades, em oposição à própria natureza dos direitos sociais, que é a de propiciar igualdade e isonomia de condições a todos, observados os fins sociais (não individuais) da norma, à luz do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Diga-se, de passagem, que a concessão indiscriminada do benefício assistencial, mediante interpretação extensiva ou ampliativa dos requisitos constitucionais, geraria não apenas injustiça aos contribuintes da previdência social, mas incentivo para que esses deixem de contribuir, ou mesmo não se filiem ou não contribuam para a Seguridade Social, o que constituiria situação anômala e gravíssima do ponto de vista atuarial, apta a comprometer o custeio de todo o sistema.
É pertinente rememorar, in casu, o ensinamento do professor de direito previdenciário Wagner Balera a respeito da dimensão do princípio da subsidiariedade:
“O Estado é, sobretudo, o guardião dos direitos e garantias dos indivíduos. Cumpre-lhe, assinala Leão XIII, agir em favor dos fracos e dos indigentes exigindo que sejam por todos respeitados os direitos dos pequenos. Mas, segundo o princípio da subsidiariedade - que é noção fundamental para a compreensão do conteúdo da doutrina social cristã – o Estado não deve sobrepor-se aos indivíduos e aos grupos sociais na condução do interesse coletivo. Há de se configurar uma permanente simbiose entre o Estado e a sociedade, de tal sorte que ao primeiro não cabe destruir, nem muito menos exaurir a dinâmica da vida social I (é o magistério de Pio XI, na Encíclica comemorativa dos quarenta anos da 'RerumNovarum', a 'Quadragésimo Anno', pontos 79-80).” (Centenárias Situações e Novidade da 'RerumNovarum', p. 545).
Por fim, quanto a esse tópico, é lícito concluir que quem está coberto pela previdência social está, em regra, fora da abrangência da assistência social. Nesse sentido, prelecionou Celso Bastos:
“A Assistência Social tem como propósito satisfazer as necessidades de pessoas que não podem gozar dos benefícios previdenciários, mas o faz de uma maneira comedida, para não incentivar seus assistidos à ociosidade. Concluímos, portanto, que os beneficiários da previdência social estão automaticamente excluídos da assistência social. O benefício da assistência social, frise-se, não pode ser cumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o de assistência médica.” (Celso Bastos e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, 8o Vol., Saraiva, 2000, p. 429).
IDOSOS E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Na hipótese de postulante pessoa idosa, a idade mínima de 70 (setenta) anos foi reduzida para 67 (sessenta e sete) anos pela Lei n. 9.720/1998, a partir de 1º de janeiro de 1998, e, mais recentemente, para 65 (sessenta e cinco) anos, com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), atualmente denominado Estatuto da Pessoa Idosa (Lei n. 10.741/2022).
No que se refere ao conceito de pessoa com deficiência - previsto no § 2º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993, com a redação dada pela Lei n. 13.146/2015, passou a ser considerada aquela com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, possam obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Assim, ratificou-se o entendimento consolidado nesta Corte de que o rol previsto no art. 4º do Decreto n. 3.298/1999 (regulamentador da Lei n. 7.853/1989, que dispõe sobre a Política Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência) não era exaustivo. Constatado, portanto, que os males sofridos pelo postulante impedem sua inserção social, restará preenchido um dos requisitos exigidos para a percepção do benefício.
Menciona-se também o conceito apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU), elaborado por meio da Resolução n. 3.447 (XXX): “1. O termo ‘pessoa deficiente’ refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais”.
Esse conceito dá maior ênfase à necessidade, inclusive da vida individual, ao passo que o conceito proposto por Luiz Alberto David Araujo prioriza a questão da integração social, como se verá.
Nair Lemos Gonçalves apresentou os principais requisitos para sua definição: “desvio acentuado dos mencionados padrões médios e sua relação com o desenvolvimento físico, mental, sensorial ou emocional, considerados esses aspectos do desenvolvimento separada, combinada ou globalmente” (Verbete Excepcionais. In: Enciclopédia Saraiva de Direito, n. XXXIV. São Paulo: Saraiva, 1999).
Luiz Alberto David Araujo, por sua vez, compilou muitos significados da palavra “deficiente”, extraídos dos dicionários de Língua Portuguesa. Observa ele que, geralmente, os dicionários trazem a ideia de que a pessoa deficiente sofre de falta, de carência ou de falha.
Esse autor critica essas noções porque a ideia de deficiência não se apresenta tão simples, à medida em que as noções de falta, de carência ou de falha não abrangem todas as situações de deficiência, como, por exemplo, o caso dos superdotados, ou o de um portador do vírus HIV que consiga levar a vida normalmente, sem manifestação da doença, ou ainda o de um trabalhador intelectual que tenha um dedo amputado.
Por serem as noções de falta, de carência ou de falha insuficientes à caracterização da deficiência, Luiz Alberto David Araujo propõe um norte mais seguro para a identificação da pessoa protegida, cujo fator determinante do enquadramento ou não no conceito de pessoa com deficiência seja o meio social:
“O indivíduo portador de deficiência, quer por falta, quer por excesso sensorial ou motor, deve apresentar dificuldades para seu relacionamento social. O que define a pessoa portadora de deficiência não é falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade para a sua integração social é o que definirá quem é ou não portador de deficiência.” (A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 18-22)
Assim, quanto mais complexo o meio social, maior rigor se exigirá da pessoa com deficiência para sua adaptação social. De outra parte, na vida em comunidades mais simples, como nos meios agrícolas, a pessoa com deficiência poderá integrar-se com mais facilidade.
Desse modo, o conceito de Luiz Alberto David Araujo é adequado e de acordo com a norma constitucional, motivo pelo qual é possível seu acolhimento para a caracterização desse grupo de pessoas protegidas nas várias situações reguladas pela CF/1988, nos artigos 7º, XXXI, 23, II, 24, XIV, 37, VIII, 203, V e 208, III.
Mas é preciso delimitar a proteção constitucional apenas àquelas pessoas que realmente dela necessitam, porquanto existem graus de deficiência que apresentam menores dificuldades de adaptação à pessoa. E essa verificação somente poderá ser feita diante de um caso concreto.
Luiz Alberto David Araujo salienta que os casos-limite podem, desde logo, ser excluídos, como o exemplo do bibliotecário que perde um dedo ou do operário que perde um artelho; em ambos os casos, as pessoas continuam integradas socialmente. Em outro exemplo, pequenas manifestações de retardo mental (deficiência mental leve) podem passar despercebidas em comunidades simples, pois essa pessoa poderá “não encontrar problemas de adaptação a sua realidade social (escola, trabalho, família)”, de maneira que não se pode afirmar que ela deverá receber proteção, “tal como aquele que sofre restrições sérias em seu meio social” (obra citada, p. 42-43). E continua:
“A questão, assim, não se resolve sob o ângulo da deficiência, mas, sim sob o prisma da integração social. Há pessoas portadoras de deficiência que não encontram qualquer problema de adaptação no meio social. Dentro de uma comunidade de doentes, isolados por qualquer motivo, a pessoa portadora de deficiência não encontra qualquer outro problema de integração, pois todos têm o mesmo tipo de dificuldade” (obra citada, p. 43).
Enfim, a constatação da existência de graus de deficiência é de fundamental importância para identificar aqueles que receberão a proteção social prevista no artigo 203, V, da CF/1988.
Feitas essas considerações, torna-se possível inferir que não será qualquer pessoa com deficiência que se subsumirá no molde jurídico protetor da Assistência Social.
Noutro passo, o conceito de pessoa com deficiência, para fins de concessão do benefício de amparo social, foi tipificado no artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, que em sua redação original assim dispunha:
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.”
Como se vê, pressupunha-se que o deficiente era aquele que: (i) tinha necessidade de trabalhar, mas não podia, em razão da deficiência; (ii) estava também incapacitado para a vida independente. Assim, o benefício era devido a quem deveria trabalhar, mas não poderia e, além disso, não tinha capacidade para a vida independente sem a ajuda de terceiros.
É lícito concluir que, tal como os benefícios previdenciários, o benefício de amparo social, enquanto vigente a redação original do artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, era substitutivo do salário. Isto é, era reservado aos que tinham a possibilidade jurídica de trabalhar, mas não tinham a possibilidade física ou mental para tanto.
A redação original do artigo 20, § 2º, da LOAS, contudo, foi alterada pelo Congresso Nacional, exatamente porque sua dicção gerava um sem número de controvérsias interpretativas na jurisprudência, sobrevindo a Lei n. 12.435/2011, alterando o teor do dispositivo, que passou a vigorar com a seguinte redação:
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se:
I - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas;
II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”
Com a novel legislação, o benefício continuou sendo destinado àqueles deficientes que: (i) tinham necessidade de trabalhar, mas não podiam, por conta de limitações físicas ou mentais; (ii) estavam também incapacitados para a vida independente.
Todavia, o legislador, não satisfeito, mais uma vez alterou o conceito de pessoa com deficiência, introduzindo, pela Lei n. 12.470/2011, modificações no artigo 20, da Lei n. 8.742/1993:
“Art. 20 (...)
“§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
(...)
“§ 10 Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.”
Nota-se que, com o advento dessa lei, dispensou-se a menção à incapacidade para o trabalho ou à incapacidade para a vida independente como requisito à concessão do benefício assistencial.
Finalmente, a Lei n. 13.146/2015, que “institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência”, com início de vigência em 02/01/2016, novamente alterou a redação do artigo 20, § 2º, da LOAS:
“§ 2º Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
Reafirma-se, assim, que o foco, doravante, para fins de identificação da pessoa com deficiência, passa a ser a existência de impedimentos de longo prazo (que produza efeitos pelo prazo mínimo de dois anos), apenas e tão somente, tornando-se despicienda a referência à necessidade de trabalho.
RESERVA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
O benefício assistencial de prestação continuada não pode ser postulado como substituto de aposentadoria por invalidez, atualmente denominada aposentadoria por incapacidade permanente (Emenda Constitucional n. 103/2019).
Muitos casos de incapacidade temporária ou mesmo permanente para o trabalho devem ser tutelados exclusivamente pelo seguro social (artigo 201, da CF/1988).
Afinal, a cobertura dos eventos (riscos sociais) incapacidade temporária ou permanente para o trabalho depende do pagamento de contribuições, na forma dos artigos 201, caput e inciso I, da CF/1988, abaixo transcrito:
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: I - cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; (...)”.
Como se vê, a pretendida ampliação do espectro da norma do artigo 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993 encontra óbice na própria Constituição da República, segundo a qual caberá à Previdência Social a cobertura dos eventos de incapacidade para o trabalho.
CASO CONCRETO
De acordo com a perícia médica judicial, a autora está total e permanentemente incapacitado para o trabalho, em razão de quadro de retardo mental moderado, desde o nascimento.
Nesse passo, ela se enquadra no conceito de deficiente trazido pela redação do artigo 20, §§ 2º e 10, da Lei n. 8.742/1993.
No tocante à condição socioeconômica, o estudo social, datado de 13/12/2022, trouxe as seguintes informações:
(i) o núcleo familiar é composto pela autora, sua mãe (Naíse Rosa de Jesus Santos, nascida em 23/6/1954) e seu pai (Manoel Messias Castro dos Santos, nascido em 28/10/1951);
(ii) a família reside em imóvel próprio. A casa é composta por uma cozinha, dois quartos e um banheiro. A moradia é guarnecida com mobília e utensílios básicos em regular estado de conservação. A casa é provida de pavimentação, guias e sarjetas, iluminação pública, rede de saneamento básico, fornecimento de energia elétrica;
(iii) a renda mensal familiar decorre da aposentadoria do genitor da autora, no valor de um salário mínimo;
(iv) as despesas mensais apontadas totalizam R$ 858,00 e se referem a gastos com alimentação (R$ 500,00), luz (R$ 27,00), água (R$ 19,00), gás de cozinha (R$ 110,00), remédio (R$ 150,00), internet (R$ 52,00).
Não obstante a descrição do estudo socioeconômico, os demais elementos de prova dos autos infirmam a alegação de vulnerabilidade social.
Os dados do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) do genitor da autora revelam o recebimento de aposentadoria por idade desde 28/12/2016, com rendimento mensal de R$ 1.262,53 (competência de setembro de 2022).
Efetivamente, os autos revelam haver razoáveis condições de moradia e de sobrevivência, pois a autora reside em imóvel que não gera despesas com aluguel, abastecido pelos serviços de água encanada, esgoto de energia elétrica. Conta, ainda, com mobília, utensílios e eletrodomésticos basilares, e suficientes ao conforto da família.
Além disso, as despesas declaradas são inferiores aos rendimentos informados e a família ainda arca com os custos de medicamentos não fornecidos pelo sistema público de saúde, situação incompatível com a alegação de miserabilidade.
Diante desse contexto, ainda que se reconheça a existência de dificuldades enfrentadas, a situação do autor não é de vulnerabilidade social.
Ressalte-se que o já mencionado artigo 203, V, da CF/1988 é claro ao estabelecer que, para fins de concessão do benefício assistencial, a responsabilidade do Estado é subsidiária.
Vale dizer: o benefício somente deve ser concedido àqueles que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Não se destina à complementação de renda familiar.
Nesse sentido, reporto-me ao seguinte julgado (g. n.):
“CONSTITUCIONAL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA - ART. 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. I - O Supremo Tribunal Federal, no RE n. 567.985, reconheceu a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art.20, §3º, da Lei nº 8.742/93, e do art. 34, par. único, da Lei nº 10.741/2003. II - a autora contava com 68 (sessenta e oito) anos, na data do requerimento administrativo, tendo por isso a condição de idosa. III - Os elementos de prova existentes nos autos apontam em sentido contrário à alegada miserabilidade da autora. V - Na época do estudo social, as despesas giravam em torno de R$ 1.300,00, consistindo em alimentação, água, energia elétrica, farmácia e gás; ou seja, as despesas eram inferiores às receitas. VI - A autora não vive em situação de risco social ou vulnerabilidade social, não podendo o benefício assistencial ser utilizado para fins de complementação de renda. VII - O benefício assistencial não tem por fim a complementação da renda familiar ou proporcionar maior conforto ao beneficiário, mas sim, destina-se ao idoso ou deficiente em estado de penúria, que comprove os requisitos legais, sob pena de ser concedido indiscriminadamente em prejuízo daqueles que realmente necessitam, na forma da lei. VIII - Apelação improvida.” (TRF 3ª Região - AC n. 5562391-33.2019.4.03.9999 - 9ª Turma - Rel. Des. Fed. Marisa Santos - 05/11/2019, e-DJF3 Judicial 1, Data: 07/11/2019)
Assim, embora o pretendido benefício pudesse melhorar o padrão de vida do postulante, o sistema de assistência social foi concebido para auxiliar pessoas em situação de penúria (incapazes de sobrevivência sem a ação do Estado), e não para incremento de padrão de vida.
Desse modo, ausente o requisito da miserabilidade, não é possível a concessão do benefício pretendido.
Ausentes os requisitos legais para a concessão do benefício pleiteado, inviável, ipso facto, cogitar-se de indenização por danos morais.
Por fim, como o recurso autárquico se restringe à ausência dos requisitos necessários para o restabelecimento do benefício assistencial, resta mantida a declaração da inexigibilidade do débito correspondente aos valores recebidos indevidamente (NB 87/702.243.582-1).
Em virtude de sucumbência recíproca e da vedação à compensação (art. 85, § 14, da Lei n. 13.105/2015), os honorários advocatícios, arbitrados em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, serão distribuídos entre os litigantes (art. 86 do CPC) na proporção de 30% (trinta por cento) em desfavor do INSS e 70% (setenta por cento) em desfavor da parte autora, ficando, porém, em relação a esta, suspensa a exigibilidade, por tratar-se de beneficiária da justiça gratuita (art. 98, § 3º, do CPC).
Diante do exposto, dou provimento à apelação para julgar improcedente o pedido e revogo a tutela jurídica provisória, consoante Tema Repetitivo n. 692 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), prejudicada a apelação da autora.
Informe-se ao INSS, via sistema, para fins de revogação da tutela provisória de urgência concedida.
É o voto.
E M E N T A
PROCESSUAL E PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 203, V, CF/88, LEI N. 8.742/93 E 12.435/2011. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. RESTABELECIMENTO. INEXIGIBILIDADE DE VALORES NÃO IMPUGNADA. SENTENÇA MANTIDA. DANOS MORAIS INDEVIDOS.
- O recurso autárquico cinge-se à impossibilidade de restabelecimento do benefício assistencial, alegando ausente a miserabilidade necessária, de modo que a declaração da inexigibilidade do débito não é objeto recursal e fica mantida nos termos da sentença.
- O benefício de prestação continuada é devido ao deficiente ou idoso que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
- Na hipótese dos autos, a parte autora logrou demonstrar o preenchimento do requisito da miserabilidade, fazendo jus ao restabelecimento do benefício desde a cessação.
- A parte Autora requer o reconhecimento de lesão aos direitos da personalidade da Recorrente para condenar o INSS ao pagamento de danos morais.
- A Autarquia agiu consoante regramento competente, não havendo que se falar em uso indevido da autotutela.
- Com efeito, não se observa conduta do INSS apta a justificar sua condenação ao pagamento de indenização por dano moral. Além disso, não restou demonstrado o alegado constrangimento e o prejuízo moral sofrido pela parte autora.
- Mantidos os honorários nos termos fixados em sentença.
- Apelações não providas.
ACÓRDÃO
DESEMBARGADOR FEDERAL
