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Apelação Cível Nº 5028823-57.2018.4.04.7100/RS
RELATOR: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS
APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (AUTOR)
APELANTE: ELAINE SOUZA DE OLIVEIRA (RÉU)
APELADO: OS MESMOS
RELATÓRIO
UNIÃO ajuizou ação de reintegração de posse contra ELAINE SOUZA DE OLIVEIRA, postulando a reintegração na posse e a demolição de construção irregular, localizada sobre a faixa de praia e dunas na praia de Quintão, Município de Palmares do Sul/RS, de uso comum do povo, caracterizada como área de preservação permanente (APP) e terreno de marinha.
Processado o feito, sobreveio sentença com o seguinte dispositivo (
):Pelo exposto, julgo procedente a ação, com fundamento do art. 487, I, do CPC, confirmando a tutela de urgência deferida.
Encargos processuais nos termos da fundamentação.
Publicação e registros eletrônicos. Intimem-se.
Havendo recurso tempestivo, intime(m)-se a(s) parte(s) contrária(s) para apresentação de contrarrazões, no prazo legal. Juntados os recursos e as respectivas respostas, apresentadas no prazo legal, remetam-se os autos ao TRF4.
Os embargos de declaração opostos pela União (
) foram rejeitados pelo juízo a quo ( ).Apelam as partes.
Nas suas razões recursais (
), a demandada sustenta, preliminarmente, a nulidade da sentença por cerceamento de defesa uma vez que não lhe foi oportunizada a realização de perícia para comprovação do risco à saúde e ocorrência de danos ao meio ambiente.No mérito, discorre sobre o direito à moradia e ao reassentamento, afirmando enfrentar problemas financeiros e de saúde, não possuindo condições socioeconômicas para comprar outro imóvel; e requerendo seja realocada em outro imóvel.
A União, por sua vez (
), sustenta que a sentença, tendo apenas transcrito o conteúdo da decisão que antecipou os efeitos da tutela, não se presta a atender todos os pedidos finais formulados pela União. Assevera não ser caso de nulidade, mas de reforma para o deferimento do pleito em sua inteireza.Com contrarrazões pela demandada (
), vieram os autos a esta Corte.Neste grau de jurisdição, a União, intimada, apresentou contrarrazões à apelação da parte ré (
).O MPF opinou pelo parcial provimento do apelo da ré e provimento do apelo da União (
):a) pelo parcial provimento da apelação da ré para que, como consequência da imposição judicial de imediata desocupação do imóvel, sobretudo em razão dos riscos à solidez da edificação e à vida dos ocupantes, seja determinada sua realocação para outro imóvel eleito pelo Poder Público Municipal; e
b) pelo provimento do apelo da União para que seja corrigido o vício de congruência entre o conteúdo da postulação e o dispositivo da sentença, de modo que sejam apreciados e, caso procedentes, acolhidos, os pedidos atinentes ao ressarcimento dos danos ambientais e de remoção de construções e plantações no local.
É o relatório.
VOTO
Juízo de admissibilidade
Recebo os apelos, pois cabíveis, tempestivos e dispensados de preparo, diante da AJG concedida à ré (
) e a isenção legal da União (art. 4º, I, da Lei nº 9.289/1996).Preliminares
Nulidade da sentença. Perícia.
Em suas razões de apelação, a ré sustenta a ocorrência de cerceamento do seu direito de defesa, uma vez que não lhe foi oportunizada a realização da prova pericial postulada na contestação.
Com efeito, a produção de provas visa à formação do juízo de convicção do Juiz, a quem compete "de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias", nos termos do art. 370 do CPC. Assim, sendo a prova dirigida ao Juízo, não se configurará cerceamento de defesa se ele entender que o conjunto probatório dos autos é suficiente à formação de seu convencimento, permitindo o julgamento da causa.
No caso dos autos, a requerida postulou, em sua contestação (
), a produção de prova pericial "para que se delimite, precisamente, se imóvel ocupado pela ré está localizado em área de preservação permanente". Na apelação, afirma ainda que a perícia tem como objetivo comprovar o risco à saúde da ocupante e a existência de danos ao meio ambiente.De fato, o pedido não foi apreciado pelo juízo a quo. Entretanto, não vislumbro o cerceamento de defesa alegado.
Com efeito, a União ajuizou, em 19/12/2005, ação de reintegração de posse contra o Município de Palmares do Sul e "todos os ocupantes atualmente instalados na área localizada sobre as dunas da praia de Quintão" naquele Município, uma vez que as construções estariam sobre faixa de praia, zona de preservação ambiental e constituídas por terrenos de marinha, insuscetível de utilização seja pelo regime de ocupação, seja pelo regime de aforamento.
Naquele feito (nº 2005.71.00.045823-7), foi entabulado acordo tendo a Municipalidade se comprometido a fiscalizar a área a fim de impedir novas construções e a informar, imediatamente, à União acerca de qualquer nova construção realizada, com vistas a que o ente federal, titular dominial da área, procedesse ao ajuizamento de ação de reintegração de posse.
Com relação às construções pendentes, foi determinado o ajuizamento de ações individuais pela União, o que ensejou a propositura da presente ação de reintegração de posse, que culminou na sentença de procedência ora atacada.
Observa-se, pois, que a circunstância de o imóvel identificado na inicial (localizado à Rua Novo Hamburgo, nº 11, Praia do Quintão, Município de Palmares do Sul/RS - casa 7) estar sobreposto a terreno de marinha e área de preservação ambiental permanente é incontroversa, sendo desnecessária a realização de perícia para tanto.
A existência de dano ao meio ambiente é consequência lógica da manutenção de construções sobre as dunas frontais. O risco à saúde e à integridade física dos moradores é também incontroverso, tendo em vista a preocupante dinâmica do campo de dunas, que pode causar soterramento e/ou desabamento de imóveis, como mencionado pelo MPF em seu parecer (
, p. 26):(...)
A par da necessidade de recomposição ambiental chama a atenção do Ministério Público Federal que uma das características da área na qual está localizado o imóvel, conforme identificado pelo Município de Palmares do Sul, é a de que se trata de faixa de areia composta por dunas móveis. Essa mobilidade decorre da ação eólica e climática, que confere grande dinâmica ao meio ambiente, no local em constante e intensa modificação, atuando como fator relevante sobre o ecossistema, tanto sob a perspectiva da erosão como de acúmulo de areia.
A dinâmica do campo de dunas é preocupante, visto que pode causar soterramento e/ou desabamento de imóveis, com consequências nefastas para vida e integridade física dos ocupantes dos imóveis. Em situação semelhante, essa circunstância restou expressamente reconhecida nos autos da Ação Civil Pública n.º 2009.71.00.022303-3, no âmbito da qual deu-se a remoção de 114 (cento e quatorze) construções em dunas frontais em Balneário Pinhal/RS, em situação análoga à presente, em razão dos riscos ali verificados à vida dos ocupantes, inclusive em razão de soterramento anterior que ceifou a vida de duas crianças vitimadas pelas dunas.
(...)
Assim, é de ser afastada a preliminar arguida.
Julgamento citra petita
A União ajuizou a presente demanda postulando a reintegração na posse e a demolição de construção irregular (casa 7), localizada sobre a faixa de praia e dunas na praia de Quintão, Município de Palmares do Sul/RS, de uso comum do povo, caracterizada como área de preservação permanente (APP) e terreno de marinha.
Formulou, para tanto, os seguintes pedidos (
):Diante do exposto, a UNIÃO requer:
(...)
d) a concessão de antecipação de tutela para assegurar a reintegração imediata da posse do imóvel, bem como seja determinada a desocupação imediata do local e a proibição de a ele retornar;
e) no mérito, sejam os pedidos julgados procedentes para assegurar a reintegração de posse e a desocupação integral da área, bem como seja o réu condenado a ressarcir os danos porventura causados na área, desfazer eventuais construções ou plantações que tenham sido por eles realizadas no local e, não o fazendo pelos seus próprios meios, seja condenado a indenizar as despesas havidas com a limpeza e restauração da área;
(...)
A sentença julgou procedente o pedido, basicamente transcrevendo a decisão que concedera a antecipação da tutela, consignando o seguinte (
):Mérito
Por ocasião da apreciação do pedido de tutela provisória de urgência (ev.22), a questão meritória já foi enfrentada e devidamente analisada na decisão que deferiu o pedido, razão pela qual, evitando tautologia, transcrevo-a, para que integre a fundamentação desta sentença e conste como razão de decidir, dando contornos definitivos à lide, in verbis:
Pretende a União a reintegração de posse de área edificada sobre a faixa de praia e dunas na praia do Quintão, no Município de Palmares do Sul/RS.
Narra a inicial que Elaine Souza de Oliveira mantem edificação sobre a faixa de praia e dunas na praia do Quintão, em Palmares do Sul/RS, em área de preservação permanente e de uso comum do povo, em ocupação cadastrada como casa 7.
Requereu a concessão de tutela antecipada "para assegurar a reintegração imediata da posse do imóvel, bem como seja determinada a desocupação imediata do local e a proibição de a ele retornar".
A parte demandada foi citada em Palmares do Sul/RS (ev 13) e contestou (ev 17), assistida pela Defensoria Púnlica da União. Alegou, em síntese, que (a) adquiriu o imóvel, através de contrato particular de compra, em 16nov.2007 e onde passou a residir;
Alegou, em preliminar, falta de interesse de agir da União, sob o argumento de que apenas o possuidor terá legitimidade para propor ação de manutenção ou reintegração de posse e a União "não é e nunca foi possuidora do imóvel objeto da reintegração". No mérito, defendeu que a ação não pode prosperar pelos seguintes fundamentos: (a) a posse é de boa fé; (b) não há certeza de que a área ocupada esteja inserida em APP; (c) a moradia é direito fundamental que se sobrepõe ao direito de propriedade; (d) em caso de afastamento desses argumentos, requereu o direito ao reassentamento. Requereu a concessão do benefício da gratuidade da justiça. Juntou documentos (ev 17).
O MPF manifestou-se pela realização de audiência para pleno conhecimento dos fatos alegados pela parte ré e para operacionalização da desocupação. Alegou, ainda, que do exame das informações do consumo de energia elétrica, constante nos autos originários (200571000458237), infere-se que a ré ocupa o imóvel para ve raneio (ev 20).
Vieram os autos conclusos para decisão.
Concedo o benefício da gratuidade da justiça a Elaine Souza de Oliveira. Anote-se.
Sobre a antecipação de tutela requerida, é de ser parcialmente deferida porque: (a) os imóveis estão irregularmente localizados em área de dunas (área de preservação permanente) e em faixa de praia (bem de uso comum do povo); (b) a ocupação do local causa danos ao meio ambiente e riscos à saúde e à vida dos ocupantes.
No entanto, não deve ser determinada a desocupação imediata do local, como requerido na exordial. Isso porque é preciso garantir a oportunidade à parte demandada ao acesso ao contraditório e à ampla defesa, bem como a possibilidade de prestar esclarecimentos prévios na ocasião da audiência a ser realizada para fins de se estabelecer o entabulamento consensual do feito.
Em situação fundiária de todo idêntica ao presente feito, este Juízo vem entendendo que, em área de dunas frontais, em que edificadas construções irregulares, deve ser determinada a remoção destas, fundamentalmente, porque equivalente à área-risco para ocupação humana.
Cabe referir que, perante esta Vara, especializada em matéria ambiental e agrária, no ano de 2009, foram ajuizadas 21 Ações Civis Públicas, tendo por objeto a remoção de 114 construções, localizadas em áreas de dunas frontais, no Município de Balneário Pinhal.
Das 114 construções, cuja demolição foi requerida pela União Federal, em 2009, atualmente, em dezembro de 2018, quatro construções ainda estão pendentes de retirada.
Em regra, esta magistrada, em sede das referidas ACP's, após a contestação dos demandados, tem deferido tutela antecipada, determinando a remoção destas edificações (realizadas em área de dunas frontais), adotando como fundamento central que a legislação ambiental não possibilita a sua ocupação e porque a ocupação de áreas que tais gera riscos à saúde e à vida dos ocupantes.
Por oportuno, transcreve-se excerto da decisão liminar, proferida por esta magistrada nos autos da Ação Civil Pública nº 2009.71.00.022303-3:
" (...) Dos riscos à saúde e à vida dos ocupantes causados pela ocupação. A ocupação do local gera riscos à saúde e à vida dos ocupantes. Isso é facilmente constatado no presente caso, posto que duas crianças já foram vitimadas pelas dunas. Com efeito, é incontroverso o fato de que duas crianças foram vitimadas na área objeto da presente ação em decorrência do movimento das dunas. A notícia do Correio do Povo do dia 07/02/2006 refere esse fato e bem retrata a situação do local (fl. 137):
Um ano após desabamento que causou a morte de duas crianças em Magistério, problema prossegue
Passado exatamente um ano da tragédia que matou duas crianças em Magistério, no Balneário Pinhal, a situação continua a mesma. Moradores e veranistas disputam o espaço com as dunas, que avançam sobre as casas. Fabiana Ferreira, de 9 meses, e Malury Paim Melo de Aguiar, de 10 anos, morreram soterradas por areia e tijolos quando a parede do quarto em que dormiam desabou. Revoltado com a permanência do problema, o pai de Malury , Maurício Melo de Aguiar, de 31 anos, que mora em Porto Alegre, voltou a Pinhal para pedir providências à prefeitura. A casa onde as crianças veraneavam ficava ao lado de dunas, que aumentam de tamanho conforme o vento e invadem os terrenos.
A construção e mais uma casa geminada foram destruídas com a autorização dos proprietários. "Se nada for feito, outra tragédia acontecerá. No final de semana chegam a ficar 15 pessoas na mesma casa, entre elas muitas crianças", lamentou Melo.
Levantamento da Prefeitura de Pinhal registra a presença de 202 famílias morando na faixa de praia. O prefeito Jorge Fonseca diz que todas receberam proposta para sair do local, mas só 40 aceitaram.
Também as notícias veiculadas pelo Jornal Zero Hora no dia 15/01/2008, denominadas "Engolidos pela areia" e "A casa ilhada" retratam a mesma situação (fl. 138):
Silenciosamente, as dunas avançam sobre estradas, cobrem pátios e derrubam casas no Litoral Norte.
Em Quintão e Balneário Pinhal, os montes de areia não perdoam e seguem conforme o vento, engolindo o que estiver pela frente.
Histórias de moradores e veranistas prestes a perder a moradia ou que já a viram ir abaixo são abundantes. Há quase três anos, duas crianças morreram quando a parede da casa em que dormiam cedeu com o peso de uma duna, em Magistério.
O desejo de passar a aposentadoria na praia vai se esvaindo para o casal (...). Quando Olavo aposentou-se da Brigada Militar, há 12 anos, comprou um terreno em Quintão. No lugar, construiu uma casa para viver. Hoje nem a grama comprada e plantada no quintal existe. Na última semana, depois de voltar de uma visita à Capital, o casal só conseguiu entrar após retirar 40 caçambas de areia do terreno.
- Depois deste verão, derrubaremos tudo e iremos embora. Até a areia passar, vai demorar anos. É o investimento da minha vida que vai se perder, infelizmente - lamenta Olavo.
Ao lembrar da casa de dois pisos construída junto à RS-040, em Balneário Pinhal o mecânico (...) vai às lágrimas. Há oito anos, ele viu o prédio cair com a força das dunas. Por um período, Renaldieri, a mulher (...) e outras 10 pessoas tiveram de morar em um galpão. Ele reconstruiu a vida em frente à casa destruída. Ele não consegue nem olhar para o lugar onde morou por apenas três meses.
- Dá uma dor lembrar da destruição. Prefiro não olhar para a areia. Sigo o meu trabalho aqui.
Há seis meses, a dona de casa (...), de Quintão, duvidava que uma duna de dois metros de altura fosse atrapalhar a vida da família.
Nesse período, o vento conseguiu espalhar o monte e fez ela interromper o trajeto na Rua Benjamin Constant, onde Marizete é moradora do último número da via.
Desde então, nem o caminhão de lixo consegue passar pelo local. Quando Marizete precisou de uma ambulância, teve de levar o paciente até o veículo.
Portanto, resta demonstrado o sério risco ao qual estão submetidas as pessoas que ocupam a área. O movimento das dunas vem causando o desabamento de imóveis e, como consequência, colocando em risco a saúde e a vida dos seus ocupantes.
É certo que a ocupação de certas áreas gera riscos aos ocupantes. A ocupação de encostas de morros é reiteradamente objeto de noticiários que relatam desabamentos e óbitos. Também a ocupação de área de dunas gera riscos aos ocupantes, conforme já demonstrado. Assim, a ocupação de áreas que geram risco à saúde e à vida das pessoas deve ser, na medida do possível, inviabilizada. Especificamente no tocante à área objeto desta ação está demonstrado que o movimento das dunas já causou mortes e diversas destruições, e outros fatos poderão acontecer.
Percebendo que a ocupação de certas áreas gera sérios riscos aos ocupantes, Guilherme José Purvim de Figueiredo, em sua obra "A propriedade no Direito Ambiental" (Editora Revista dos Tribunais, 4ª ed., pág. 213) afirma que:
O que se verificou historicamente foi que a aplicação do Código Florestal tanto é importante para a economia agrária como para a saúde e a segurança humanas. A proteção dos topos e encostas de morros ou das margens dos rios, estejam eles situados no perímetro rural ou urbano, é primordial. Sobretudo nos grandes centros urbanos, ao aspecto ecológico alia-se a proteção da vida humana. Desmoronamentos de encostas de morros, soterramentos de moradias, inundações de casas e enxurradas em ruas e avenidas constituem calamidades de proporções mais trágicas do que quando ocorrentes em regiões de baixa ocupação humana.
Adiante, o mencionado doutrinador acrescenta que (fls. 226):
Áreas de preservação permanente, por sua vez, não admitindo supressão da vegetação, são também áreas 'non aedificandi'.
Portanto, a área objeto desta ação não pode ser ocupada porque a legislação ambiental não possibilita a ocupação e porque a ocupação da área gera riscos à saúde e à vida dos ocupantes. Trata-se de preservar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF) e, ao mesmo tempo, o direito à integridade física e à vida dos ocupantes da área. Sendo assim, devem ser adotadas as medidas possíveis e adequadas para a desocupação da área, e é isso que está sendo pleiteado nesta Ação Civil Pública."
De se referir, decisões que tais, restam, em regra, confirmadas pelo TRF4R, cabendo citar a seguinte ementa lavrada nos autos do AI nº 0023556-33.2010.404.0000/RS, 4.ª Turma, Relatora: Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler, in verbis:
"Restando incontroverso que as construções discutidas estão edificadas em área de dunas e praia, havendo risco de soterramento, em face da possibilidade de movimentação das dunas, a desocupação e a demolição, ainda que sejam irreversíveis, são medidas que se impõem."
No caso concreto, importante frisar-se que, se restar comprovado pela ocasião da audiência que a ré de fato não é moradora do local, a determinação de desocupação da área não acarreta ofensa aos direitos constitucionais à moradia e à dignidade da pessoa humana. Isso porque, se assim for demonstrado, o imóvel terá seu uso restrito para veraneio, caso em que a desocupação da área não prejudica de forma alguma os direitos constitucionais antes referidos.
Em que pese a alegação de que a ocupação ocorre há muitos anos, é certo que a ré não tem direito adquirido à ocupação da área porque: (a) a ocupação é irregular; (b) a ocupação gera danos ao meio ambiente; (c) a ocupação gera riscos e danos efetivos aos ocupantes. Por tudo isso, não se pode permitir a continuidade da ocupação da área.
Ademais, os imóveis objetos da presente ação de reintegração de posse, destaque-se, localizam-se em área de preservação permanente que nem sequer é passível de serem considerados como inseridos em área urbana consolidada, por questão absolutamente objetiva. Ou seja, porque se localizam em faixa de duna frontal, a menos de 150m da linha preamar máxima, e, assim sendo, não são contemplados pelos termos previstos na Resolução nº 369/2006 e artigo 64 da Lei nº 12.651/2012 e 54 da Lei nº 11.997/2009, justamente porque localizados em área eminentemente de risco, conforme constatado em inspeção judicial realizada.
Nesse sentido, é oportuno, para o deslinde deste feito, reportar-se ao artigo 9º desta Resolução nº 369/2006:
"Art. 9º A intervenção ou supressão de vegetação em APP para a regularização fundiária sustentável de área urbana poderá ser autorizada pelo órgão ambiental competente, observado o disposto na Seção I desta Resolução, além dos seguintes requisitos e condições: (...)
IV - localização exclusivamente nas seguintes faixas de APP:
(...)
c) em restingas, conforme alínea "a" do IX, do art. 3º da Resolução CONAMA nº 303, de 2002, respeitada uma faixa de 150 metros a partir da linha de preamar máxima;"
Explicite-se, de notório conhecimento público, a faixa de 150 metros a partir da linha de preamar máxima equivale à faixa em que localizada a duna frontal, eis que esta, em regra, situa-se dentro da faixa de 150 metros a partir da linha de preamar máxima.
Em outras palavras, 'a ratio essendi' de não permitir a regularização fundiária de construções edificadas, dentro de uma faixa de 150 metros a partir da linha de preamar máxima, está no fato da ocupação de áreas que tais ser geradora de grandes riscos à integridade física e à vida das pessoas.
Do deferimento parcial do pedido de antecipação de tutela. Considerando tudo o que foi exposto nesta decisão, é cabível e adequado o deferimento parcial do pedido de antecipação de tutela porque: (a) a construção está irregularmente localizada em área de dunas (área de preservação permanente) e em faixa de praia (bem de uso comum do povo), não sendo possível a regularização dessa ocupação; (b) a ocupação do local causa danos ao meio ambiente; (c) a ocupação do local gera riscos à saúde e à vida dos ocupantes, sendo necessária a desocupação da área como forma de resguardar tanto o direito à integridade física e à vida dos ocupantes quanto o direito das presentes e das futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; (d) se restar comprovada a condição de veranista, e não de moradora do imóvel, a desocupação da área não acarretará ofensa ao direito constitucional à moradia, nem à dignidade da pessoa humana.
Ainda, visando sempre efetivar a medida da forma mais adequada e com o menor prejuízo possível aos ocupantes, entendo conveniente a designação de audiência, praxe adotada por este Juízo em ações similares a esta e que envolvem a retirada e demolição de construções.
Designo o dia 11 de março de 2018 às 15h30min para realização de audiência, na qual será decidida a forma de operacionalização da desocupação, bem como serão prestados esclarecimentos necessários para o correto deslinde do feito, devendo a demandada ser intimada pessoalmente para comparecimento na audiência.
Com base no art. 370, do CPC, determina-se a juntada a estes autos de cópia do relatório da inspeção judicial realizada nos autos do processo nº 2005.71.00.045823-7, feito do qual distribuído por dependência a presente reintegração de posse, bem como dos levantamentos feitos pela Prefeitura Municipal de Palmares do Sul/RS e pela CEEE.
Intimem-se as partes, o MPF e o Município de Palmares do Sul/RS para que fiquem cientes desta decisão e para comparecimento à audiência designada.
Não sobrevindo aos autos elementos capazes de modificar a convicção já exposta, por razões de economia processual e racionalidade da atividade judicante, tenho por bem adotar seus argumentos como fundamento desta sentença, de forma que a confirmo, agora, em sede de cognição exauriente.
Ainda que verificada a condição de moradora, na audiência realizada em 09/11/2023, a autora informou possuir renda mensal de 1.556,00, o que permite que desocupe o local ocupado irregularmente.
Portanto, a procedência da ação é medida que se impõe.
Fica evidente que a sentença, ao transcrever a decisão interlocutória do
, não enfrenta a integralidade dos pedidos formulados na inicial, tendo deixado de apreciar os requerimentos de ressarcimento de danos ambientais e remoção de construções e plantações porventura existentes no local.Está-se diante, pois, de julgamento citra petita, considerando que um dos pedidos formulados pela parte autora na inicial não foi analisado pelo julgador a quo.
Com efeito, na vigência do CPC de 1973, ao constatar a omissão no exame de algum dos pedidos formulados, deveria esta Corte anular a sentença e determinar o retorno dos autos ao Juízo de origem para que outra fosse prolatada. Entretanto, o CPC de 2015, em seu art. 1.013, § 3º, inciso III permite que o Tribunal aprecie desde logo a questão, desde que esteja o processo em condições de imediato julgamento:
"Art. 1.013. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
§ 1º Serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido solucionadas, desde que relativas ao capítulo impugnado.
§ 2º Quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.
§ 3º Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando:
I - reformar sentença fundada no art. 485;
II - decretar a nulidade da sentença por não ser ela congruente com os limites do pedido ou da causa de pedir;
III - constatar a omissão no exame de um dos pedidos, hipótese em que poderá julgá-lo;
§ 4º Quando reformar sentença que reconheça a decadência ou a prescrição, o tribunal, se possível, julgará o mérito, examinando as demais questões, sem determinar o retorno do processo ao juízo de primeiro grau.
§ 5º O capítulo da sentença que confirma, concede ou revoga a tutela provisória é impugnável na apelação." [grifou-se]
Nesse passo, estando o feito pronto para imediato julgamento, passa-se à análise do mérito do pedido, nos termos do art. 1.013, § 3º, III, do CPC de 2015.
Mérito
Pontos controvertidos
Nesta instância, são controvertidos os seguintes pontos:
- direito de reassentamento/realocação da parte demandada; e
- ressarcimento de danos ambientais e remoção de construções e plantações porventura existentes no local.
Direito à moradia. Necessidade de disponibilização de alternativa
Conforme salientado, é incontroversa a circunstância de que imóvel identificado na inicial (localizado à Rua Novo Hamburgo, nº 11, Praia do Quintão, Município de Palmares do Sul/RS, casa nº 7) estar sobreposto a terreno de marinha e área de preservação ambiental permanente.
Portanto, devidamente comprovada a ocupação irregular, resta caracterizado o esbulho possessório e a consequente necessidade de deferimento do pleito reintegratório, nos moldes consignados pela sentença.
Observe-se que, muito embora comprovada a utilização do imóvel para fins de moradia, não é possível a regularização da ocupação pois, como já mencionado, além de estar sobreposto a terreno de marinha, este está situado em área de preservação ambiental permanente, o que o torna insuscetível de ocupação, a qualquer título (TRF4, AG 5071911-42.2017.4.04.0000, TERCEIRA TURMA, Relatora MARGA INGE BARTH TESSLER, juntado aos autos em 26/04/2018).
Por outro lado, entendo que deve-se tecer algumas considerações, ponderando a colisão entre o respeito à dignidade humana e o direito à moradia em face da proteção ambiental.
Isso porque não há dúvida nos autos quanto a duas realidades: (1) a ré é pessoa pobre e doente, vivendo em humilde residência, ora só, ora com a família há mais de 15 anos e (2) o local onde habita é área de preservação permanente, de propriedade da União, configurando dano ambiental.
Ao lado do direito ambiental, há que se atentar para a força jurídica do direito fundamental à moradia. A atuação estatal, aí incluídas a ação do Ministério Público Federal e o exercício do poder jurisdicional, não pode olvidar este dado normativo fundamental, sob pena de enfraquecimento do texto constitucional, que deve ser interpretado de acordo com os princípios hermenêuticos da força normativa da Constituição e da eficácia integradora.
A preocupação ambiental é, sem sombra de dúvida, necessária e urgente. No entanto, é imperiosa a consideração do direito à moradia, sob pena de emprestar-se solução jurídica incorreta quanto à interpretação sistemática do direito e à força normativa da Constituição. Com efeito, a força normativa da Constituição, como método próprio de interpretação constitucional, exige do juiz, ao resolver uma questão de direitos fundamentais, adotar a solução que propicie a maior eficácia jurídica possível às normas constitucionais envolvidas, conforme lição de Konrad Hesse (Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Porto Alegre: SAF, 1998). É, portanto, diante deste princípio de hermenêutica constitucional, que se revela imprescindível a consideração do direito à moradia para a concretização do conteúdo jurídico do direito ao ambiente, a fim de que se alcance uma solução jurídica constitucionalmente adequada.
O provimento judicial deve fortalecer, simultaneamente, o direito ao ambiente e o direito à moradia. Neste método de interpretação constitucional, vislumbra-se, inclusive, a influência do conteúdo jurídico de um ou mais direitos fundamentais para a compreensão do conteúdo e das exigências normativas de outro direito fundamental, sem vislumbrar contraposição (neste sentido, Edésio Fernandes, Preservação ambiental ou moradia? Um falso conflito, in "Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais, org. B. Alfonsin e E. Fernandes, Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 357). No caso concreto é o que se constata pelo influxo do conteúdo jurídico do direito à moradia em face do direito ao ambiente. Exemplo deste raciocínio é trazido por Raquel Rolnik e João Luiz Portolan Galvão Minnicelli, ao examinar a Resolução nº 369/06, do CONAMA, e o projeto de lei de responsabilidade territorial urbana diante do direito à moradia ("Regularização fundiária e as novas regras da futura Lei de Responsabilidade Territorial Urbana - alguns desafios da nova lei", Forum de Direito Urbano e Ambiental - FDUA, ano 7, n. 40, p. 36-46, jul./ago. 2008).
Este procedimento, no âmbito da contemporânea teoria dos direitos fundamentais, pode ser denominado método hermenêutico constitucional contextual, para utilizar a expressão de Juan Carlos Gavara de Cara, pois parte da própria Constituição, da conexão e da interrelação entre as diversas normas de direitos fundamentais. Em suas palavras:
"La formación de una interpretación sistemática de los derechos fundamentales no pude dar lugar a la formación de un sistema que sea axiométrico o lógico deductivo, sine que debe ser el resultado del análisis de las disposiciones de los derechos fundamentales, sus contenidos y las conexiones con otras normas constitucionales."
(Derechos Fundamentales e desarrollo legislativo - la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1994, p. 116).
Aliás, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de considerar na determinação do conteúdo de um direito fundamental o influxo de outra norma de direito fundamental, ao analisar hipótese onde se discutia o conteúdo do direito de propriedade e sua função social em face do direito difuso ao ambiente (MS 22164, Relator Min. CELSO DE MELLO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 30/10/1995, DJ 17-11-1995).
Neste contexto, tenho que a desocupação e demolição só podem ocorrer, do ponto de vista jurídico fundamental, desde que haja indicação e disponibilização, pelo Poder Público, de área onde os requeridos possam construir moradia adequada, observados, ademais, os programas habitacionais disponíveis.
Não pode a demandada ver violado seu direito à moradia, com a imposição de demolição de sua habitação, sem sequer a indicação de área alternativa. Veja-se que a circunstância de a apelante auferir renda mensal pouco mais de um salário mínimo, proveniente de benefício previdenciário de pensão por morte (
) não significa ter condições de desocupar o local por conta própria.Nesse ponto, destaco trecho da avaliação socioeconômica efetuada pelo Município de Palmares do Sul (
, p. 3):"(...)
Quanto a sua renda familiar, referiu que recebe pensão por morte, mas parte do valor está comprometida com empréstimos, portanto, atualmente o valor aproximado da pensão é em torno de R$ 800,00 mensais. E, recebe suporte de vizinhos e amigos quando necessário.
Quanto ao seu quadro de saúde, a usuária é hipertensa, diabética, realiza tratamento para depressão e tireoide, faz uso de medicamentos, nem todos fornecidos pelo SUS, comprometendo ainda mais sua renda mensal.
(...)"
Assim, a garantia de moradia digna e adequada deve anteceder qualquer medida de remoção do local ora ocupado, podendo ser determinado pelo Poder Judiciário a adoção de medidas pela Administração Pública para a concretização desse direito.
De fato, a pura e simples demolição, desacompanhada, no mínimo, de alternativa para o exercício do direito à moradia, configuraria ato estatal desvinculado da boa-fé objetiva e dos direitos fundamentais do demandado. Ainda mais no caso concreto, em que Poder Público, ciente há muito do local de habitação da demandada, além de nada fazer para compatibilizar a moradia com o ambiente, atuou positivamente ao disponibilizar ali prestação do serviço público de energia elétrica no local.
Esta a conclusão que decorre do regime dos direitos fundamentais vigente, cujo conteúdo se evidencia pelas respectivas previsões constitucionais e das normas internacionais de direitos humanos. Tal solução, aliás, na ponderação entre o direito ao ambiente e o direito à moradia, é menos restritiva do direito ao ambiente do que a manutenção da moradia com a consequente regularização, hipótese já prevista em nosso ordenamento jurídico (ver Cintia Maria Scheid, 'Concessão especial de uso para fins de moradia: a interface entre o direito à moradia e o direito ao meio ambiente sustentável em áreas de preservação permanente', Revista de Direito Imobiliário, n. 64, ano 31, jan./jun. 2008, p. 11).
Com efeito, na Constituição Federal, a moradia, além de direito social expressamente previsto (art. 6º), é considerada necessidade vital básica (art. 7º), diante da qual devem concorrer políticas públicas por parte de todas as esferas da federação (art. 23, IX).
A legislação internacional, assim como entendida nos órgãos de proteção dos direitos humanos formalmente instituídos no direito internacional público, aponta para a ilicitude de desocupação forçada sem a disponibilização de alternativa para moradia. Nas palavras do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU (The Right to adequated housing (art. 11.1): forced evictions: 20/05/97. CESCR General comment 7, www.unhrchr.ch/tbs/doc.nsf/(symbol)/CESCR+General+Comment+7, em 05.02.2009), "nos casos onde o despejo forçado é considerado justificável, ele deve ser empreendido em estrita conformidade com as previsões relevantes do direito internacional dos direitos humanos e de acordo com os princípios gerais de razoabilidade e proporcionalidade" (item 14, tradução livre), "não devendo ocasionar indivíduos "sem-teto" ou vulneráveis à violação de outros direitos humanos. Onde aqueles afetados são incapazes para prover, por si mesmos, o Estado deve tomar todas as medidas apropriadas, de acordo com o máximo dos recursos disponíveis, para garantir que uma adequada alternativa habitacional, reassentamento ou acesso à terra produtiva, conforme o caso, seja disponível." (item 16, tradução livre).
Anote-se que esta diretriz, como não poderia deixar de ser, a par de ser reconhecida na legislação internacional, está presente não só na doutrina (Sylvio Toshiro Mukay, 'Direito à Moradia e a concessão especial para fins de moradia, Forum de Direito Urbano e Ambiental, Belo Horizonte, ano 7, n. 38, p. 79-82, mar./abr. 2008), como na jurisprudência (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo nº 711.429-5/5-00, julgado em 10.12.2207) e no direito interno infraconstitucional (por exemplo, artigo 4º da Medida Provisória nº 2.220/2001).
Medida diversa implicaria violação à proteção fundamental da dignidade humana, na medida em que o sujeito diretamente afetado seria visto como meio cuja remoção resultaria na consecução da finalidade da conduta estatal, sendo esquecido como fim em si mesmo de tal atividade.
A proteção jurídica que a norma constitucional protetiva da dignidade humana proporciona é, dentre outros conteúdos, a garantia de que o sujeito será respeitado como um fim em si mesmo, ao invés de ser concebido como um meio para a realização de fins e de valores que lhes são externos, como também quando este é desconsiderado em seus direitos fundamentais.
Este respeito se torna ainda mais urgente em face de indivíduos e grupos que experimentam discriminação de modo histórico e disseminado socialmente. É o faz atentar o direito internacional dos direitos humanos quanto à moradia: "Mulheres, crianças, jovens, idosos, indígenas, minorias étnicas e outras minorias, e outros indivíduos e grupos vulneráveis sofrem desproporcionalmente da prática de despejo forçado", alertou o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, acima citado, agora no item 10 do referido comentário. Uma ilustração disso é trazida por Betânia de Moraes Alfonin, no trabalho "Cidade para Todos/ Cidade para Todas - Vendo a cidade através do olhar das mulheres" (Direito Urbanístico - Estudos Brasileiros e Internacionais, org. B. Alfonsin e E. Fernandes, Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 253).
A propósito, a extensão e a intensidade da preocupação do direito internacional dos direitos humanos quanto ao fenômeno discriminatório no âmbito do direito à moradia pode ser verificada no trabalho Direito Fundamental Social à Moradia: legislação internacional, estrutura constitucional e plano infraconstitucional (dissertação de Mestrado apresentada pelo Juiz Federal Francisco Donizete Gomes junto ao PPG-Direito da UFRGS, 2005). Ali fica demonstrado a preocupação quanto à moradia não somente na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, como também na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Longe de se presumir, no caso concreto, qualquer propósito discriminatório intencional por parte dos agentes públicos que, preocupados com o meio ambiente, intentaram a presente ação, o que pode estar ocorrendo é o fenômeno da chamada discriminação indireta (não-intencional) institucional: o modo de viver produzido pela ordem social vigente deixa particularmente vulneráveis mulheres, idosos e outras minorias (éticas e sociais), sobre quem recaem de modo desproporcional os ônus da dinâmica gerados das diversas demandas e iniciativas estatais e sociais (reporto-me, sobre o fenômeno da discriminação indireta, Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, de minha autoria).
Diante deste conteúdo do direito à moradia, em faceta eminentemente defensiva (não ser despejado, ainda que com fundamento jurídico, sem a devida alternativa), tenho que o apelo da demandada deve ser parcialmente provido a fim de condicionar a efetiva desocupação do imóvel à disponibilização de alternativa de moradia adequada à parte.
A forma a ser eleita, dentre os diversos instrumentos disponíveis ao Poder Público para a concretização do direito à moradia, bem como a coordenação entre os entes estatais materialmente competentes, não é objeto deste litígio, e, uma vez equacionada pelo Poder Público, abrirá alternativa, na esfera administrativa ou judicial, para nova atuação do Poder Público, visando à proteção do ambiente com respeito e consideração ao direito à moradia, à dignidade da pessoa humana e à proibição de discriminação.
Com efeito, neste litígio, instaurado em ação de reintegração de posse, se requer a desocupação e demolição de moradia de pessoa pobre e doente, em evidente situação de vulnerabilidade social.
A concretização ora proposta, considerando a concorrência dos direitos fundamentais ao ambiente e à moradia em nada enfraquece um ou outro. Ao contrário, como salientou Nelson Saule Junior (A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, Porto Alegre: SAF, 2004, p. 202):
"...o direito à moradia é um dos direitos que tem a mesma fonte originária do direito ao meio ambiente, que é o direito à vida. Portanto, deve ser considerada a condição das pessoas humanas que vivem em situação precária, e que têm boa fé, mesmo em razão do estado de necessidade social em assentamentos informais, como as favelas em áreas de mananciais."
Recomposição dos danos. Remoção das construções.
Além da desocupação - após disponibilização da devida alternativa pelo Poder Público - a demandada há de providenciar a demolição e remoção de eventuais resíduos, bem como a recomposição ambiental, como medidas adequadas a estancar a agressão perpetrada no tempo.
A respeito da responsabilidade pelo dano ambiental, destaco trecho do parecer do MPF, neste grau de jurisdição (
):"(...)
Apesar das restrições legais e jurisprudenciais impostas em virtude da existência de Área de Preservação Permanente no local, a ré construiu imóvel residencial em absoluta desconformidade com o ordenamento jurídico.
Destarte, é inevitável sua responsabilidade ambiental, dado que mesmo ciente tanto da impossibilidade de edificar como de permanecer no local, dadas as sucessivas notificações extrajudiciais, assim o procedeu. Portanto, resta nítida a culpa da ré, porquanto deixou de tomar as precauções necessárias para realização de obras no local e consequentemente colocou (e ainda coloca) em risco não apenas uma área protegida por lei como sua própria segurança e de sua família.
A esse respeito, o agente que pratique conduta ou atividade nociva ao meio ambiente será civilmente responsável pela recuperação ou indenização dos danos ocasionados, independentemente das sanções penais ou administrativas aplicáveis. Consoante dispõe o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, trata-se de responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco integral (Tema n. 707 do STJ), sendo necessária apenas a comprovação do resultado lesivo ocasionado e do nexo de causalidade entre este e a conduta do agente. Sob essa perspectiva, é irrelevante a aferição do elemento subjetivo da ré.
O dano ambiental é, portanto, inquestionável, dado que constatada ocupação irregular em Área de Preservação Permanente/APP, protegida nos termos do Código Florestal, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas e, por consequência, a responsabilização pela reparação do meio ambiente agredido.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que "causa dano ecológico in re ipsa, presunção legal definitiva que dispensa produção de prova técnica de lesividade específica, quem, fora das exceções legais, desmata, ocupa ou explora APP, ou impede sua regeneração, comportamento de que emerge obrigação propter rem de restaurar na sua plenitude e indenizar o meio ambiente degradado e terceiros afetados, sob regime de responsabilidade civil objetiva".
Significa, assim, que responde pelo dano não somente aquele que perpetra a ação lesiva como, de igual forma, quem contribui para sua manutenção, por força da natureza propter rem das obrigações ambientais, conforme enunciado da súmula n. 623 do STJ:
"Súmula n. 623/STJ: As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e ou dos anteriores, à escolha do credor.
E sobre aplicação da súmula, decidiu a Corte:
"(…) Na linha da Súmula 623, cabe relembrar que a natureza propter rem não afasta a solidariedade da obrigação ambiental. O caráter adesivo da obrigação, que acompanha o bem, não bloqueia a pertinência e os efeitos da solidariedade. Caracterizaria verdadeiro despropósito ético-jurídico que a feição propter rem servisse para isentar o real causador (beneficiário da deterioração) de responsabilidade ou para dificultar a forçosa exigência (e urgência) de recuperação integral e in natura do dano, assim como de indenização por prejuízos remanescentes e de pagamento de consectários de rigor. Olhar para o retrato-presente da titularidade do domínio não implica passar borracha no passado e – por esse artifício ou formalismo obsoleto – declarar, pura e simplesmente, a ilegitimidade passiva do devedor originário. Reputar como propter rem a obrigação ambiental visa precisamente fortalecer a efetividade da proteção jurídica do meio ambiente, nunca a enfraquecer, embaraçar ou retardar.” (STJ, AgInt no AREsp n. 1.995.069/SP, Relator Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJ 05/09/2022).
A Corte Superior também reconhece a impossibilidade de "direito adquirido" à degradação ambiental e a inaplicabilidade da teoria do fato consumado nos casos em que se alega a consolidação da área urbana (Súmula n. 613 do STJ).
Não há que se falar, pois, em situação consolidada no tempo ou em direito adquirido de permanecer com as construções no local, de forma que o fato de a utilização irregular do imóvel ter se iniciado anos atrás não tem o condão de regularizar situação ilícita anterior, pois, não se confere direito adquirido se o exercício não era de “direito”, obviamente. Ou, noutro dizer, não se adquire direito contra texto expresso de lei.
(...)"
Assim, em atenção ao pedido inicial formulado pela União, uma vez constatada a intervenção irregular em área de preservação permanente, a demandada deve ser condenada à demolição de todas as benfeitorias construídas sobre as referidas áreas (em ato subsequente à desocupação) e à reparação do dano ambiental constatado, de modo a consolidar o pleno uso das praias e dunas.
Honorários recursais
Incabível a majoração prevista no art. 85, § 11, do CPC, uma vez que a sentença fixou honorários advocatícios apenas em face da União, parte que teve provido o recurso de apelação.
Conclusão
Caracterizado julgamento citra petita e estando o feito pronto para julgamento, foi enfrentado o mérito do pedido omitido, nos termos do art. 1.013, § 3º, III, do CPC de 2015, para condenar a demandada condenada à demolição de todas as benfeitorias construídas sobre as referidas áreas (em ato subsequente à desocupação) e à reparação do dano ambiental constatado, de modo a consolidar o pleno uso das praias e dunas
Apelo da demandada parcialmente provido para condicionar a efetiva desocupação do imóvel à disponibilização de alternativa de moradia adequada.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por dar provimento ao apelo da União e dar parcial provimento ao apelo da demandada.
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Apelação Cível Nº 5028823-57.2018.4.04.7100/RS
RELATOR: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS
APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (AUTOR)
APELANTE: ELAINE SOUZA DE OLIVEIRA (RÉU)
APELADO: OS MESMOS
EMENTA
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. TERRENO DE MARINHA. DOMÍNIO DA UNIÃO. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. DUNAS. PRAIA DE QUINTÃO. DIREITO À MORADIA. DISPONIBILIDADE DE ALTERNATIVA PARA MORADIA. PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA. PREVENÇÃO DE EFEITO DISCRIMINATÓRIO INDIRETO. DEMOLIÇÃO E RECOMPOSIÇÃO DO DANO AMBIENTAL.
1. Sendo a prova dirigida ao Juízo, não se configurará cerceamento de defesa se ele entender que o conjunto probatório dos autos é suficiente à formação de seu convencimento, permitindo o julgamento da causa. No caso dos autos, a circunstância de o imóvel identificado na inicial estar sobreposto a terreno de marinha e área de preservação ambiental permanente é incontroversa, sendo desnecessária a realização de perícia para tanto.
2. A União possui o domínio dos terrenos de marinha por força de disposição constitucional (art. 20, VII, CF). Além disso, não seria possível a regularização da ocupação pois, além de estar sobreposto a terreno de marinha, o imóvel está situado em área de preservação ambiental permanente, o que o torna insuscetível de ocupação, a qualquer título.
3. A concorrência do direito ao meio ambiente e do direito à moradia requer a compreensão dos respectivos conteúdos jurídicos, resultando na conclusão segundo a qual a desocupação forçada e demolição depende da disponibilidade de alternativa à moradia.
4. Cuidando-se de família pobre, chefiada por pessoa idosa, habitando há largo tempo e com aquiescência do Poder Público a área pública em questão, ausente risco à segurança e de dano maior ou irreparável ao ambiente, fica patente o dever de compatibilização dos direitos fundamentais envolvidos.
5. O princípio de interpretação constitucional da força normativa da Constituição atenta para a influência do conteúdo jurídico de um ou mais direitos fundamentais para a compreensão do conteúdo e das exigências normativas de outro direito fundamental, no caso, o direito ao meio ambiente e direito à moradia.
6. Incidência do direito internacional dos direitos humanos, cujo conteúdo, segundo o Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU (The Right to adequato housing (art. 11.1): forced evictions: 20/05/97. CESCR General comment 7), implica que "nos casos onde o despejo forçado é considerado justificável, ele deve ser empreendido em estrita conformidade com as previsões relevantes do direito internacional dos direitos humanos e de acordo com os princípios gerais de razoabilidade e proporcionalidade" (item 14, tradução livre), "não devendo ocasionar indivíduos "sem-teto" ou vulneráveis à violação de outros direitos humanos. Onde aqueles afetados são incapazes para prover, por si mesmos, o Estado deve tomar todas as medidas apropriadas, de acordo com o máximo dos recursos disponíveis, para garantir que uma adequada alternativa habitacional, reassentamento ou acesso a terra produtiva, conforme o caso, seja disponível."
7. Proteção da dignidade da pessoa humana, na medida em que o sujeito diretamente afetado seria visto como meio cuja remoção resultaria na consecução da finalidade da conduta estatal, sendo desconsiderado como fim em si mesmo de tal atividade.
8. Uma vez constatada a intervenção irregular em área de preservação permanente, a demandada deve ser condenada à demolição de todas as benfeitorias construídas sobre as referidas áreas (em ato subsequente à desocupação) e à reparação do dano ambiental constatado, de modo a consolidar o pleno uso das praias e dunas.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por unanimidade, dar provimento ao apelo da União e dar parcial provimento ao apelo da demandada, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 30 de julho de 2024.
Documento eletrônico assinado por ROGER RAUPP RIOS, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40004577561v4 e do código CRC ba3c412e.Informações adicionais da assinatura:
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO PRESENCIAL DE 30/07/2024
Apelação Cível Nº 5028823-57.2018.4.04.7100/RS
RELATOR: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS
PRESIDENTE: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS
PROCURADOR(A): CARMEM ELISA HESSEL
APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (AUTOR)
APELANTE: ELAINE SOUZA DE OLIVEIRA (RÉU)
ADVOGADO(A): DANIELA CORREA JACQUES BRAUNER (DPU)
APELADO: OS MESMOS
MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Presencial do dia 30/07/2024, na sequência 83, disponibilizada no DE de 18/07/2024.
Certifico que a 3ª Turma, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A 3ª TURMA DECIDIU, POR UNANIMIDADE, DAR PROVIMENTO AO APELO DA UNIÃO E DAR PARCIAL PROVIMENTO AO APELO DA DEMANDADA.
RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS
Votante: Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS
Votante: Desembargador Federal ROGERIO FAVRETO
Votante: Desembargador Federal CÂNDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR
GILBERTO FLORES DO NASCIMENTO
Secretário
Conferência de autenticidade emitida em 07/08/2024 08:01:00.