Agravo de Instrumento Nº 5000507-23.2020.4.04.0000/RS
RELATOR: Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO
AGRAVANTE: ANGELA MARIA DE ARAUJO SCHARNBERG
AGRAVADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
RELATÓRIO
Angela Maria de Araújo Scharneberg interpôs agravo de instrumento contra decisão que, em ação ajuizada perante a Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Comarca de General Câmara, declinou da competência para a Justiça Federal (evento 1 - OUT2, pág. 94/96), nos seguintes termos:
Vistos.
Trata-se de ação previdenciária visando à obtenção de benefício previdenciário.
A competência delegada da Justiça Estadual nas ações previdenciárias, em razão da regra inserta no art. 109, § 3º, da Constituição Federal, visa facilitar o acesso do segurado à Justiça, com a célere e efetiva prestação jurisdicional.
Nesse sentido, Daniel Neves leciona que o referido dispositivo “busca facilitar o acesso à justiça em determinadas hipóteses expressamente previstas em lei, nas quais a ausência de Vara Federal obrigaria o deslocamento para local por vezes muito distante daquele que seria o competente se, no local do domicílio do autor ou da situação da coisa (usucapião especial), existisse Vara Federal”1.
Veja-se que a intencionalidade normativa do dispositivo constitucional (ou, em outras palavras, do próprio constituinte) visa, fundamentalmente, garantir, de forma efetiva, o acesso à justiça, direito fundamental de matriz constitucional, em favor daquelas pessoas, notadamente residentes em zona rural, que possuem domicílio em locais onde inexiste Vara Federal sediada. Um acesso à justiça que, para além de célere, sequer, perdoada a redundância, faticamente acessível.
É por isso que o ônus desta delegação ficou a cargo da Justiça Estadual, com uma estrutura mais uniforme e interiorana.
Contudo, passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição Federal, a competência por delegação em exame necessita de uma interpretação mais atualizada, digna de mutação (Verfassungswandlung)2.
Mutação que não significa a modificação ou subversão da intencionalidade normativa da competência por delegação, pelo contrário, mutação que se faz justamente para garantir e dar eficácia à vontade do constituinte, até mesmo em respeito aos princípios da máxima eficácia e efetividade da Constituição e, especialmente, da força normativa da Constituição.
Não há dúvida de que a Justiça Federal vem se interiorizando velozmente, fazendo com que o exercício da jurisdição federal pela Justiça Estadual venha se limitando às comarcas de menor porte e especialmente afastadas dos conglomerados urbanos3.
Expansão da jurisdição federal que chegou ao ponto, diferentemente daquele específico momento histórico de promulgação da Constituição Federal, de, em certos contextos fáticos, ainda que excepcionais, criar uma incongruência entre a constituição escrita e a realidade constitucional, um hiato entre texto normativo e realidade. Déficit de sinergia do texto normativo com a realidade fática que subverte a lógica constitucional.
Por isso, é necessária uma releitura e atualização interpretativa da competência constitucional por delegação dado o câmbio da esfera da realidade fática, notadamente em razão da expansão da jurisdição federal, uma verdadeira mutação constitucional e, na espécie, no âmbito processual civil, de um autêntico distinguishing da jurisprudência dominante, especialmente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, dada a situação dos autos peculiar e particularizada.
Vamos ao caso concreto.
A Comarca de General Câmara exerce jurisdição também sobre o Município de Vale Verde. Como aqui e em Vale Verde inexiste sede de Vara Federal, as ações previdenciárias ficam a cargo deste juízo, por força justamente da competência constitucional por delegação.
Vou me limitar a Vale Verde e as ações previdenciárias que postulam a concessão de auxílio-doença/aposentadoria por invalidez, como é o caso em exame. É aqui que reside a particularidade que exige a mutação constitucional e a distinção acima referidas.
Segundo sítio do TRF4, a Subseção de Santa Cruz do Sul exerce jurisdição sobre Vale Verde, além de outros Municípios, à evidência.
Se a pessoa que tem domicílio em Vale Verde decide ajuizar a ação previdenciária neste juízo, ela, necessariamente, realizará perícia médica na Justiça Federal de Porto Alegre, nos termos do ofício circular n.º 013/2017-CGJ. Se esta pessoa decide ajuizar a ação perante a Justiça Federal de Santa Cruz do Sul, neste Município ela realizará a perícia médica.
Na primeira hipótese, com base no Google Maps, ela terá que se deslocar, no mínimo, 130 km, realizando este percurso, na melhor das hipóteses, em duas horas. Fora o trânsito manifestamente lento de Porto Alegre. Já na segunda hipótese, ela percorrerá breves 33 km, percorríveis em breves 40 min. E sem trânsito! Sem contar que o deslocamento a Santa Cruz é manifestamente mais barato. Não esqueçamos que estamos tratando de pessoas que, em sua maior parte, são pobres e residentes na zona rural.
E meu lugar de fala aqui é autêntico e legítimo, pois transito reiteradamente por todos os Municípios referidos. É para isso, para a familiarização do juiz com a população local, que a Loman exige que o juiz deve residir na sede da comarca.
Nesse quadro, aplicando, sem qualquer consideração (distinção), a regra constitucional da competência por delegação, é evidente o prejuízo ao segurado acaso ajuizada a ação neste juízo. Grosso modo, o segurado terá que se deslocar, para realização de perícia, praticamente o quádruplo de distância acaso tivesse ajuizado a demanda na Justiça Federal.
Poder-se-ia falar no prejuízo de a parte ter que se deslocar a sede deste juízo para algum ato, especialmente para audiência.
O prejuízo ainda persistiria.
Primeiro, porque que em ações previdenciárias que postulam a concessão de auxílio-doença/aposentadoria por invalidez a regra é que nem haja a produção de prova testemunhal.
Segundo, porque, ainda que fosse produzida prova testemunhal em audiência judicial, continuaria mais fácil e célere o deslocamento a Santa Cruz do Sul (distância entre Vale Verde e Santa Cruz do Sul: 33 km) do que a General Câmara (distância entre Vale Verde e General Câmara: 51 km).
Observa-se, portanto, que a competência por delegação acaba, no caso específico e particularizado dos autos, por prejudicar o segurado, tornando faticamente menos acessível o acesso à justiça.
Nesse quadro, para acertamento da norma do art. 109, § 3º, da Constituição Federal, para não subverter a sua lógica, nos casos de ações previdenciárias que postulam a concessão de auxílio-doença/aposentadoria por invalidez ajuizadas por pessoas domiciliadas em Vale Verde, necessário que o feito tramite na Justiça Federal, pois mais acessível ao segurado.
Além disso, a Justiça Federal é mais célere e efetiva, e isto ocorre com maior êxito se a demanda for proposta no Juizado Especial Federal, que possui rito procedimental próprio e o processo digitalizado, bem mais favorável ao segurado, inclusive com a realização de perícia in limine, por contar com amplo quadro de peritos habilitados.
Ante o exposto, DECLINO A COMPETÊNCIA do presente feito à Justiça Federal de Santa Cruz do Sul/RS em face da sua competência material e incompetência da Justiça Estadual, nos termos do artigo 109, inciso I, da CF/88, não se aplicando a competência delegada constitucional (109, § 3º).
Oportunamente, remetam-se os autos ao referido juízo.
Intime-se.
Relatou a agravante, em síntese, que o critério de definição da competência do juízo está previsto no art. 109, §3º, da Constituição Federal, que permite o ajuizamento de ação previdenciária na justiça estadual do domicílio do segurado. Acrescentou que a Lei n. 13.876, que dispôs sobre a competência delegada, somente teve vigência a partir de 1º de janeiro de 2020, não podendo ser aplicada.
O pedido de antecipação de tutela recursal foi parcialmente deferido.
Não foram apresentadas contrarrazões.
VOTO
Na data em que a ação foi proposta, a saber, em 25 de outubro de 2019 (evento 1, OUT2, pág. 2), não se encontrava em vigor a Emenda Constitucional n. 103, de forma que se aplica a redação anterior do art. 109, §3º, da Constituição Federal de 1988:
§ 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.
A Lei n. 5.010, de 30 de maio de 1966, na data da propositura da presente ação, possuía a seguinte redação, no dispositivo que trata da competência delegada da justiça federal:
Art. 15. Nas Comarcas do interior onde não funcionar Vara da Justiça Federal (artigo 12), os Juízes Estaduais são competentes para processar e julgar:
III - os feitos ajuizados contra instituições previdenciárias por segurados ou beneficiários residentes na Comarca, que se referirem a benefícios de natureza pecuniária.
A Lei n. 13.876, de 20 de setembro de 2019, modificou a redação dada ao art. 15, III, da Lei n. 5.010:
Art. 15. Quando a Comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça Estadual:
...................................................................................................................................
III - as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária, quando a Comarca de domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 km (setenta quilômetros) de Município sede de Vara Federal;
Porém, sua vigência, no que diz respeito à limitação da jurisdição federal delegada a critério geográfico (localização a mais de 70 km de município de vara federal), nos termos acima, só ocorreu a partir de 1º de janeiro de 2020, conforme expressamente previu (art. 5º, I), data em que esta ação judicial já havia sido proposta.
O art. 43 do Código de Processo Civil estabelece a definição da competência do juízo na data do registro ou da distribuição da ação: Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.
Se poderia, assim, questionar se, mesmo firmada a competência do juízo estadual, em momento no qual não se encontrava em vigor a Lei n. 13.876, não seria o mesmo incompetente para o processo e o julgamento do feito a partir de 1º de janeiro de 2020.
Por duas razões, no presente momento, parece ser negativa a resposta para a questão.
Primeiro, porque o Conselho da Justiça Federal, em 12 de novembro de 2019, publicou a Resolução n. 603/2019 que estabelece: Art. 4º. As ações, em fase de conhecimento ou de execução, ajuizadas anteriormente a 1º de janeiro de 2020, continuarão a ser processadas e julgadas no juízo estadual, nos termos em que previsto pelo §3º do art. 109 da Constituição Federal, pelo inciso III do art. 15 da Lei n. 5.010, de 30 de maio de 1965, em sua redação original, e pelo art. 43 do Código de Processo Civil.
E, ainda, porque no dia 17 de dezembro de 2019, em decisão proferida no Conflito de Competência n. 170.051-RS, o Ministro Mauro Campbell Marques afetou a matéria em discussão à 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, deferindo ordem liminar de suspensão dos atos de redistribuição de processos da Justiça Estadual para a Justiça Federal.
Na decisão proferida, expressamente estão afirmadas as seguintes determinações e providências:
a): Em caráter liminar, em razão da iminência de atos judiciais declinatórios de competência, observado o princípio da segurança jurídica, DETERMINO a imediata suspensão, em todo território nacional, de qualquer ato destinado a redistribuição de processos pela Justiça Estadual (no exercício da jurisdição federal delegada) para a Justiça Federal, até o julgamento definitivo do presente Incidente de Assunção de Competência no Conflito de Competência.
d): Esclareço que os processos ajuizados em tramitação no âmbito da Justiça Estadual, no exercício da jurisdição delegada, deverão ter regular tramitação e julgamento, independentemente do julgamento do presente Incidente de Assunção de Competência no Conflito de Competência.
Assim, no caso, deve ser determinada a continuidade do procedimento na comarca onde foi proposta a ação, com a prática dos atos processuais (inclusive, sentença, se for o caso) até deliberação posterior do Superior Tribunal de Justiça.
Dispositivo
Em face do que foi dito, voto no sentido de dar parcial provimento ao agravo de instrumento.
Documento eletrônico assinado por OSNI CARDOSO FILHO, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40001930222v5 e do código CRC 6d04d834.Informações adicionais da assinatura:
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Agravo de Instrumento Nº 5000507-23.2020.4.04.0000/RS
RELATOR: Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO
AGRAVANTE: ANGELA MARIA DE ARAUJO SCHARNBERG
AGRAVADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
EMENTA
AGRAVO DE INSTruMENTO. PROCESSUAL CIVIL. JURISDIÇÃO FEDERAL DELEGADA. COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL. INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA. pENDÊNCIA.
1. Proposta a ação previdenciária antes da vigência da Emenda Constitucional nº 103 e, ainda, quando não se encontrava em vigor a Lei nº 13.876, que deu nova redação ao art. 15, III, da Lei nº 5.010, era opção do segurado ajuizá-la no foro da comarca de seu domicílio.
2. A definição da competência do juízo, neste caso, deve ser mantida até decisão definitiva do Conflito de Competência nº 170.051-RS no Superior Tribunal de Justiça, no qual foi suscitado incidente de assunção de competência, com ordem liminar de suspensão, em todo o território nacional, de qualquer ato destinado à redistribuição de processos da justiça estadual (no âmbito de sua competência delegada) para a justiça federal.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por unanimidade, dar parcial provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 18 de agosto de 2020.
Documento eletrônico assinado por OSNI CARDOSO FILHO, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40001930223v5 e do código CRC 469f80a3.Informações adicionais da assinatura:
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO Virtual DE 10/08/2020 A 18/08/2020
Agravo de Instrumento Nº 5000507-23.2020.4.04.0000/RS
RELATOR: Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO
PRESIDENTE: Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO
PROCURADOR(A): JOSE OSMAR PUMES
AGRAVANTE: ANGELA MARIA DE ARAUJO SCHARNBERG
ADVOGADO: ANNA MARIA VICENTE DORNELES (OAB RS050196)
ADVOGADO: CRISTIANE BOHN (OAB RS044490)
AGRAVADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 10/08/2020, às 00:00, a 18/08/2020, às 14:00, na sequência 260, disponibilizada no DE de 30/07/2020.
Certifico que a 5ª Turma, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A 5ª TURMA DECIDIU, POR UNANIMIDADE, DAR PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.
RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO
Votante: Desembargador Federal OSNI CARDOSO FILHO
Votante: Juiz Federal ALTAIR ANTONIO GREGORIO
Votante: Juíza Federal GISELE LEMKE
LIDICE PEÑA THOMAZ
Secretária
Conferência de autenticidade emitida em 30/08/2020 08:00:54.