| D.E. Publicado em 16/06/2017 |
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0000944-38.2014.4.04.9999/RS
RELATOR | : | Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES |
APELANTE | : | IRENE KUSTER MULLER |
ADVOGADO | : | Claudiomiro Antonio Romansin |
APELADO | : | INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS |
ADVOGADO | : | Procuradoria Regional da PFE-INSS |
EMENTA
PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. REQUISITOS. INCAPACIDADE LABORAL. LAUDO PERICIAL. CONSECTÁRIOS LEGAIS. DIFERIMENTO. TUTELA ESPECÍFICA. IMPLANTAÇÃO DO BENEFÍCIO.
1. São três os requisitos para a concessão dos benefícios por incapacidade: a) a qualidade de segurado; b) o cumprimento do período de carência de 12 contribuições mensais; c) a incapacidade para o trabalho, de caráter permanente (aposentadoria por invalidez) ou temporária (auxílio-doença).
2. A concessão dos benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez pressupõe a averiguação da incapacidade para o exercício de atividade que garanta a subsistência do segurado, e terá vigência enquanto permanecer ele nessa condição.
3. A incapacidade laboral é comprovada através de exame médico-pericial e o julgador, via de regra, firma sua convicção com base no laudo, entretanto não está adstrito à sua literalidade, sendo-lhe facultada ampla e livre avaliação da prova.
4. No caso dos autos, o laudo pericial indicou que a parte autora é portadora de doença degenerativa discal lombar, razão pela qual é devida a concessão do benefício.
5. Termo inicial do benefício na data da cessação administrativa, uma vez evidenciado que a incapacidade estava presente àquela data.
6. A definição dos índices de correção monetária e juros de mora deve ser diferida para a fase de cumprimento do julgado.
7. O cumprimento imediato da tutela específica independe de requerimento expresso do segurado ou beneficiário, e o seu deferimento sustenta-se na eficácia mandamental dos provimentos fundados no art. 461 do CPC/1973, bem como nos artigos 497, 536 e parágrafos e 537 do CPC/2015.
8. A determinação de implantação imediata do benefício, com fundamento nos artigos supracitados, não configura violação dos artigos 128 e 475-O, I, do CPC/1973 e 37 da CF/88.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao apelo, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 30 de maio de 2017.
Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES
Relator
| Documento eletrônico assinado por Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 8948926v3 e, se solicitado, do código CRC 26132234. | |
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APELAÇÃO CÍVEL Nº 0000944-38.2014.4.04.9999/RS
RELATOR | : | Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES |
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RELATÓRIO
Trata-se de apelação contra sentença que julgou improcedente o pedido de concessão do benefício de auxílio-doença/aposentadoria por invalidez, condenando a parte autora ao pagamento de custas processuais e de honorários advocatícios, arbitrados em 10% sobre o valor da causa, suspensa a respectiva exigibilidade em face do deferimento da gratuidade de justiça.
A parte autora, em suas razões, sustenta que o laudo pericial concluiu por ser portadora de hérnia discal (CID M51.1), mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, diz que está apta para suas atividades laborais. Aduz, ainda, que o laudo elaborado por fisioterapeuta indica incapacidade laborativa multiprofissional, o que resta corroborado pelos exames também anexados aos autos.
Com contrarrazões, vieram os autos conclusos.
Esta Corte, todavia, entendeu por baixar os autos em diligência para a realização de nova perícia por médico especialista em ortopedia/traumatologia (fls. 99/100).
É o relatório.
VOTO
Do novo CPC (Lei 13.105/2015)
Consoante a norma inserta no art. 14 do CPC/2015, "a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada". Portanto, apesar da nova normatização processual ter aplicação imediata aos processos em curso, os atos processuais já praticados, perfeitos e acabados não podem mais ser atingidos pela mudança ocorrida a posteriori.
Nesse sentido, serão examinados segundo as normas do CPC de 2015 tão somente os recursos e remessas em face de sentenças publicadas a contar do dia 18/03/2016.
Da ordem cronológica dos processos
Dispõe o art. 12 do Novo CPC (Lei nº 13.105/2015, com redação da Lei nº 13.256/2016) que "os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão", estando, contudo, excluídos da regra do caput, entre outros, "as preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça" (§2º, inciso VII), bem como "a causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada" (§2º, inciso IX).
O caso presente encontra-se dentre aqueles considerados urgentes no julgamento, vez que se refere a benefício por incapacidade, estando a parte autora, hipossuficiente, hipoteticamente impossibilitada de laborar e obter o sustento seu e de familiares.
Dos requisitos para a concessão do benefício
A concessão de benefícios por incapacidade laboral está prevista nos artigos 42 e 59 da Lei 8.213/91, verbis:
Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.
Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 dias consecutivos.
Extrai-se, da leitura dos dispositivos acima transcritos, que são três os requisitos para a concessão dos benefícios por incapacidade: a) a qualidade de segurado; b) o cumprimento do período de carência de 12 contribuições mensais; c) a incapacidade para o trabalho, de caráter permanente (aposentadoria por invalidez) ou temporária (auxílio-doença).
Da qualidade de segurado e do período de carência
Quanto ao período de carência (número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício), estabelece o art. 25 da Lei de Benefícios da Previdência Social:
Art. 25. A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social depende dos seguintes períodos de carência:
I - auxílio-doença e aposentadoria por invalidez: 12 contribuições mensais;
Na hipótese de ocorrer a cessação do recolhimento das contribuições, prevê o art. 15 da Lei nº 8.213/91 o denominado "período de graça", que permite a prorrogação da qualidade de segurado durante um determinado lapso temporal:
Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições:
I - sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício;
II - até 12 (doze) meses após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração;
III - até 12 (doze) meses após cessar a segregação, o segurado acometido de doença de segregação compulsória;
IV - até 12 (doze) meses após o livramento, o segurado retido ou recluso;
V - até 3 (três) meses após o licenciamento, o segurado incorporado às Forças Armadas para prestar serviço militar;
VI - até 6 (seis) meses após a cessação das contribuições, o segurado facultativo.
§ 1º O prazo do inciso II será prorrogado para até 24 (vinte e quatro) meses se o segurado já tiver pago mais de 120 (cento e vinte) contribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de segurado.
§ 2º Os prazos do inciso II ou do § 1º serão acrescidos de 12 (doze) meses para o segurado desempregado, desde que comprovada essa situação pelo registro no órgão próprio do Ministério do Trabalho e da Previdência Social.
§ 3º Durante os prazos deste artigo, o segurado conserva todos os seus direitos perante a Previdência Social.
§ 4º A perda da qualidade de segurado ocorrerá no dia seguinte ao do término do prazo fixado no Plano de Custeio da Seguridade Social para recolhimento da contribuição referente ao mês imediatamente posterior ao do final dos prazos fixados neste artigo e seus parágrafos.
Prevê a LBPS que, decorrido o período de graça na forma do § 4º, as contribuições anteriores à perda da qualidade de segurado somente serão computadas para efeitos de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido.
Cumpre destacar que no caso dos segurados especiais não há obrigatoriedade de preenchimento do requisito carência conforme acima referido, sendo necessária, porém, a comprovação de atividade rural no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, mesmo que de forma descontínua. Eis a disciplina do art. 39, da Lei 8.213/91:
Art. 39. Para os segurados especiais, referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, fica garantida a concessão: I - de aposentadoria por idade ou por invalidez, de auxílio-doença, de auxílio-reclusão ou de pensão, no valor de 1 (um) salário mínimo, e de auxílio-acidente, conforme disposto no art. 86, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período, imediatamente anterior ao requerimento do benefício, igual ao número de meses correspondentes à carência do benefício requerido (...)
Nestes casos, o tempo de serviço rural deve ser demonstrado mediante a apresentação de início de prova material contemporânea ao período a ser comprovado, complementada por prova testemunhal idônea, não sendo esta admitida exclusivamente, a teor do art. 55, § 3º, da Lei 8.213/91, e Súmula 149 do STJ. Entretanto, embora o art. 106 da LBPS relacione os documentos aptos à comprovação da atividade rurícola, tal rol não é exaustivo, sendo admitidos outros elementos idôneos.
Da comprovação da incapacidade laboral
A concessão dos benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez pressupõe a averiguação, através de exame médico-pericial, da incapacidade para o exercício de atividade que garanta a subsistência do segurado, e terá vigência enquanto essa condição persistir. Ainda, não obstante a importância da prova técnica, o caráter da limitação deve ser avaliado conforme as circunstâncias do caso concreto. Isso porque não se pode olvidar de que fatores relevantes - como a faixa etária do requerente, seu grau de escolaridade e sua qualificação profissional, assim como outros - são essenciais para a constatação do impedimento laboral e efetivação da proteção previdenciária.
Dispõe, outrossim, a Lei 8.213/91 que a doença ou lesão de que o segurado já era portador ao filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social não lhe conferirá direito ao benefício, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento da doença ou lesão.
Do caso concreto
A presente ação foi distribuída em 02/08/2012 no Juízo Estadual de Constantina/RS com pedidos atinentes a benefícios por incapacidade.
A qualidade de segurado e o cumprimento do requisito da carência não foram contestados de forma contundente pelo INSS, não sendo, a priori, pontos controvertidos na presente ação. Assim, a matéria central a ser enfrentada, e motivo da decisão administrativa, diz respeito ao requisito da incapacidade.
Durante a instrução processual, foram realizadas três perícias judiciais; o último exame (fls. 111/142) pelo Dr. Rafael Ricardo Lazzari, especialista em ortopedia/traumatologia, chegando às seguintes conclusões:
- quadro mórbido: doença degenerativa discal lombar (CID M51.3);
- incapacidade: não há para as atividades habituais;
- idade no momento da perícia: 58 anos (nascimento em 22/09/1958);
- atividades laborais: agricultura - de natureza braçal.
O expert, corroborando a primeira perícia, ainda consignou:
"APTA para as atividades compatíveis para o sexo feminino, na agricultura.
(...)
Apenas limitações leves para o trabalho."
Na primeira perícia realizada no curso do processo (fls. 59/61), pelo Dr. Sebastião Montaury Gomes Vidal Filho especialista em ortopedia, há informação no sentido de que "não existe incapacidade ao trabalho".
Vale referir que, embora o segundo exame realizado (fls. 70/75) tenha concluído por ser a enfermidade irreversível e de ordem progressiva, o laudo foi elaborado por fisioterapeuta, e não médico especialista na moléstia que acomete a autora.
Ainda que a prova técnica tenha afastado a incapacidade laborativa, constam dos autos documentos médicos, expedidos nas datas de 27/06/2011, 05/09/11 e 13/09/11, que atestam a incapacidade laborativa em razão da enfermidade ortopédica na coluna (fls. 30-31 e 44).
Cabe afirmar que a jurisprudência entende que não está o juiz preso à literalidade do laudo pericial, sendo-lhe facultada ampla e livre avaliação da prova. Assim, nos casos em que o quadro clínico, pelo contexto probatório dos autos, revela incapacidade da parte para o trabalho, tem-se entendido pelo deferimento do benefício, ainda que a perícia afaste a inaptidão ao labor.
Há que se considerar, também que a autora possui idade avançada e é trabalhadora rural, atividade que demanda a realização de esforços físicos de forma constante. Aliás, no tocante à afirmação do expert de que a autora estaria apta para o desempenho de "atividades compatíveis para o sexo feminino, na agricultura", considero que não se pode deduzir que a parte é capaz ao labor simplesmente por ser mulher. A respeito do tema, valho-me dos fundamentos exarados pelo Desembargador Federal Roger Raupp Rios, em voto proferido nos autos da Apelação Cível n. 0004364-17.2015.4.04.9999/SC, que aborda com propriedade a questão:
Com a vênia da e. relatora, acompanho a divergência.
Considerando o teor do laudo, que conclui pela capacidade valorando expressamente a pretensa diferença do trabalho rural feminino em face do masculino, tomo a liberdade de agregar algumas ponderações, dada a alta relevância constitucional do tema.
De fato, a Constituição proíbe discriminação em virtude do sexo. Vale dizer, em princípio está obrigado um tratamento igual, para todos os fins, de homens e mulheres, o que inclui decisões administrativas e judiciais relativas ao acesso a benefícios previdenciários. Poder-se-ia objetar que tal leitura estritamente antidiferenciadora da proibição de discriminação por motivo de sexo desconheceria a dimensão material do princípio da igualdade, que exige tratamento diferenciado onde estiverem presentes diferenças relevantes. Esse, conforme a conclusão do laudo, seria o caso da constatação de capacidade laboral diante das condições diferenciadas do trabalho masculino e do trabalho feminino nas lides rurais.
No entanto, essa premissa não se sustenta diante de um olhar mais cuidadoso.
Conforme registra a literatura especializada, a percepção de que o labor feminino rural é menos exigente que o masculino decorre muito mais de uma perspectiva machista, que invisibiliza e desvaloriza as várias atividades desempenhadas pela mulher, do que da realidade. Como demonstra Anita Brumer ("Gênero e Agricultura: a situação da mulher na agricultura do Rio Grande do Sul", Revista de Estudos Femininos, Florianópolis, 1291):360, janeiro-abril/2004), as mulheres rurais trabalham em dupla jornada, dão conta dos afazeres domésticos e relacionados à reprodução, exercem tarefas envolvendo colheita e criação de animais, submetem-se a trabalhos repetitivos, tediosos e desvalorizados, alcançam jornadas superiores aos homens (chegando em média a 16 horas diárias), realidade inclusive que se agrava com a modernização dos meios de produção rurais.
Como demonstra tal estudo, "o caráter de 'pesado' ou 'leve' da atividade é relativa e culturalmente determinada, uma vez que, na esfera de suas atividades (doméstica), a mulher executa tanto trabalhos 'leves' como trabalhos 'pesados' (como trabalhar na colheita dos produtos agrícolas, carregar os filhos e buscar água em lugares distantes do domicílio). Essa constatação levou Maria Ignez Paulilo a concluir que "o trabalho é 'leve' (e a remuneração é baixa), não devido a suas características, mas devido à posição ocupada na hierarquia da família por aqueles que executam o trabalho" (p. 211).
Trata-se, nesse sentido, do fenômeno discriminatório sexista que innvisibiliza o verdadeiro caráter, importância e intensidade do trabalho feminino, estabelecendo relações de gênero subordinantes das mulheres e privilegiadoras dos homens, tudo em desacordo com a norma constitucional antidiscriminatória.
No caso, tal dinâmica, que se expressa concretamente no meio rural, corresponde ao preconceito mais amplo com o trabalho feminino e sua exploração (desvalorizado como "mera participação nos cuidados da casa") foi destacado tanto por feministas como por Hannah Arendt, ao elaborar a célebre distinção entre "labor" e "trabalho", à qual correspondem às ideias de "trabalho produtivo" e "trabalho improdutivo" (onde se inseriria o doméstico).
A valoração das atividades humanas, em dada sociedade, como trabalho, com tal ou qual valor ou desvalor, só tem sentido historica e culturalmente situado, como demonstra Henrique C. Nardi (Ética, Trabalho e Subjetividade, Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006, p. 26 e seguintes).
Transcrevo oportuna e precisa síntese (Maria Ignez Paulilo, 'Trabalho doméstico: reflexões a partir de Polanyi e Arendt', disponível em http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c-v8n1_ignez.htm):
"Hannah Arendt (1981:137), ao discutir as esferas pública e privada, retoma a distinção entre "labor" e "trabalho", dizendo que "a revolução industrial substituiu todo artesanato pelo labor. O resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do labor, cujo destino natural é serem consumidos, ao invés de produtos de trabalho, que se destinam a ser usados, ao mesmo tempo em que demonstra o quanto o "labor" foi desprezado antes da era moderna. Para ela, "a súbita e espetacular promoção do labor, da mais humilde e desprezível posição à mais alta categoria, como a mais estimada das atividades humanas", começou com Locke, prosseguiu com Adam Smith e atingiu seu clímax com Marx.
Em seu emprego antigo, o termo "labor" designava as atividades ligadas à luta do homem contra as necessidades, luta cotidiana e repetitiva, travada no interior das famílias, que não produzia qualquer resultado duradouro. Entre os gregos, nenhuma atividade cujo fim era garantir o sustento do indivíduo era digna de pertencer à nobre esfera da política. Na privacidade da família, o homem não existia como um "ser verdadeiramente humano", mas como pertencente à "espécie animal humana" (Id.Ibid.: 55). Nada surpreende então que este tipo de atividade fosse desempenhada pelo escravo, pelo animal laborans e não pelo homo faber.
Para Arendt, a distinção entre "labor" e "trabalho" era ignorada na antiguidade clássica. Só começa a aparecer quando a produtividade do labor ultrapassa o doméstico e consegue produzir algo mais duradouro que a manutenção física. A era moderna, porém, não produziu uma teoria que distinguisse com clareza estas duas noções. O que houve foram tentativas de distinção, sendo a mais importante delas a que separa "trabalho produtivo" de "trabalho improdutivo". É curioso que, segundo a autora,
(...) a era moderna (...) tendo glorificado o trabalho (labor) como fonte de todos os valores (...) não tenha produzido uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber (...). Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo; um pouco mais tarde, a diferenciação entre trabalho qualificado e não-qualificado; e, finalmente, sobrepondo-se a ambas (...), a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. Das três, porém, somente a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo vai ao fundo da questão; e não foi por acaso que os dois teoristas do assunto, Adam Smith e Karl Marx, basearam nela toda a estrutura do seu argumento. (...) estavam de acordo com a moderna opinião pública quando menosprezavam o trabalho improdutivo, que para eles era parasítico, uma espécie de perversão do trabalho, como se fosse indigno deste nome toda a atividade que não enriquecesse o mundo. (...) a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo contém, embora eivada de preconceito, a distinção mais fundamental entre trabalho e labor" (Arendt, 1981: 96/8).
É desta tradição que surge a noção do trabalho doméstico como "improdutivo" , hierarquicamente inferior ao "produtivo", e é desta hierarquia que deriva a visão do trabalho da mulher rural apenas como "ajuda" ao do marido, quase como um não-trabalho. A idéia de que só as atividades que podem ser vendidas são trabalho, faz com que mesmo quando a lógica não é a do esforço individualmente remunerado, caso da agricultura familiar, tenham maior importância as atividades daqueles que seriam mais valorizados no mercado de trabalho, ou seja, os homens. Jerzy Tepicht (1976) analisa a importância do que ele chama de "forças marginais" (mulheres, crianças e idosos) na persistência e competitividade da agricultura camponesa. Em uma cadeia de preconceitos entrelaçados sobre o pano de fundo da posição subordinada da mulher na sociedade, a herança, o casamento e o acesso da mulher à terra acrescentam mais elos à corrente já pesada de discriminações que são seu próprio cerne. "
Considerando esses elementos, peço vênia à e. relatora para acompanhar a divergência.
Diante desse cenário, a sentença proferida pelo Juízo a quo deve ser reformada, a fim de que se reconheça o direito da parte autora ao restabelecimento do benefício de auxílio-doença até a concessão de aposentadoria por idade.
Conclusão
A apelação da parte autora foi provida, para conceder-lhe auxílio-doença desde a cessação do benefício (05/10/11) até a data da implantação da aposentadoria por idade (23/09/11).
Dispositivo
Ante o exposto, voto por dar provimento à apelação.
É o voto.
Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES
Relator
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO DE 30/05/2017
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0000944-38.2014.4.04.9999/RS
ORIGEM: RS 00018884320128210092
RELATOR | : | Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES |
PRESIDENTE | : | Paulo Afonso Brum Vaz |
PROCURADOR | : | Dr. Claudio Dutra Fontella |
APELANTE | : | IRENE KUSTER MULLER |
ADVOGADO | : | Claudiomiro Antonio Romansin |
APELADO | : | INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS |
ADVOGADO | : | Procuradoria Regional da PFE-INSS |
Certifico que este processo foi incluído na Pauta do dia 30/05/2017, na seqüência 363, disponibilizada no DE de 12/05/2017, da qual foi intimado(a) INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, a DEFENSORIA PÚBLICA e as demais PROCURADORIAS FEDERAIS.
Certifico que o(a) 5ª TURMA, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, em sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A TURMA, POR UNANIMIDADE, DECIDIU DAR PROVIMENTO À APELAÇÃO.
RELATOR ACÓRDÃO | : | Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES |
VOTANTE(S) | : | Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES |
: | Des. Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ | |
: | Des. Federal ROGERIO FAVRETO |
Lídice Peña Thomaz
Secretária de Turma
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