
Apelação Cível Nº 5005614-53.2022.4.04.9999/SC
RELATOR: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ
APELANTE: MARIA DA APARECIDA IACHITZKI
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
RELATÓRIO
Cuida-se de apelação interposta pela parte autora em face da sentença, publicada em 01/04/2022 (e.
), que julgou improcedente o pedido de benefício assistencial devido à pessoa com deficiência.Sustenta, em síntese, que preenche os requisitos necessários à concessão da prestação continuada requerida, diante da incapacidade pela estigmatização social e pela imprevisibilidade da melhora. Requer o provimento do recurso, a fim de que seja concedido o benefício (e.
).Com as contrarrazões, subiram os autos a esta Corte para julgamento.
A Procuradoria Regional da República da 4ª Região opinou pelo desprovimento do recurso (e.
).É o relatório.
VOTO
A parte autora (32 anos de idade atualmente) objetiva a concessão de Benefício de Prestação Continuada à Pessoa com Deficiência desde 15/06/2018 (DER do NB 703.654.395-8), decorrente do diagnóstico de transtorno afetivo bipolar (CID 10 F31.6).
Premissas
O benefício assistencial é devido à pessoa idosa (65 anos de idade) ou com deficiência, assim considerada aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (Lei 8.742/1993, art. 20, §2º, com a redação dada pela Lei 13.146/2015), que não tenha condições de prover sua manutenção e nem tê-la provida por sua família, nos termos do art. 20, §3º, da Lei 8.742/1993.
Exame do caso concreto
No caso em tela, reside a controvérsia quanto à qualidade ou não de pessoa com deficiência da parte autora, restando incontroverso o critério econômico, diante da miserabilidade do grupo familiar.
No ponto, o juízo a quo examinou a questão nestes termos:
No caso dos autos, verifica-se que a autora não se enquadra no conceito legal de pessoa com deficiência, pois o perito médico especialista em psiquiatria concluiu: "De acordo com a análise dos autos, dos documentos médicos acostados e apresentados em perícia, do exame do estado mental da autora, histórico clínico referido, a periciada apresenta transtorno afetivo bipolar em remissão, transtorno mental codificado pela CID F31.7. Consideramos que não se evidenciam alterações psicopatológicas que objetivem incapacidade laboral, não se objetivando alterações cognitivas, da praxia ou da volição que corroborem as alegações da parte autora na presente demanda. A autora não é portadora de deficiência, não havendo enquadramento médico legal para a concessão de benefício assistencial, conforme esta perícia médica psiquiátrica previdenciária" (evento 54). Ou seja, a autora não possui impedimento de longo prazo.
Saliente-se que o laudo pericial não foi impugnado por profissional qualificado na forma do art. 433, parágrafo único, do Código de Processo Civil, nem mesmo houve qualquer impugnação da parte autora quanto ao perito nomeado, não havendo como se derruir a conclusão técnica lançada por especialista na patologia apontada pela demandante.
Assim, conclui-se que o quadro apresentado não se ajusta ao conceito de pessoa com deficiência, nos termos do artigo 20, § 2º, da Lei 8.742/1993, com redação dada pela Lei 12.435/2011. (grifos no original)
Na ocasião da perícia médica judicial, realizada pelo médico José Lúcio da Silveira, com especialização em Psiquiatria registrada no CREMESC (e.
), atestando o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar em remissão, o histórico da autora foi assim relatado:A autora relata que nasceu em Canoinhas, onde sempre morou. Relata que é a caçula de uma prole de quatro filhos. Relata que quando nasceu seu pai deixou o lar, tendo sido “criada” (s.i.c) apenas pela mãe. Refere que sua genitora faleceu há cerca de seis anos atrás, por leucemia.
Relata que o pai nasceu em 1952 e que o mesmo mora atualmente com uma filha, irmã da entrevistada, em Quitandinha – PR. Refere que o pai é cardiopata.
Aponta que tem uma irmã, atualmente com 44 anos de idade, que é “surdomuda” (s.i.c). relata que essa irmã recebe um benefício assistência, e ao ser indagada, aponta que “é BPC”.
Refere que estudou até a sexta série, referindo que tinha alguma dificuldade de aprendizagem inicial “reprovou quatro anos na primeira série”, refere então que aprendeu a ler a escrever aos 13 ou 14 anos de idade. Recorda que estudou até sexta série, tendo alguma dificuldade escolar em matemática.
Relembra que começou a trabalhar aos 12 anos. Ficou um período fora da escola por dois anos, quando ajudava a mãe, que trabalhava como empregada doméstica, na casa de uma família. Morou com a mãe até os 21 anos de idade, quando contraiu união estável com seu atual esposo, seu primeiro namorado. Refere que o esposo está desempregado, e que em seu último emprego, trabalhava como auxiliar de produção na indústria madeireira. A autora aponta ainda que atualmente o mesmo “ faz bicos como jardineiro”.
Relata que namorou o esposo por um ano e meio, engravidou do seu primeiro filho, nascido em 2012. Relata então que segunda filha nasceu em 2015. Afirma que os filhos nasceram de parto normal em Canoinhas.
A autora relata que aos 16 anos de idade, sofreu abuso sexual. Refere que, na ocasião, realizou dois anos de tratamento psicológico no programa sentinela. Refere que iniciou tratamento interrupto em CAPS nesta ocasião.
Recorda que por ocasião do falecimento da sua mãe, apresentou “depressão forte, angústia, tristeza, não conseguia dormir”, retomando então o tratamento no CAPS, que foi posteriormente interrompido. Relata que se tratou por cerca de um ano, e que por “achar que estava boa” interrompeu o tratamento novamente.
Relata que no ano de 2018, sofreu uma internação psiquiátrica no Hospital da cidade de Três Barras por cerca de uma semana, por tentativa de autoextermínio, por enforcamento e ingestão de medicação. A partir da alta hospitalar, aponta que retomou o tratamento em CAPS, que mantido initerruptamente até os dias de hoje. Refere que suas consultas médicas se dão em intervalos trimestrais, e que utiliza diariamente os seguintes psicofármacos: fluoxetina 40mg, carbamazepina 400mg, carbonato de lítio 300mg de 12/12horas, clorpromazina 100mg à noite.
Relata que com uso diário da medicação tem melhora considerável de ansiedade, da angústia e do choro fácil. Indagada refere que episodicamente apresenta dificuldades em conciliar o sono, e que “ás vezes, tem dificuldades de memória ou atenção” e que “não tem ânimo” (s.i.c).
Refere que só sai de casa para levar as crianças na escola, que acorda por volta das oito horas da manhã, que prepara as refeições em casa, referindo que dá conta dos afazeres domésticos. Relata que quando é necessário, sai de casa para pegar as medicações ou comparecer em atendimento médico. Refere que não gosta de ir ao mercado, ou receber dinheiro no banco, e que sente mal ao sair na rua.
Atualmente, além dos psicofármacos, utiliza antiespasmódico em função de cálculos renais conforme seu relato. Como histórico cirúrgico relata que sofreu cirurgia por ocasião do nascimento de sua segunda filha “para retirada da placenta” (si.ic)
Nega histórico atual ou pregresso do uso de álcool, drogas ilícitas e tabaco.
No entanto, entendeu que:
A autora apresenta doença estabilizada por uso diário de medicação, não apresentando em perícia alterações do exame do estado mental. Relata que realiza atividades domésticas, prepara as refeições e cuida da casa, bem como dos dois filhos menores. Relata ainda que cuida de uma irmã portadora de desenvolvimento mental incompleto. Desta forma consideramos que a autora não apresenta enquadramento médicolegal, para a concessão de benefício assistencial/LOAS. Apresenta diagnóstico de transtorno mental, que não se enquadra nos critérios de deficiência.
Não obstante as considerações esposadas pelo expert, sabe-se que o juízo não está adstrito às conclusões do laudo médico pericial, nos termos do artigo 479 do NCPC (Art. 479. O juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371, indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito), podendo discordar, fundamentadamente, das conclusões do perito em razão dos demais elementos probatórios coligidos aos autos, inclusive os aspectos socioeconômicos, profissionais e culturais do segurado, ainda que o laudo pericial apenas tenha concluído pela sua incapacidade parcial para o trabalho (AgRg no AREsp 35.668/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe 20-02-2015).
Assim, tendo a perícia certificado a existência da patologia alegada pela parte autora, o juízo de incapacidade pode ser determinado, sem sombra de dúvidas, pelas regras da experiência do magistrado, consoante preclara disposição do artigo 375 do NCPC (O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.). Destaca-se que tal orientação vem prevalecendo no âmbito do Egrégio STJ ao ratificar, monocraticmente, decisões que levaram em consideração os aspectos socioeconômicos, profissionais e culturais do segurado para superar o laudo pericial (v.g. AREsp 1409049, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJ 21-02-2019).
Dessa forma, saliente-se que a incapacidade para a vida independente a que se refere a Lei 8.742/93, na redação original, deve ser interpretada de forma a garantir o benefício assistencial a uma maior gama possível de pessoas com deficiência, consoante pacífica jurisprudência do STJ (v.g. STJ, 5ª Turma, RESP 360.202/AL, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 01-07-2002) e desta Corte (v.g. AC n. 2002.71.04.000395-5/RS, 6ª Turma, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, DJU de 19-04-2006).
Assim, a incapacidade para a vida independente (a) não exige que a pessoa possua uma vida vegetativa ou seja incapaz de se locomover; (b) não significa incapacidade para as atividades básicas do ser humano, tais como alimentar-se, fazer a higiene pessoal e vestir-se sozinho; (c) não impõe a incapacidade de se expressar ou se comunicar; e (d) não pressupõe dependência total de terceiros.
A Proteção Social almejada pela Constituição, que condensa a vontade do povo, está intimamente relacionada com a prática da Justiça Social. Enquanto importante vértice desta, a proteção social supõe a redução das desigualdades, objetivo que representa a busca incessante da equidade como valor estruturante de uma sociedade democrática e fraterna baseada no respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa.
Um dos desafios primordiais é a igualização das pessoas com deficiência. É dizer: o desiderato constitucional, traduzido em políticas públicas assistenciais, de possibilitar aos deficientes, o quantum satis, a compensação de suas limitações, para que possam desfrutar de uma vida normal ou igual aos demais indivíduos em termos de capacidades e oportunidades.
Embora não seja suficiente, a renda mínima de subsistência proporcionada pelo BPC é imprescindível. Representa, digamos assim, o início de tudo! Bem lembra Diniz (Deficiência e igualdade: o desafio da proteção social. In: MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia (org.). Deficiência e igualdade. Brasília: LetrasLivres - EdUnB, 2010, p. 14), que a "inclusão das pessoas deficientes na vida social passa por assegurar-lhes um nível básico de rendimento e, ao que tudo indica, esse nível pode ser maior que o necessário para as demais pessoas".
Na execução das políticas públicas assistenciais voltadas às pessoas com deficiência, o primeiro desafio é distinguir incapacidade para o trabalho com deficiência. Tem-se visto, no exercício da magistratura, amiúde, essa confusão a permear as avaliações técnicas e a compreensão judicial acerca da deficiência.
A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas, aprovada e ratificada pelo Brasil, define pessoas com deficiência como "aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas".
Considera-se que a partir da internalização da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU no sistema normativo brasileiro, com dignidade de Emenda Constitucional, houve substituição do conceito de deficiência como incapacidade para o trabalho e para a vida independente para um novo conceito de deficiência.
A deficiência encontra-se agora conceituada pelo preâmbulo Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em sua alínea "e", "reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas".
A circunstância de a Convenção ter sido aprovada na forma do disposto no art. 5º, § 3º, da CF, com hierarquia normativa equivalente a emenda constitucional, confere-lhe maior relevância, tornando obrigatória a sua consideração por toda e qualquer norma infraconstitucional sobre a matéria, revogadas as que lhe sejam afrontosas.
O primeiro avanço na avaliação técnica da deficiência ocorreu com a introdução dos novos parâmetros para avaliação do requisito de deficiência. O Decreto nº 6.214/07, que regulamentou o benefício de prestação continuada, tratou de nortear a avaliação da deficiência do segurado, exigindo a observância da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde - CIF, e a realização da perícia social, a partir de 2009.
Art. 16. A concessão do benefício à pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento, com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde - CIF, estabelecida pela Resolução da Organização Mundial da Saúde no 54.21, aprovada pela 54a Assembleia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001 (Redação dada pelo Decreto nº 7.617, de 2011).
[...]
2° A avaliação social considerará os fatores ambientais, sociais e pessoais, a avaliação médica considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e ambas considerarão a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social, segundo suas especificidades (Redação dada pelo Decreto n° 7.617, de 2011).
Conforme preceitua o art. 20 da Lei n° 8.742/93, com a redação que lhe foi dada pela Lei n° 12.435, de 2011),
O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
Na redação original do art. 20, § 2º, da Lei n° 8.742/93, era considerada pessoa com deficiência aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.
A Lei n° 12.470/2011 definiu a pessoa com deficiência como aquela portadora de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
E a Lei n° 13.146/2015 alterou apenas a parte referente às barreiras, ao considerar pessoa com deficiência quem tem impedimentos de longo prazo, os quais, em contato com uma ou mais barreiras, podem obstruir sua participação plena e em igualdade de condições na sociedade.
Com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), a redação do art. 20, § 2º, da Lei n° 8.742/93, passou a ser a seguinte:
Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Para dar sentido ao novel texto legal, precisa-se recorrer ao art. 3º, inciso IV, da Lei 13.146/15, que traz a conceituação das diferentes espécies de barreiras que podem obstruir a participação em igualdade de condições da pessoa com deficiência:
IV- barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias.
Portanto, é patente a diferença entre os dois conceitos. A incapacidade necessita da deficiência, e que esta impeça o regular exercício das atividades laborais, enquanto que a deficiência não pressupõe a incapacidade para estar presente.
Conclui-se que, no plano normativo, é defeso conceituar a deficiência que enseja o acesso ao BPC-LOAS como aquela que incapacite a pessoa para a vida independente e para o trabalho. Deficiente passa a ser "aquele que possui algum tipo de impedimento, que, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas".
Cumpre lembrar, como premissa, que o conceito de deficiência deve ser conjugado com a situação de vulnerabilidade ou precariedade econômica, o que torna ainda mais acentuadas as dificuldades do deficiente em relação à hostilidade do ambiente social. Para um deficiente oriundo de família abastada, as suas limitações podem ser compensadas com certa facilidade (cuidados especiais, tecnologia, logística etc), mas para o pobre, os desafios serão sempre mais difíceis de serem transpostos, exacerbando as suas desigualdades sociais.
Evidentemente, a perícia e a compreensão judicial acerca da deficiência precisam levar em conta tais pressupostos. Uma análise que se limita ao conceito de deficiência enquanto exclusiva limitação do corpo (modelo biomédico), sem atentar para a relação indivíduo/sociedade (modelo biopsicossocial), coloca por terra o próprio desiderato constitucional de Proteção Social aos deficientes. Bem observou o Desembargador Federal Roger Raupp Rios (TRF4, 5ª Turma, Apelação Cível n° 5006532-93.2014.4.04.7006/PR, j. 11/10/2016):
No modelo integrado essa conclusão é resultante de uma avaliação onde as duas dimensões estão presentes, indissoluvelmente relacionadas. Isso porque o que seja "impossibilidade de desempenho" e até mesmo o que seja "doentio" não são definições médicas separadas do mundo social. É na vida em sociedade que se define o que é e quando há "impossibilidade de desempenho com conseqüente incapacidade de ganho" e o que é "doentio" ou "saudável".
Não se pode esquecer que a sociedade moderna está organizada com base em práticas, costume, valores, preconceitos e estruturas sociais que pressupõem o convívio de pessoas (corpos) sem impedimentos, sem limitações, o que, via de regra, conspira para a hostilização do ambiente social, no sentido de exacerbar a opressão social sofrida por pessoas deficientes.
Por outro lado, revela-se equivocada a avaliação da deficiência que considera apenas implicações para a pessoa do deficiente, olvidando que a vida social e particular dele depende, quase que invariavelmente, da ajuda e dos cuidados de terceiros. Por isso, lembra Diniz (2010, p. 14), que "as políticas voltadas à deficiência não devem ser confundidas com políticas para deficientes apenas, e sim abarcar todas aquelas pessoas que fazem parte da esfera de cuidados do deficiente".
Vale aqui lembrar que deficiência não significa que a pessoa esteja submetida a uma vida vegetativa, totalmente dependente dos cuidados de terceiros, e que não tenha condições de locomover-se, de comunicar-se e de executar atividades básicas, como higienizar-se, vestir-se e alimentar-se com autonomia.
Por conseguinte, as perícias médicas realizadas para fins de concessão de benefício assistencial devem ser avaliadas diferentemente dos exames realizados nos casos de concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, consoante leciona Wederson Santos, no artigo O que é incapacidade para a proteção social brasileira? (in Deficiência e igualdade: o desafio da proteção social. In: MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia (org.). Deficiência e igualdade. Brasília: LetrasLivres - EdUnB, 2010, p. 178-190):
As perícias médicas do INSS avaliam os impedimentos corporais das pessoas solicitantes do BPC no sentido de ponderar não o quanto tais impedimentos reduzem as chances de as pessoas suprirem as necessidades básicas como garantia da dignidade humana, mas o quanto a capacidade produtiva dos corpos pode ser afetada. [...] No entanto, a desigualdade pela deficiência é resultado de variados fatores que determinam pela opressão social - muitas vezes, fatores de desigualdade e vulnerabilidade social que se sobrepõem. O desenho da política social não pode permitir que aspectos da deficiência tenham centralidade enquanto outros são silenciados pelas perícias. [...] Diferentemente do BPC, as perícias para a aposentadoria por invalidez buscam primordialmente no histórico das atividades laborais os indicadores para mensurar quais habilidades corporais foram afetadas pelo acidente ou doença. No caso do benefício assistencial, a transferência de renda está amparada o princípio constitucional de que a assistência social é para quem dela necessitar, o que pressupõe que as perícias para o benefício previdenciário e o assistencial não devem ter os mesmos critérios de julgamento. Uma das explicações possíveis para os peritos médicos utilizarem os mesmos parâmetros da aposentadoria para BPC é tentativa de dar objetividade ao critério da incapacidade para o trabalho. Diante da ausência de elementos capazes de mensurar a desigualdade que as pessoas sofrem em razão dos corpos com deficiência, as perícias médicas para assistência social sobrevalorizam aspectos mensuráveis, como o histórico trabalhista e as habilidades corporais.
[...] O discurso biomédico sobre os impedimentos corporais tende a valorizar quaisquer restrições funcionais, corporais ou cognitivas que as pessoas encontram individualmente para desenvolver atividades relacionadas à autonomia e independência. A ideia de que a incapacidade para desenvolver os atos da vida cotidiana indicaria os casos de deficiência em que a proteção social do BPC deve ocorrer desconsidera que é impossível definir a desigualdade pela deficiência sem levar em conta as variações de aspectos relacionados à temporalidade, às barreiras e às práticas sociais e culturais. Por outro lado, os peritos médicos ainda utilizarem a incapacidade para desenvolver os atos da vida diária como aspecto a ser avaliado sobre os impedimentos corporais para o BPC pode trazer implicação do ponto de vista dos princípios constitucionais que sustentam a política. Pois a dependência para os atos da vida diária é uma concepção introduzida por uma instrução normativa do INSS que não pode se sobrepor aos princípios constitucionais orientadores da política de assistência social, como ficou claro pela ação proposta pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública da União. [...] Os princípios de justiça que embasam a concepção do BPC como política de transferência de renda estão relacionados a eliminar a desiguldade e opressão social que as pessoas com deficiência experimentam na extrema pobreza. Portanto, a avaliação das pessoas deficientes para o BPC tem de levar em consideração, além de condições de saúde, as condições sociais e ambientais que influenciam na determinação da desigualdade pela deficiência. [...] O modo como os peritos médicos avaliam as incapacidades para o trabalho e para a vida independente das pessoas solicitantes do BPC demonstra o quanto ainda é desafiante para os saberes biomédicos a percepção da deficiência como desigualdade social. Uma vez que o benefício assistencial busca remover desigualdades ligadas à experiência da deficiência, as avaliações periciais deverão estar adequadas aos objetivos da política social, principalmente de assegurar o direito à proteção social.
(Deficiência e igualdade: o desafio da proteção social. In: MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia (org.). Deficiência e igualdade. Brasília: LetrasLivres - EdUnB, 2010, p. 178-190.).
Importante, ainda, salientar que o estudo social (e.
) juntado aos autos corroborou as dificuldades sociais enfrentadas pela autora, além de expor as condições financeiras do grupo familiar. Segue abaixo as principais informações presentes no estudo social:Residem na casa as seguintes pessoas:
1-Maria da Aparecida Iachitzki (autora) 31 anos, amasiada, nascida em 13/12/1989, portadora da Carteira de Identidade nº 5.588.424, inscrita no CPF sob nº 073.067.109-74;
2-Luciano Iachitzki Cozer (filho da autora) 08 anos, nascido em 04/03/2012, não possui Carteira de Identidade, inscrito no CPF sob nº 137.110.729-76;
3-Maiara Aparecida Iachitzki Cozer (filha da autora) 05 anos, nascida em 24/04/2015, não possui Carteira de Identidade, inscrita no CPF sob nº 140.007.889-06;
4-Douglas Reni Cozer (cônjuge da autora) 51 anos, amasiado, nascido em 27/12/1969, portador da Carteira de Identidade nº 4.943.647-3, inscrito no CPF sob nº 050.511.409-71;
5-Margarida Iachitzki (irmã da autora) 44 anos, solteira, nascida em 15/02/1976, portadora da Carteira de Identidade nº 5.660.689, inscrita no CPF sob nº 068.051.589-58;
[...]
PARECER SOCIAL
Que a autora possui diagnóstico de transtorno afetivo bipolar que é um distúrbio psiquiátrico complexo. Sua característica mais marcante é a alternância de episódios depressivos com os de euforia e de períodos assintomáticos entre eles. Tanto na mania como na depressão os sintomas são intensos e provocam profundas mudanças comportamentais e de conduta, que podem comprometer não só os relacionamentos familiares, afetivos e sociais, como também o desempenho profissional, a posição econômica e a segurança do paciente e das pessoas que com ele convivem.
Que a autora faz uso contínuo de medicamentos para controle da sua doença.
Que a renda da família não supre as necessidades mais básicas.
Tendo em vista as informações obtidas no endereço diligenciado, devolvo o evento cumprido, submetendo-o à apreciação judicial.
Portanto, observa-se que a autora enfrenta barreiras de natureza psicológica pelo menos desde os 16 anos de idade, que impedem sua participação de maneira plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas, sendo assim enquadrada na condição de deficiente.
Conclusão quanto ao direito da parte autora no caso concreto
Dessarte, o exame do conjunto probatório demonstra que a parte autora possui condição de deficiência, necessitando de cuidados permanentes para sobreviver com dignidade. Portanto, deve ser reconhecido o direito ao benefício assistencial, desde 15/06/2018 (data do requerimento administrativo - e.
, fl. 11), impondo-se a reforma da sentença.
Dos consectários
Segundo o entendimento das Turmas previdenciárias do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, estes são os critérios aplicáveis aos consectários:
Correção monetária
Em relação aos benefícios assistenciais, devem ser observados os seguintes critérios de correção monetária, porquanto não afetados pela decisão do STJ no Tema 905:
- INPC (de 04/2006 a 29/06/2009, conforme o art. 31 da Lei n.º 10.741/03, combinado com a Lei n.º 11.430/06, precedida da MP n.º 316, de 11/08/2006, que acrescentou o art. 41-A à Lei n.º 8.213/91).
- IPCA-E (a partir de 30-06-2009, conforme decisão do STF na 2ª tese do Tema 810 (RE 870.947), j. 20/09/2017, ata de julgamento publicada no DJe n. 216, de 22-09-2017, com eficácia imediata nos processos pendentes, nos termos do artigo 1.035, § 11, do NCPC e acórdão publicado em 20-11-2017, cuja modulação foi rejeitada pela maioria do Plenário do STF por ocasião do julgamento dos embargos de declaração em 03-10-2017).
Juros moratórios
Os juros de mora incidirão à razão de 1% (um por cento) ao mês, a contar da citação (Súmula 204 do STJ), até 29/06/2009.
A partir de 30/06/2009, incidirão segundo os índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança, conforme art. 5º da Lei 11.960/09, que deu nova redação ao art. 1º-F da Lei 9.494/97, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF ao julgar a 1ª tese do Tema 810 da repercussão geral (RE 870.947), julgado em 20/09/2017, com ata de julgamento publicada no DJe n. 216, de 22/09/2017.
SELIC
A partir de dezembro de 2021, a variação da SELIC passa a ser adotada no cálculo da atualização monetária e dos juros de mora, nos termos do art. 3º da Emenda Constitucional nº 113/2021:
"Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente."
Honorários advocatícios
Incide, no caso, a sistemática de fixação de honorários advocatícios prevista no art. 85 do NCPC, porquanto a sentença foi proferida após 18/03/2016 (data da vigência do NCPC definida pelo Pleno do STJ em 02/04/2016).
Invertidos os ônus sucumbenciais, estabeleço a verba honorária em 10% (dez por cento) sobre as parcelas vencidas (Súmula 76 do TRF4), considerando as variáveis dos incisos I a IV do § 2º do artigo 85 do NCPC.
Custas Processuais
O INSS é isento do pagamento de custas (art. 4º, inciso I, da Lei nº 9.289/96 e Lei Complementar Estadual nº 156/97, com a redação dada pelo art. 3º da LCE nº 729/2018).
Tutela específica - implantação do benefício
Considerando a eficácia mandamental dos provimentos fundados nos artigos 497 e 536 do NCPC, quando dirigidos à Administração Pública, e tendo em vista que a presente decisão não está sujeita, em princípio, a recurso com efeito suspensivo, determino o cumprimento do acórdão no tocante à implantação do benefício da parte autora, especialmente diante do seu caráter alimentar e da necessidade de efetivação imediata dos direitos sociais fundamentais.
Dados para cumprimento: ( x ) Concessão ( ) Restabelecimento ( ) Revisão | |
NB | 703.654.395-8 |
Espécie | Beneficio Assistencial |
DIB | 15/06/2018 (DER) |
DIP | No primeiro dia do mês da implantação do benefício |
DCB | ---- |
RMI | A apurar |
Observações |
Requisite a Secretaria da Turma Regional Suplementar de Santa Catarina, à CEAB-DJ-INSS-SR3, o cumprimento da decisão e a comprovação nos presentes autos, no prazo de 20 (vinte) dias.
Conclusão
Reforma-se a sentença para determinar a concessão do benefício requerido desde a DER em 15/06/2018.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por dar provimento ao recurso de apelação interposto pela parte autora, bem como implementar o benefício, via CEAB.
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Apelação Cível Nº 5005614-53.2022.4.04.9999/SC
RELATOR: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ
APELANTE: MARIA DA APARECIDA IACHITZKI
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
EMENTA
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. REQUISITOS.
1. O direito ao benefício assistencial pressupõe o preenchimento dos seguintes requisitos: a) condição de deficiente (incapacidade para o trabalho e para a vida independente, de acordo com a redação original do art. 20 da LOAS, ou impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, conforme redação atual do referido dispositivo) ou idoso (neste caso, considerando-se, desde 1º de janeiro de 2004, a idade de 65 anos); e b) situação de risco social (estado de miserabilidade, hipossuficiência econômica ou situação de desamparo) da parte autora e de sua família.
2. Atendidos os pressupostos, deve ser concedido o benefício.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 9ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por unanimidade, dar provimento ao recurso de apelação interposto pela parte autora, bem como implementar o benefício, via CEAB, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Florianópolis, 19 de agosto de 2022.
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 12/08/2022 A 19/08/2022
Apelação Cível Nº 5005614-53.2022.4.04.9999/SC
RELATOR: Juiz Federal JAIRO GILBERTO SCHAFER
PRESIDENTE: Desembargador Federal SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ
PROCURADOR(A): WALDIR ALVES
APELANTE: MARIA DA APARECIDA IACHITZKI
ADVOGADO: AGLAIR TERESINHA KNOREK SCOPEL (OAB SC009639)
APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 12/08/2022, às 00:00, a 19/08/2022, às 16:00, na sequência 215, disponibilizada no DE de 02/08/2022.
Certifico que a 9ª Turma, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A 9ª TURMA DECIDIU, POR UNANIMIDADE, DAR PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO PELA PARTE AUTORA, BEM COMO IMPLEMENTAR O BENEFÍCIO, VIA CEAB.
RELATOR DO ACÓRDÃO: Juiz Federal JAIRO GILBERTO SCHAFER
Votante: Juiz Federal JAIRO GILBERTO SCHAFER
Votante: Desembargador Federal CELSO KIPPER
Votante: Desembargador Federal SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ
ALEXSANDRA FERNANDES DE MACEDO
Secretária
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