Apelação Cível Nº 5000643-20.2017.4.04.7212/SC
RELATOR | : | PAULO AFONSO BRUM VAZ |
APELANTE | : | MARGARETE FATIMA BRUCKMANN |
ADVOGADO | : | CARLOS ALBERTO CALGARO |
: | MARCIELE DAL MOLIN GASPERINI | |
APELADO | : | INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS |
MPF | : | MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL |
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO DE BENEFÍCIO ASSISTENCIAL ao deficiente. CERCEAMENTO DE DEFESA. sentença anulada.
Reconhecido o cerceamento de defesa à parte autora, deve ser anulada a sentença, para possibilitar o prosseguimento da instrução probatória, com a realização de perícia médica.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Turma Regional suplementar de Santa Catarina do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, de ofício, anular a sentença, para possibilitar o prosseguimento da instrução probatória, com a realização de perícia médica, prejudicada a apelação da parte autora, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Florianópolis, 13 de novembro de 2017.
Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ
Relator
| Documento eletrônico assinado por Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 9213532v13 e, se solicitado, do código CRC 593A74DD. | |
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Apelação Cível Nº 5000643-20.2017.4.04.7212/SC
RELATOR | : | PAULO AFONSO BRUM VAZ |
APELANTE | : | MARGARETE FATIMA BRUCKMANN |
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RELATÓRIO
Cuida-se de apelação interposta pela parte autora em face da sentença, publicada em 03/07/2017, que reconheceu a prescrição quinquenal e julgou improcedente o pedido de benefício assistencial devido à pessoa com deficiência.
Sustenta, preliminarmente, que não há incidência de prescrição diante de direito de incapaz. No mérito, sustenta ter restado comprovado pelo estudo social que, desde o requerimento administrativo (02/09/2009) até 01/11/2016, o grupo familiar - composto pela autora, seu companheiro Elizeu e dois filhos, Elizando e Daniele - dependia exclusivamente da renda do companheiro da autora, além de residir em local cedido. A partir de 01/11/2016, além da renda do companheiro, o filho da autora passou a perceber renda, trabalhando como empacotador júnior, o que, todavia, não altera a condição de hipossuficiente da família. Pede, pois, a concessão do benefício assistencial desde a DER (02/09/2009) ou, sucessivamente, desde a DER até 01/11/2016.
Com as contrarrazões, vieram os autos a esta Corte para julgamento.
A Procuradoria Regional da República da 4ª Região opinou pelo desprovimento do recurso.
É o relatório.
VOTO
Premissas
Trata-se de demanda previdenciária na qual a parte autora objetiva a concessão de BENEFÍCIO ASSISTENCIAL, previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal e regulamentado pelo artigo 20 da Lei nº 8.742/93, com a redação dada pelas Leis nº 12.435, de 06-07-2011, e nº 12.470, de 31-08-2011.
O direito ao benefício assistencial pressupõe o preenchimento dos seguintes requisitos: a) condição de deficiente (incapacidade para o trabalho e para a vida independente, de acordo com a redação original do art. 20 da LOAS, ou impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, conforme redação atual do referido dispositivo) ou idoso (neste caso, considerando-se, desde 1º de janeiro de 2004, a idade de 65 anos); e b) situação de risco social (estado de miserabilidade, hipossuficiência econômica ou situação de desamparo) da parte autora e de sua família.
Saliente-se, por oportuno, que a incapacidade para a vida independente a que se refere a Lei 8.742/93, na redação original, deve ser interpretada de forma a garantir o benefício assistencial a uma maior gama possível de pessoas com deficiência, consoante pacífica jurisprudência do STJ (v.g. STJ, 5ª Turma, RESP 360.202/AL, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 01-07-2002) e desta Corte (v.g. AC n. 2002.71.04.000395-5/RS, 6ª Turma, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, DJU de 19-04-2006).
Desse modo, a incapacidade para a vida independente (a) não exige que a pessoa possua uma vida vegetativa ou seja incapaz de se locomover; (b) não significa incapacidade para as atividades básicas do ser humano, tais como alimentar-se, fazer a higiene pessoal e vestir-se sozinho; (c) não impõe a incapacidade de se expressar ou se comunicar; e (d) não pressupõe dependência total de terceiros.
A Proteção Social almejada pela Constituição, que condensa a vontade do povo, está intimamente relacionada com a prática da Justiça Social. Enquanto importante vértice desta, a proteção social supõe a redução das desigualdades, objetivo que representa a busca incessante da equidade como valor estruturante de uma sociedade democrática e fraterna baseada no respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa.
Um dos desafios primordiais é a igualização dos deficientes. É dizer: o desiderato constitucional, traduzido em políticas públicas assistenciais, de possibilitar aos deficientes, o quantum satis, a compensação de suas limitações, para que possam desfrutar de uma vida normal ou igual aos demais indivíduos em termos de capacidades e oportunidades.
Embora não seja suficiente, a renda mínima de subsistência proporcionada pelo BPC é imprescindível. Representa, digamos assim, o início de tudo! Bem lembra Diniz (Deficiência e igualdade: o desafio da proteção social. In: MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia (org.). Deficiência e igualdade. Brasília: LetrasLivres - EdUnB, 2010, p. 14), que a "inclusão das pessoas deficientes na vida social passa por assegurar-lhes um nível básico de rendimento e, ao que tudo indica, esse nível pode ser maior que o necessário para as demais pessoas".
Na execução das políticas públicas assistenciais voltadas ao deficiente, o primeiro desafio é distinguir incapacidade para o trabalho com deficiência. Tem-se visto, no exercício da magistratura, amiúde, essa confusão a permear as avaliações técnicas e a compreensão judicial acerca da deficiência.
A Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas, aprovada e ratificada pelo Brasil, define pessoas com deficiência como "aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas".
Considera-se que a partir da internalização da Convenção dos Direitos das Pessoas Deficiente da ONU no sistema normativo brasileiro, com dignidade de Emenda Constitucional, houve substituição do conceito de deficiência como incapacidade para o trabalho e para a vida independente para um novo conceito de deficiência.
A deficiência encontra-se agora conceituada pelo preâmbulo Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em sua alínea "e", "reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas".
A circunstância de a Convenção ter sido aprovada na forma do disposto no art. 5º, § 3º, da CF, com hierarquia normativa equivalente a emenda constitucional, confere-lhe maior relevância, tornando obrigatória a sua consideração por toda e qualquer norma infraconstitucional sobre a matéria, revogadas as que lhe sejam afrontosas.
O primeiro avanço na avaliação técnica da deficiência ocorreu com a introdução dos novos parâmetros para avaliação do requisito de deficiência. O Decreto nº 6.214/07, que regulamentou o benefício de prestação continuada, tratou de nortear a avaliação da deficiência do segurado, exigindo a observância da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde - CIF, e a realização da perícia social, a partir de 2009.
Art. 16. A concessão do benefício à pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento, com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde - CIF, estabelecida pela Resolução da Organização Mundial da Saúde no 54.21, aprovada pela 54a Assembleia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001 (Redação dada pelo Decreto nº 7.617, de 2011).
[...]
2° A avaliação social considerará os fatores ambientais, sociais e pessoais, a avaliação médica considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e ambas considerarão a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social, segundo suas especificidades (Redação dada pelo Decreto n° 7.617, de 2011).
Conforme preceitua o art. 20 da Lei n° 8.742/93, com a redação que lhe foi dada pela Lei n° 12.435, de 2011),
O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
Na redação original do art. 20, § 2º, da Lei n° 8.742/93, era considerada portadora de deficiência a pessoa incapacitada para a vida independente e para o trabalho.
A Lei n° 12.470/2011 definiu a pessoa com deficiência como aquela portadora de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
E a Lei n° 13.146/2015 alterou apenas a parte referente às barreiras, ao referir que é deficiente quem tem impedimentos de longo prazo, os quais, em contato com uma ou mais barreiras, podem obstruir sua participação plena e em igualdade de condições na sociedade.
Com o advento do Estatuto da Pessoa Deficiente (Lei nº 13.146/15), a redação do art. 20, § 2º, da Lei n° 8.742/93, passou a ser a seguinte:
Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Para dar sentido ao novel texto legal, precisa-se recorrer ao art. 3º, inciso IV, da Lei 13.146/15, que traz a conceituação das diferentes espécies de barreiras que podem obstruir a participação em igualdade de condições da pessoa com deficiência:
IV- barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias.
Portanto, é patente a diferença entre os dois conceitos. A incapacidade necessita da deficiência, e que esta impeça o regular exercício das atividades laborais, enquanto que a deficiência não pressupõe a incapacidade para estar presente.
Conclui-se que, no plano normativo, é defeso conceituar a deficiência que enseja o acesso ao BPC-LOAS como aquela que incapacite a pessoa para a vida independente e para o trabalho. Deficiente passa a ser "aquele que possui algum tipo de impedimento, que, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas".
Cumpre lembrar, como premissa, que o conceito de deficiência deve ser conjugado com a situação de vulnerabilidade ou precariedade econômica, o que torna ainda mais acentuadas as dificuldades do deficiente em relação à hostilidade do ambiente social. Para um deficiente oriundo de família abastada, as suas limitações podem ser compensadas com certa facilidade (cuidados especiais, tecnologia, logística etc), mas para o pobre, os desafios serão sempre mais difíceis de serem transpostos, exacerbando as suas desigualdades sociais.
Evidentemente, a perícia e a compreensão judicial acerca da deficiência precisam levar em conta tais pressupostos. Uma análise que se limita ao conceito de deficiência enquanto exclusiva limitação do corpo (modelo biomédico), sem atentar para a relação indivíduo/sociedade (modelo biopsicossocial), coloca por terra o próprio desiderato constitucional de Proteção Social aos deficientes. Bem observou o Desembargador Federal Roger Raupp Rios (TRF4, 5ª Turma, Apelação Cível n° 5006532-93.2014.4.04.7006/PR, j. 11/10/2016):
No modelo integrado essa conclusão é resultante de uma avaliação onde as duas dimensões estão presentes, indissoluvelmente relacionadas. Isso porque o que seja "impossibilidade de desempenho" e até mesmo o que seja "doentio" não são definições médicas separadas do mundo social. É na vida em sociedade que se define o que é e quando há "impossibilidade de desempenho com conseqüente incapacidade de ganho" e o que é "doentio" ou "saudável".
Não se pode esquecer que a sociedade moderna está organizada com base em práticas, costume, valores, preconceitos e estruturas sociais que pressupõem o convívio de pessoas (corpos) sem impedimentos, sem limitações, o que, via de regra, conspira para a hostilização do ambiente social, no sentido de exacerbar a opressão social sofrida por pessoas deficientes.
Por outro lado, revela-se equivocada a avaliação da deficiência que considera apenas implicações para a pessoa do deficiente, olvidando que a vida social e particular dele depende, quase que invariavelmente, da ajuda e dos cuidados de terceiros. Por isso, lembra Diniz (2010, p. 14), que "as políticas voltadas à deficiência não devem ser confundidas com políticas para deficientes apenas, e sim abarcar todas aquelas pessoas que fazem parte da esfera de cuidados do deficiente".
Vale aqui lembrar que deficiência não significa que a pessoa esteja submetida a uma vida vegetativa, totalmente dependente dos cuidados de terceiros, e que não tenha condições de locomover-se, de comunicar-se e de executar atividades básicas, como higienizar-se, vestir-se e alimentar-se com autonomia.
Por conseguinte, as perícias médicas realizadas para fins de concessão de benefício assistencial devem ser avaliadas diferentemente dos exames realizados nos casos de concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, consoante leciona Wederson Santos, no artigo O que é incapacidade para a proteção social brasileira? (in Deficiência e igualdade: o desafio da proteção social. In: MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia (org.). Deficiência e igualdade. Brasília: LetrasLivres - EdUnB, 2010, p. 178-190):
As perícias médicas do INSS avaliam os impedimentos corporais das pessoas solicitantes do BPC no sentido de ponderar não o quanto tais impedimentos reduzem as chances de as pessoas suprirem as necessidades básicas como garantia da dignidade humana, mas o quanto a capacidade produtiva dos corpos pode ser afetada. [...] No entanto, a desigualdade pela deficiência é resultado de variados fatores que determinam pela opressão social - muitas vezes, fatores de desigualdade e vulnerabilidade social que se sobrepõem. O desenho da política social não pode permitir que aspectos da deficiência tenham centralidade enquanto outros são silenciados pelas perícias. [...] Diferentemente do BPC, as perícias para a aposentadoria por invalidez buscam primordialmente no histórico das atividades laborais os indicadores para mensurar quais habilidades corporais foram afetadas pelo acidente ou doença. No caso do benefício assistencial, a transferência de renda está amparada o princípio constitucional de que a assistência social é para quem dela necessitar, o que pressupõe que as perícias para o benefício previdenciário e o assistencial não devem ter os mesmos critérios de julgamento. Uma das explicações possíveis para os peritos médicos utilizarem os mesmos parâmetros da aposentadoria para BPC é tentativa de dar objetividade ao critério da incapacidade para o trabalho. Diante da ausência de elementos capazes de mensurar a desigualdade que as pessoas sofrem em razão dos corpos com deficiência, as perícias médicas para assistência social sobrevalorizam aspectos mensuráveis, como o histórico trabalhista e as habilidades corporais.
[...] O discurso biomédico sobre os impedimentos corporais tende a valorizar quaisquer restrições funcionais, corporais ou cognitivas que as pessoas encontram individualmente para desenvolver atividades relacionadas à autonomia e independência. A ideia de que a incapacidade para desenvolver os atos da vida cotidiana indicaria os casos de deficiência em que a proteção social do BPC deve ocorrer desconsidera que é impossível definir a desigualdade pela deficiência sem levar em conta as variações de aspectos relacionados à temporalidade, às barreiras e às práticas sociais e culturais. Por outro lado, os peritos médicos ainda utilizarem a incapacidade para desenvolver os atos da vida diária como aspecto a ser avaliado sobre os impedimentos corporais para o BPC pode trazer implicação do ponto de vista dos princípios constitucionais que sustentam a política. Pois a dependência para os atos da vida diária é uma concepção introduzida por uma instrução normativa do INSS que não pode se sobrepor aos princípios constitucionais orientadores da política de assistência social, como ficou claro pela ação proposta pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública da União. [...] Os princípios de justiça que embasam a concepção do BPC como política de transferência de renda estão relacionados a eliminar a desiguldade e opressão social que as pessoas com deficiência experimentam na extrema pobreza. Portanto, a avaliação das pessoas deficientes para o BPC tem de levar em consideração, além de condições de saúde, as condições sociais e ambientais que influenciam na determinação da desigualdade pela deficiência. [...] O modo como os peritos médicos avaliam as incapacidades para o trabalho e para a vida independente das pessoas solicitantes do BPC demonstra o quanto ainda é desafiante para os saberes biomédicos a percepção da deficiência como desigualdade social. Uma vez que o benefício assistencial busca remover desigualdades ligadas à experiência da deficiência, as avaliações periciais deverão estar adequadas aos objetivos da política social, principalmente de assegurar o direito à proteção social.
(Deficiência e igualdade: o desafio da proteção social. In: MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia (org.). Deficiência e igualdade. Brasília: LetrasLivres - EdUnB, 2010, p. 178-190.).
No que diz respeito ao requisito econômico, cabe ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça admitiu, em sede de Recurso Repetitivo, a possibilidade de demonstração da condição de miserabilidade por outros meios de prova, quando a renda per capita familiar fosse superior a ¼ do salário mínimo (REsp 1112557/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 20/11/2009). Posteriormente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar, em 18-04-2013, a Reclamação nº 4374 e o Recurso Extraordinário nº 567985, este com repercussão geral, reconheceu e declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93 (LOAS), por considerar que o critério ali previsto - ser a renda familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo - está defasado para caracterizar a situação de miserabilidade.
Assim, forçoso reconhecer que as despesas com os cuidados necessários da parte autora, especialmente medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis, tratamento médico, psicológico e fisioterápico, podem ser levadas em consideração na análise da condição de miserabilidade da família da parte demandante.
A propósito, a eventual percepção de recursos do Programa Bolsa Família, que, segundo consta no site do Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome (http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/), destina-se à "transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o País" e "tem como foco de atuação os 16 milhões de brasileiros com renda familiar per capita inferior a R$ 70,00 mensais, e está baseado na garantia de renda, inclusão produtiva e no acesso aos serviços públicos", não só não impede a percepção do benefício assistencial do art. 203, V, da Constituição Federal, como constitui prova indiciária acima de qualquer dúvida razoável de que a unidade familiar se encontra em situação de grave risco social.
Registre-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 580.963/PR, realizado em 17-04-2013, declarou, outrossim, a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), o qual estabelece que o benefício assistencial já concedido a qualquer idoso membro da família "não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a LOAS", baseado nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia, bem como no caráter de essencialidade de que se revestem os benefícios de valor mínimo, tanto previdenciários quanto assistenciais, concedidos a pessoas idosas e também àquelas portadoras de deficiência. Segundo o STF, portanto, não se justifica que, para fins do cálculo da renda familiar per capita, haja previsão de exclusão apenas do valor referente ao recebimento de benefício assistencial por membro idoso da família, quando verbas de outra natureza (benefício previdenciário), bem como outros beneficiários de tais verbas (membro da família portador de deficiência), também deveriam ser contemplados.
Este TRF, aliás, já vinha julgando no sentido da desconsideração da interpretação restritiva do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso.
Assim, no cálculo da renda familiar per capita, deve ser excluído o valor auferido por idoso com 65 anos ou mais a título de benefício assistencial ou benefício previdenciário de renda mínima (EIAC nº 0006398-38.2010.404.9999/PR, julgado em 04-11-2010), ou de benefício previdenciário de valor superior ao mínimo, até o limite de um salário mínimo, bem como o valor auferido a título de benefício previdenciário por incapacidade ou assistencial em razão de deficiência, independentemente de idade (EIAC N.º 2004.04.01.017568-9/PR, Terceira Seção, julgado em 02-07-2009. Ressalto que tal pessoa, em decorrência da exclusão de sua renda, também não será considerada na composição familiar, para efeito do cálculo da renda per capita.
Exame do caso concreto
No caso em apreço, o julgador a quo, entendendo que a controvérsia dos autos se restringia à comprovação do estado de miserabilidade do grupo familiar da autora, determinou apenas a realização de perícia social e, na sequência, julgou improcedente a ação objetivando a concessão de benefício assistencial ao deficiente, por entender não configurada a situação de vulnerabilidade social do grupo familiar.
Ocorre que, ao contrário do que entendeu o magistrado a quo, a condição de deficiente da autora foi contestada nos presentes autos, justamente porque o INSS ressaltou que, na via administrativa, o perito da Autarquia fez considerações de que a autora poderia estar exacerbando os sintomas, além de não ter se submetido a qualquer tratamento médico adequado nos últimos anos. Afirmou o Insituto, outrossim, que "a demandante possui doenças que não lhe retiram a capacidade de participação em sociedade, nas mesmas condições das pessoas da sua faixa etária e intelectual" e que "não é possível considerá-la deficiente para efeitos de concessão de amparo social".
Assim sendo, considerando que há, em tese, possibilidade de concessão do benefício assistencial almejado, a não realização da perícia médica configura evidente cerceamento de defesa à demandante, a ensejar a anulação da sentença, para possibilitar o prosseguimento da instrução probatória, com a realização de perícia médica.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por, de ofício, anular a sentença, para possibilitar o prosseguimento da instrução probatória, com a realização de perícia médica, prejudicada a apelação da parte autora.
Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ
Relator
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO DE 13/11/2017
Apelação Cível Nº 5000643-20.2017.4.04.7212/SC
ORIGEM: SC 50006432020174047212
RELATOR | : | Des. Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ |
PRESIDENTE | : | Paulo Afonso Brum Vaz |
PROCURADOR | : | Claudio Dutra Fontella |
APELANTE | : | MARGARETE FATIMA BRUCKMANN |
ADVOGADO | : | CARLOS ALBERTO CALGARO |
: | MARCIELE DAL MOLIN GASPERINI | |
APELADO | : | INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS |
MPF | : | MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL |
Certifico que este processo foi incluído na Pauta do dia 13/11/2017, na seqüência 303, disponibilizada no DE de 08/11/2017, da qual foi intimado(a) INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e as demais PROCURADORIAS FEDERAIS.
Certifico que o(a) Turma Regional suplementar de Santa Catarina, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, em sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A TURMA, POR UNANIMIDADE, DECIDIU DE OFÍCIO, ANULAR A SENTENÇA, PARA POSSIBILITAR O PROSSEGUIMENTO DA INSTRUÇÃO PROBATÓRIA, COM A REALIZAÇÃO DE PERÍCIA MÉDICA, PREJUDICADA A APELAÇÃO DA PARTE AUTORA.
RELATOR ACÓRDÃO | : | Des. Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ |
VOTANTE(S) | : | Des. Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ |
: | Des. Federal CELSO KIPPER | |
: | Des. Federal JORGE ANTONIO MAURIQUE |
Ana Carolina Gamba Bernardes
Secretária
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