Mudanças demográficas e alterações como a desoneração da folha de pagamento de setores econômicos podem ter grandes consequências na arrecadação e capacidade de pagamento da previdência, colocando em dúvida futuro das aposentadorias

Marcelo Beledeli

Até que ponto o Brasil é previdente com sua Previdência Social? Esse questionamento vem sendo feito por analistas, políticos e trabalhadores que buscam respostas para os desafios enfrentados pelo sistema de aposentadorias nacionais. Criada em 1923, a Previdência Social é uma garantia de renda que cobre, atualmente, 82% dos idosos e 67% dos trabalhadores ocupados. Em 2011, possuía 27,15 milhões de beneficiários, a maior parte está no grupo etário de 65 a 69 anos com benefício de um salário-mínimo. O sistema era mantido através de 64,3 milhões de contribuintes, um contingente que vem crescendo nos últimos anos com o aumento da formalização do emprego. “Na última década, mais pessoas passaram a ter postos de trabalho com carteira assinada. Isso ajudou a reverter um processo de queda no número de contribuintes”, explica José Roberto Ferreira Savoia, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e superintendente do Instituto de Previdência Municipal de São Paulo (Iprem-SP).

Em 1970, existiam 4,51 contribuintes por beneficiário na previdência brasileira. Em 2000, essa relação caiu para 1,67. Com o aumento do trabalho formal nos últimos 10 anos, a proporção subiu para 1,81 em 2012, e deve chegar a 1,90 em 2015. No entanto, conforme Savoia, esse aumento não será suficiente para garantir a estabilidade financeira do sistema. “O ideal seria uma proporção de quatro contribuintes por beneficiário, mas não teremos uma redução tão drástica da informalidade para chegar a essa condição. Então teremos que trabalhar com uma previdência com déficit.”

No acumulado de 2012, de janeiro a setembro, a Previdência Social registra um déficit de R$ 39,8 bilhões, resultado de R$ 195,8 bilhões em arrecadações e R$ 235,6 bilhões em gastos. A expectativa é que encerre o ano com déficit de aproximadamente R$ 38 bilhões, com a correção segundo o Indíce Nacional de Preços ao Consumidor (INPC).

No entanto, o número esconde o fato de que os resultados são diferenciados quando se separam os benefícios e aposentadorias dos trabalhadores das cidades e do campo. O saldo do setor urbano foi positivo nesse período, chegando a R$ 9,1 bilhões, resultado de R$ 191,5 bilhões em arrecadações e R$ 182,4 bilhões em despesas. O balanço de 2012 é 38,9% maior do que o mesmo período em 2011.

No setor rural, foi mantido um perfil deficitário e registrada necessidade de financiamento do Tesouro Público de R$ 6,1 bilhões – diferença da arrecadação de R$ 498,7 milhões no mês e das despesas de cerca de R$ 6,6 bilhões em benefícios assistenciais, previdenciários e acidentários. “A Previdência urbana sustenta a do campo. No entanto, o sistema de aposentadoria rural em qualquer país é deficitário, pois é usado como um incentivo para a permanência de população no interior, e existe tratamento diferenciado”, explica Jane Berwanger, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

AURACEBIO PEREIRA/ARTE/JC

Envelhecimento da população impõe desafios para aposentadorias

No Brasil, há duas modalidades de aposentadoria programada previstas na Constituição. A primeira é a aposentadoria por idade e a segunda a chamada aposentadoria por tempo de contribuição. A maioria dos benefícios concedidos no País é por idade. Segundo dados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), de janeiro a setembro de 2012, 55,8% das mais de 831 mil aposentadorias, do acumulado do ano, foram liberadas devido à idade do trabalhador – que pode parar de trabalhar aos 65 anos (homem) ou aos 60 anos (mulher).“São idades relativamente apropriadas e não muito distantes das que prevalecem em outros países. Mas o fato de elas serem adequadas hoje, porém, não significa que venham a sê-lo indefinidamente”, lembra o economista Fábio Giambiagi, autor do livro Reforma da Previdência.

O grande desafio imposto pelas atuais idades de aposentadoria é o envelhecimento da população brasileira. Conforme dados do IBGE, ao longo dos últimos 50 anos, a população brasileira quase triplicou: passou de 70 milhões, em 1960, para 190,7 milhões, em 2010. O crescimento do número de idosos, no entanto, foi ainda maior. Em 1960, 3,3 milhões de brasileiros tinham 60 anos ou mais e representavam 4,7% da população. Em 2000, 14,5 milhões, ou 8,5% dos brasileiros, estavam nessa faixa etária. Na última década, o salto foi grande, e em 2010 a representação passou para 10,8% da população (20,5 milhões).

Para as próximas décadas, essa tendência deverá se acelerar. Conforme lembra Giambiagi, em 2050 deverá haver 52 de pessoas com 60 anos e mais para cada 100 pessoas no grupo etário de 15 a 59 anos. “Teremos o mesmo número de adultos que hoje, mas o número de idosos se multiplicará por um fator de 3,5. A produtividade das pessoas que compõe a população economicamente ativa terá que sustentar uma população de idosos de mais de 3 vezes a de hoje. É um desafio maiúsculo.”

Uma solução seria a elevação da idade de aposentadoria. No entanto, a resistência política para adotar tal mudança é um entrave para a adoção dessa medida, como já ocorreu em outros países que sofrem processos de envelhecimento da população. Um exemplo é a França, onde em 2010 o presidente conservador Nicolas Sarkozy aumentou a idade mínima de aposentadoria de 60 para 62 anos. Analistas acreditam que esse foi um dos fatores mais importantes para sua derrota na campanha presidencial em 2012, que foi vencida pelo socialista François Hollande, o qual já decretou a reversão na idade de aposentadoria para os limites anteriores.

Governo prepara mudanças nas concessões de pensão por morte

Preocupado com os altos gastos da Previdência Social com pensões pagas após a morte dos contribuintes, o governo começou a estudar alterações profundas no atual sistema de concessão do benefício. A intenção é aproximar o modelo brasileiro das fórmulas utilizadas na maior parte do mundo, que contam com maiores restrições em relação aos valores desembolsados e às pessoas aptas a recebê-los.

Segundo o secretário de Políticas do Ministério da Previdência Social, Leonardo Rolim, as mudanças nas regras de pensões no País estão entre as prioridades da pasta comandada pelo ministro Garibaldi Alves. “O Brasil tem o sistema mais benevolente de pensões do mundo e não dá para manter sistema como está”, afirmou Rolim que, no entanto, não disse que ação será tomada.

“A estratégia política foge da minha atribuição, mas o debate está aberto e a discussão já está ocorrendo direta ou indiretamente. O que falta ainda é uma estratégia do governo sobre como encaminhar o tema”, completa. De acordo com dados da Previdência, em agosto deste ano foram pagas 7,030 milhões de pensões por morte, das quais 122.810 se devem a acidentes no trabalho. O Brasil gastou no ano passado mais de R$ 100 bilhões com pagamento de pensões por morte. A inédita marca foi recorde mundial.

Rolim cita diversos pontos nos quais o modelo brasileiro se distancia dos sistemas adotados em outros países. “Aqui, por exemplo, não há prazo de carência nem prazo mínimo para o recebimento do benefício após a assinatura de um casamento ou união estável. Além disso, no Brasil são pagos os valores integrais dos benefícios, não importando a quantidade de dependentes.”

Outro ponto elencado pelo secretário é a reversão das cotas dos dependentes para os viúvos, após os mesmos atingirem a maioridade, enquanto em outros países essas cotas são simplesmente extintas. “Outra questão é a chamada dependência presumida no País. Por ela, os viúvos recebem os benefícios independentemente de sua renda.”

Fim do fator previdenciário deve entrar em votação na Câmara

Nesta semana, a Câmara dos Deputados deverá votar o Projeto de Lei 3.299/08, que visa extinguir o fator previdenciário. De acordo com o texto, o cálculo usado atualmente para determinar quanto o aposentado receberá do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) seria substituído por uma nova fórmula, em que o salário do trabalhador seria a média de todas as últimas contribuições, referentes aos meses imediatamente anteriores à aposentadoria. No caso de trabalhadores rurais, o salário não deve ser inferior a um salário mínimo (R$ 622,00).

Atualmente, para se aposentar com o fator previdenciário, são considerados a data do início do pagamento do benefício, a idade, o tempo de contribuição do segurado, a expectativa média de vida e a alíquota de 31%, referente à soma das contribuições do patrão (20%) e do empregado (11%) sobre o valor do salário.

Autor do projeto pelo fim do fator, senador Paulo Paim (PT-RS), argumenta que o cálculo atual diminui o valor do benefício, estimula o retardamento da aposentadoria e prejudica aqueles que entram no mercado de trabalho mais cedo. “A situação dos aposentados e pensionistas é desesperadora, devido ao fator e a falta de reajustes aos seus vencimentos.”

O projeto enfrenta oposição por parte do governo, que vem tentando negociar mudanças em relação à proposta 85/95, que prevê a soma do tempo de contribuição ao INSS e a idade do contribuinte – por exemplo, 55 anos de idade e 30 de contribuição para mulheres e 60 de idade e 35 de contribuição para os homens – para que o segurado receba o benefício integral da Previdência – respeitado o teto, atualmente, de cerca de R$ 3,9 mil. A expectativa é que, com o cálculo 85/95, haja aumento médio de 20% no valor das aposentadorias.

As discussões em torno do fim do fator previdenciário mobilizam as centrais sindicais. “A cada dia ele vem afastando mais trabalhadores da aposentadoria, obrigando pessoas que já deveriam aproveitar seu benefício a buscar uma fonte de renda alternativa para completar seus ganhos, ou forçando que trabalhem mais anos do que deveriam para ter um sustento decente”, comenta Cláudio Janta, presidente da Força Sindical no Rio Grande do Sul. Já o presidente da Central Única dos Trabalhadores no Estado (CUT-RS), Claudir Nespolo, é contrário a qualquer condição que sinalize aumento da idade mínima de aposentadoria.

“Qualquer discussão que aponte  alargar para essa direção vai encontrar resistência dos trabalhadores”, destaca o sindicalista.

No entanto, a fórmula 85/95 é considerada já defasada por analistas. “Ela seria válida 15 anos atrás, hoje já teria que ser pelo menos 90/95, não teria que ser tão reduzida, especialmente para as mulheres, que poderiam contribuir mais, uma vez que tem maior expectativa de vida”, afirma Savoia. De acordo com o professor da FEA/USP, o fator previdenciário produziu uma economia de mais de R$ 14 bilhões desde que foi implantado em 1999. “Sem ele teríamos uma previdência mais cara. Agora, se retiramos fator e não deixa nenhuma outra regra, precisamos substituir por uma idade mínima mais elevada.”

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Desoneração da folha de pagamento gera impacto

Benefícios concedidos pelo governo federal permitirão que 40 setores passem a recolher a contribuição previdenciária sobre o faturamento

Outra decisão governamental que deverá afetar as contas da Previdência Social é a desoneração da folha de pagamento de 40 setores da economia. Destes, 15 já entraram em vigor em junho, e para os outros 25 iniciará em 2013. Essas indústrias deixarão de pagar 20% de contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento e passarão a recolher entre 1% e 2% sobre o faturamento.

O governo condicionou as medidas à manutenção dos postos de trabalho desses segmentos econômicos, que representam 13% do emprego formal do País, 16% da massa salarial do setor formal e 59% das exportações de manufaturados. No entanto, para a Previdência, as desonerações vão representar uma perda de arrecadação de R$ 12,83 bilhões em 2013. Essa perda de receita é resultado da diferença entre os R$ 21,57 bilhões que deixarão de ser arrecadados com a contribuição previdenciária e os R$ 8,74 bilhões que serão recolhidos com a cobrança sobre o faturamento. Até 2016, a desoneração chegará a R$ 60 bilhões.

No entanto, para o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), a medida é incoerente, pois incide no déficit da previdência. “Se o governo sustenta haver déficit na previdência não se justifica abrir mão de arrecadação previdenciária”, explica a presidente do IBDP, Jane Berwanger. “Não há garantia de que os valores que deixarão de ser arrecadados serão realmente repassados pelo Tesouro para a conta do Regime Geral de Previdência Social.”

A falta dos recursos recolhidos pelos setores beneficiados com a desoneração já está afetando as contas do governo. Em setembro, segundo dados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), houve déficit de R$ 5 bilhões no setor urbano, o pior resultado desde 2007 e o segundo saldo mais baixo para o mês na série histórica. O saldo negativo foi o resultado de R$ 26,1 bilhões em gastos, contra R$ 21,1 bilhões com arrecadação. De acordo com a Previdência, em grande parte o déficit foi causado pelo impacto das políticas de desoneração da folha de pagamentos das empresas, que ainda não foram compensadas pelo Tesouro Nacional.

O secretário de Políticas da Previdência do Ministério da Previdência Social, Leonardo Rolim, estima que a compensação será de aproximadamente R$ 4,2 bilhões. “Quando for feita a contabilização, teremos resultado bem positivo. Não teríamos tido um resultado pior em relação ao mesmo mês do ano passado, mas melhor. O padrão positivo que vem sendo mantido desde 2010 teria sido verificado também em setembro”, argumenta.

Para a presidente do IBDP, as soluções encontradas para diminuir o déficit sempre recaem sobre a redução de direitos do trabalhador. “Não adianta desonerar alguns setores para estimular a economia do País, se quem pagará a conta será o segurado da previdência social.” Jane também critica a compensação da perda de arrecadação previdenciária com recursos do Tesouro. “A conta da desoneração volta para o bolso do trabalhador. São os impostos que ele paga que cobrirão o rombo na previdência.”

Fonte: Jornal do Comércio/RS

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