Nós mulheres, diariamente, temos de enfrentar as consequências da marginalização dos elementos femininos das funções produtivas e decisórias, na estrutura familiar e no trabalho. Ainda assim, predomina certo senso comum que encara as pautas clamadas pelo movimento feminista, de igualdade entre os sexos, como superadas. Durante os debates sobre a Reforma da Previdência refletiu-se, inclusive, sobre a sua dispensabilidade, sob o argumento de que já obtivemos acesso à educação, direitos políticos, igualdade formal no casamento e uma presença maior e mais diversificada no mercado de trabalho.

No entanto, ainda que conquistados avanços nestas esferas, permanecem em ação os mecanismos de reprodução da dominação masculina e da subjugação feminina. A manifestação concreta do gênero ocorre, principalmente, na divisão sexual do trabalho e dos meios de produção, fazendo-se presente, ainda, na organização social do trabalho de procriação. Um bom exemplo disso é o fato de que metade das mães que trabalham são demitidas até dois anos depois do fim do salário-maternidade, segundo estudos da Fundação Getúlio Vargas[1], evidenciando a perpetuação da mentalidade de que os cuidados com os filhos são exclusividade femininos.

Desse modo, apesar da crença de que o crescimento econômico-social proporciona o aumento no número de mulheres economicamente ativas, possibilitando a conquista de direitos próprios, a força de trabalho da mulher negra segue sendo explorada nos postos mais precarizados e, na maioria das vezes, informais, enquanto o trabalho da mulher branca ainda é visto como secundário.

Pesquisas recentes do Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio)[2] evidenciam que as mulheres negras ganham menos da metade da renda do homem branco, sendo que um quinto possui como ocupação o serviço doméstico (19,1%), seguido dos serviços de limpeza (7,6%). Sem contar que a taxa de desemprego entre elas é o dobro da verificada entre homens brancos, o que aumenta a informalidade, segundo levantamento feito pelo economista Cosmo Donato, baseando-se na Pnad contínua do IBGE.

As diferenças nos rendimentos pessoais e nas condições de trabalho associados a raça e gênero no Brasil são explícitas, se constatando uma nítida hierarquia que tem a força de trabalho do homem branco, em primeiro lugar, e que vai descendo para as mulheres brancas, os homens negros e mulheres negras, em último.

A EC nº 103/2019 prevê o aumento da idade mínima de aposentadoria por idade das mulheres do setor urbano, de 60 para 62 anos, além do aumento do tempo de serviço para acesso ao benefício integral (100%). Assim, a partir da promulgação, o tempo total de contribuição das mulheres será fundamental no cálculo do valor e não só na concessão do benefício.

Por conta de uma mudança brusca nas regras previdenciárias, a idade mínima da aposentadoria por tempo de contribuição também será implementada de forma progressiva, com idade inicial de 56 anos, recebendo um acréscimo de 6 meses a cada ano, até 2031 quando alcançará 62 anos, momento em que estará extinta a aposentadoria por tempo de contribuição e só existirá aposentadoria por idade. Sobre o tema temos um texto no Blog com o seguinte título: Entenda a Reforma da Previdência e as novas regras dos benefícios do INSS.

Entretanto, a fórmula de cálculo será mais dura, eis que para cada ano de contribuição que ultrapasse os 15 anos exigidos, será acrescentado 2% ao valor do benefício. Logo, para alcançar 100% do benefício, teremos que contribuir ao INSS por 35 anos. A EC nº 103/2019 desconsiderou que o trabalho feminino possui maior descontinuidade no tempo de contribuição, sofre com a informalidade, a terceirização irrestrita e, ainda, ignorou que as mulheres recebem os menores salários!

Atualmente, a aposentadoria por idade é a modalidade mais comum entre as trabalhadoras, em face da dificuldade de atingir o tempo mínimo exigido hoje para a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição (30 anos). Com o aumento da idade (62 anos para as mulheres) e exigência de tempo de contribuição de 35 anos para acesso ao benefício integral, seremos prejudicadas duplamente.

As alterações no acesso a outros benefícios, como a pensão por morte, aprofundam ainda mais a desigualdade de gênero, eis que as disparidades de rendimentos demonstram que a dependência com relação aos homens ainda persiste. Além da EC nº 103/2019 prever a impossibilidade de acúmulo integral das pensões e aposentadorias (atingindo as mulheres mais velhas, viúvas), a intenção foi reduzir drasticamente o valor desse benefício.

O valor da pensão por morte será de 50% do valor do benefício do cônjuge falecido, com acréscimo de 10% por dependente, até alcançar os 100% (resguardado o direito ao salário-mínimo quando o benefício representar a única fonte de renda). Assim, o valor integral é garantido somente nos casos em que há 5 ou mais dependentes ou em caso de deficiência física ou mental de algum deles. Não bastasse, caso um dependente deixe de receber, a sua cota não poderá ser repassada aos demais, o que pode resultar em um benefício de valor inferior ao mínimo. A meu ver, tal conclusão rompe com a sistemática de proteção social, cabendo a nós, Previdenciaristas, lutarmos pelas garantias constitucionalmente previstas.

Tais reflexões tem o objetivo de demonstrar que a condição da mulher dependente da Previdência Social demanda atenção e, principalmente, discussões a respeito dos diferentes vetores de opressão que envolvem classe, idade e cor na sociedade brasileira. Essas categorias, acabam refletindo sob as diversas formas de marginalização e carências ainda enfrentadas pelas mulheres.

No teor da EC nº 103/2019 verificam-se respostas genéricas e universalizadas para um problema complexo, as quais não estão acompanhadas de pretensão e proteção concreta, pois não acompanham investimentos ou enfrentamento do problema e de suas causas. Por isso a importância dos estudos de gênero e do movimento feminista interseccional para o avanço nas políticas públicas que envolvem as mulheres brasileiras que, insistentemente, estão encobertas por uma verdadeira cegueira de gênero.

[1] https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos

[2] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=quadro-sintetico

 

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