A atividade rural no Brasil, boa parte das vezes, começa muito cedo, na infância, assim que a criança pode ajudar nas diversas atividades rurais. É comum que crianças e adolescentes auxiliem seus familiares na lavoura, na criação de animais e em outras tarefas do campo, e não há uma idade específica ou “regra geral”, alguns começam aos oito anos de idade, outros aos seis, outros até antes a depender da atividade e do desenvolvimento da criança.

O STF e o STJ já discutiram o trabalho infantil em razão da menção na Constituição Federal e na Lei Previdenciária de que o trabalho poderia ser averbado a partir dos 14 anos para o jovem-aprendiz e a partir dos 16 anos a partir de outras atividades. As Cortes de uniformização retiraram esse limite mínimo, permitindo que a análise seja feita caso a caso.

Contudo, ainda há certos obstáculos na prática jurídica para conseguir a averbação da atividade rural na infância, de modo que abordaremos o tema neste artigo.

O entendimento uniformizado

Sobre o tema, a jurisprudência atual do STJ e do STF retira a limitação legal e permite que o labor exercido antes dos dezesseis e antes mesmo dos doze anos de idade seja averbado, tudo em prol da maior proteção social à criança que tenha dedicado sua infância ao árduo labor campesino. O entendimento se alinha, invariavelmente, aos preceitos constitucionais de proteção à criança previstos nos artigos 7º e 227.

Frente às disposições acima, tanto STJ quanto STF passaram a admitir que o labor exercido por crianças com menos de doze anos de idade seja averbado:

Desta feita, não é admissível desconsiderar a atividade rural exercida por uma criança impelida a trabalhar antes mesmo dos seus 12 anos, sob pena de punir duplamente o Trabalhador, que teve a infância sacrificada por conta do trabalho na lide rural e que não poderia ter tal tempo aproveitado no momento da concessão de sua aposentadoria. Interpretação em sentido contrário seria infringente do propósito inspirador da regra de proteção” (AgInt no AREsp 1811727/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/06/2021, DJe 01/07/2021). 

Consentâneo, ainda, com a ideia de que norma de garantia do trabalhador não deve ser interpretada em seu detrimento, o princípio da universalidade de cobertura e do atendimento há de ser compreendido para abrigar também crianças e adolescentes que exercem atividade laborativa. (RE 1225475 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 21/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-022  DIVULG 04-02-2021  PUBLIC 05-02-2021). 

Com base na jurisprudência atual acerca do tema, é inegável o direito à averbação do labor rural, desde que devidamente comprovado, mediante a conjugação entre o início de prova material e uma esclarecedora prova testemunhal apta a demonstrar especificamente o labor exercido na infância. Isso a princípio beneficia quem trabalhou na agricultura, já que a realidade do campo muitas vezes se distancia dessa legislação. Todavia, ainda é difícil esse debate no Judiciário.

Os obstáculos impostos pelas instâncias inferiores

Apesar dos importantes precedentes, a uniformização da jurisprudência não impediu que alguns julgadores barrem a averbação do trabalho rural infantil por vias oblíquas, encontrando outros “fundamentos” para impossibilitar a soma do trabalho na infância ao tempo de contribuição dos segurados.

Com boas provas de que a família vivia da agricultura familiar (e preenchendo todos os requisitos da lei para o segurado especial), não há uma resistência tão grande por parte dos Tribunais em reconhecer o trabalho rural a partir dos doze anos de idade.

Esta lógica vem da jurisprudência usual aplicável aos segurados especiais, a exemplo do Tema 554 do STJ sobre os boias-frias e da jurisprudência que permite a utilização de provas em nome de terceiros para a averbação do tempo rural (a exemplo do Resp 501009/SC).

Logicamente, a criança não costuma ter provas em nome próprio contemporâneas ao trabalho rural na infância. Geralmente a documentação está em nome dos familiares, da mãe e do pai, ou de irmãos mais velhos. Por vezes, o segurado até tem provas em nome próprio, mas só a partir da maior idade, o que pode atrapalhar na comprovação do período rural na infância. Por isso, é importante a aplicação dos precedentes do STJ sobre a prova material.

Apesar disso, a dificuldade é absurdamente mais acentuada para a averbação do período de oito a doze anos de idade, já que muitos julgadores entendem que a criança não possuiria força física para trabalhar, que seu trabalho não seria “indispensável” à família. Por vezes, o fato de frequentar a escola é usado pelos julgadores para afastar a averbação desse tempo de trabalho.

Vejamos na prática um exemplo de como a averbação do trabalho rural infantil é inviabilizada. No caso abaixo, o direito a esta averbação foi negado sob o argumento de que a criança frequentava a escola e que a atividade rural não teria sido “exploração de sua força física de modo ilícito”:

No caso em tela, não há nos autos documentos ou informações capazes de demonstrar que o autor realizava afazeres para além dos típicos de auxílio não essencial e comuns ao aprendizado do ofício no meio rural familiar, com exploração de sua força física de modo ilícito, como se adulto fosse. […] Contudo, não há nos autos qualquer indício de que o labor rurícola prestado pelo autor antes dos 12 anos de idade tenha tido caráter de exploração ilícita de trabalho infantil, tampouco que tenha prejudicado as atividades inerentes a sua faixa etária. Ademais, a documentação juntada aos autos informa que a parte autora frequentou a escola, o que demonstra que o auxílio rural não prejudicou as atividades inerentes à faixa etária. (sentença proferida nos autos do processo 5001408-32.2024.4.04.7119).

Este é o fundamento integral da sentença sobre a atividade rural. Veja-se que nenhuma informação da prova testemunhal ou material é utilizada. São referidas assertivas genéricas aplicável a todas as crianças que trabalham na agricultura familiar. Para o juízo, qualquer labor infantil que não seja uma exploração infantil análoga à escravidão não merece averbação. O trabalho da criança, na agricultura familiar, para o juízo não teria valor, seria “dispensável” à família.

Em outro processo, o julgador optou por negar a produção de prova testemunhal ao afirmar que já fez audiências sobre o assunto em outros processos e que a atividade rural na infância não seria trabalho, e sim uma atividade “lúdica”:

Pondero, ainda, a circunstância relativa à efetiva capacidade física de trabalho do menor de 12 anos, considerando que até essa idade a pessoa ainda é uma criança. Consequentemente, as aptidões da criança para se considerar uma força de trabalho, ainda que familiar, são bastante limitadas. […] 

Ademais, esse Juízo já realizou audiências para oitiva de testemunhas que buscavam o reconhecimento do tempo de serviço rural das crianças (até 12 anos de idade segundo o ECA), onde as declarações das testemunhas foram no sentido de que auxiliavam os pais na lavoura, pois não poderiam ficar sozinhos em casa, e estavam sempre supervisionados pois não tinham autonomia. Representava uma atividade lúdica, uma brincadeira, um passatempo, não tendo os contornos de labor rurícola em prol da produção agrícola ou pecuária. (sentença proferida nos autos do processo 5000903-77.2024.4.04.7010).

 Em outro caso, o juízo caracteriza o trabalho da criança como “dispensável” e um mero auxílio à família:

Todavia, entendo não ser possível seu reconhecimento. Não há elementos mínimos indicando a necessidade de seu trabalho para a subsistência do grupo familiar. […]Assim, não há nenhum elemento probatório indicando a indispensabilidade do trabalho rural pela parte autora em momento anterior ao implemento de seus 12 (doze) anos. Acaso tenha labor campesino, consubstanciava mero auxílio, esporádico e pontual (sentença proferida nos autos do processo 5015024-96.2022.4.04.7102).

Esse entendimento não condiz com a realidade brasileira. Graças às crianças, que trabalham arduamente desde muito cedo, é possível manter a agricultura familiar. Todos que trabalhavam na lavoura têm papel indispensável ao sustento da família. Mesmo porque não se colocam crianças para trabalhar por mero capricho, trata-se de uma necessidade do meio rural, sem a qual as famílias teriam prejuízo, até porque muitos agricultores não detêm poder econômico para automatizar a lavoura ou contratar pessoas para ajudar na lavoura.

Ora, se as provas materiais e testemunhal demonstrarem que a família inteira, pais e filhos, trabalhava em conjunto na atividade rural, e que era a soma do trabalho de todos, inclusive das crianças, que permitia que a família pudesse manter o regime de economia familiar, sem contratação de empregados ou compra de maquinários; deve ser considerado o trabalho da criança. É graças às crianças, que trabalham arduamente desde tenra idade, que é possível manter a agricultura familiar, de modo que não há “mero auxílio” ou trabalho “dispensável”. Todos que trabalham na lavoura têm papel indispensável ao sustento da família se a família vive da agricultura.

Com a devida vênia, este entendimento deve ser rechaçado para que a jurisprudência do STJ e do STF sobre o tema não seja invalidada por mera irresignação dos julgadores de primeira instância, invalidando por via oblíqua a uniformização da jurisprudência sobre o tema, abrindo-se margem ao julgador para entender genericamente, sem qualquer fundamento especificamente afeito ao caso dos autos, que o trabalho da criança menor de doze anos é sempre dispensável porque a criança estuda e não possui força física por ser, claro, uma criança.       

Afinal, se o núcleo familiar vivia da agricultura e a criança trabalhava com a família na agricultura, o trabalho de todos é indispensável. Do contrário, dá-se uma carta branca para retirar totalmente a efetividade da importante jurisprudência do STJ e do STF a respeito da temática. De que adianta o importante precedente jurisprudencial se o julgador fixar obstáculos intransponíveis que, embora revestidos de análise da prova, não passam de dogmas do próprio julgador interferindo no que ele entende por trabalho rural indispensável à família.

É insuficiente como fundamento de uma decisão judicial simplesmente afirmar que o labor rural da criança seria “mero auxílio”. Parece haver certo desconhecimento da realidade das famílias rurais brasileiras. Afinal, os pais não colocam crianças na árdua atividade rurícola a trabalhar “por hobby”, como se pudessem dar conta sozinhos das atividades rurais ou como se tivessem a opção de contratar empregados e diaristas. A questão beira à obviedade: se uma criança trabalha desde tenra idade na atividade rural familiar é porque é necessário, porque sem ela a família teria prejuízo no sustento. Isso é comum na área rural, ainda mais para segurados especiais que não detêm poder econômico para automatizar a lavoura ou contratar safristas ou empregados.

A solução até o momento

Frente a estes obstáculos, resta aos advogados uma atuação atenta e especialmente dedicada quando o caso envolve o trabalho rural infantil.

É importante buscar o máximo de informações desde o início do processo, descrevendo com detalhes quais as atividades que o segurado conseguia exercer quando criança, para evitar o argumento “não possuía força física para trabalhar”; descrevendo como era a composição familiar, o tamanho da terra, o que produziam, que máquinas tinham, para evitar a menção ao caráter “auxiliar/dispensável” do trabalho da criança.

Deve-se dar especial atenção à prova testemunhal, com perguntas focadas em demostrar ao julgador o que foi narrado na inicial, a fim de convencer o julgador de que o trabalho rural na infância é trabalho rural, é árduo, é indispensável à família e merece, por isso, a respectiva averbação.

Com uma boa produção probatória, é possível limitar os caminhos para negar o direito à averbação do tempo. Senão em primeira instância, pelo menos em segundo grau, com uma atuação próxima aos julgadores, seja através de apresentação de memoriais e sustentação oral focadas no trabalho rural infantil, ou mesmo “despachando” com o julgador a fim de apontar os elementos cruciais ao entendimento do caso.

Conclusões

Em resumo, podemos afirmar que sim, é possível averbar o tempo rural da infância. Isso depende de boas provas e, especialmente, de bons testemunhos para mostrar a importância das crianças no dia a dia rural, mas também do bom senso dos julgadores de não ignorar a realidade brasileira e a importância de todos os integrantes da família na agricultura familiar.

Quando o assunto é trabalho rural infantil, o básico não basta, não é apenas apresentar prova material e buscar documentos ratificadores nos órgãos públicos ou simplesmente uma prova testemunhal abrangente sobre todo o trabalho rural. É necessário demonstrar categoricamente o trabalho rural infantil para evitar os obstáculos e a incompreensão da importância das crianças na agricultura e pecuária familiares. 

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