Não se pode desconhecer a excepcional situação de dificuldade na manutenção dos empregos e na proteção social dos trabalhadores vinculados ao Regime Geral de Previdência Social, diante das medidas de contenção e isolamento determinadas pela pandemia de Coronavírus.

Nesse contexto, trabalhadores contratados há poucos meses ou autônomos que abriram seu negócio recentemente podem questionar-se se poderão contar com a proteção social do INSS em caso de incapacidade laborativa oriunda do coronavírus. Surge, então, o questionamento se a Coronavírus pode ser enquadrada como doença grave ou como acidente de qualquer natureza, para fins de dispensa de carência na obtenção de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez.

É consabido que muitos profissionais da área da saúde estão expostos a um risco maior de contágio, havendo também o evidente risco de contaminação de outros profissionais que trabalham no atendimento ao público, locais como supermercados, farmácias, postos de gasolina, delivery etc.

Há notório risco de contágio, a não depender somente do obreiro. Dessa forma, é importante questionar se, em caso de contágio, necessidade de tratamento médico e isolamento, o trabalhador vai estar amparado previdenciariamente e quais os requisitos para tanto.

 

O que é carência?

Consoante dispõe o art. 24 da Lei 8.213/91, carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências.

Tal exigência se justifica pelo fato da Previdência Social no Brasil possuir caráter contributivo, sendo razoável exigir do obreiro um número mínimo de contribuições para fazer jus aos benefícios.

Regra geral, a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez depende do implemento de 12 contribuições mensais (art. 25 da Lei de Benefícios). Por outro lado, o art. 26, em seu inciso II, assim determina:

Art. 26. Independe de carência a concessão das seguintes prestações: […]

II – auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, após filiar-se ao RGPS, for acometido de alguma das doenças e afecções especificadas em lista elaborada pelos Ministérios da Saúde e da Previdência Social, atualizada a cada 3 (três) anos, de acordo com os critérios de estigma, deformação, mutilação, deficiência ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que mereçam tratamento particularizado; (Redação dada pela Lei nº 13.135, de 2015) […]

Desse modo, vislumbra-se que a carência somente será dispensada nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa, doença profissional ou de trabalho e de doenças listadas pelo Ministério da Saúde e Previdência Social.

Cabe, pois analisarmos as possibilidades de enquadramento.

 

Do não enquadramento como doença profissional

No dia 22 de março de 2020, foi publicada a Medida Provisória nº 927, que determina que os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal (art. 29).

O nexo causal cinge-se na possibilidade do trabalhador comprovar que a doença foi causada pelo contato do profissional com alguém acometido de Covid-19 em seu ambiente de trabalho.

Neste cenário, salvo possibilidade de prova pelo obreiro, apenas os trabalhadores da saúde teriam direito ao auxílio-doença decorrente de acidente ou doença do trabalho. Trata-se de garantia nos casos em que restar comprovada a exposição a pacientes contaminados.

Dessa forma, como doença profissional, verifica-se a restrita possibilidade de dispensa do requisito carência nos casos de contágio da doença por profissionais da saúde, demandando outras situações de prova do nexo causal.

 

Rol de doenças graves que independem de carência

A teor do que dispõe o art. 151 da Lei 8.213/91 e a Portaria Interministerial MPAS/MS nº 2.998/2001, independe de carência a concessão de auxílio-doença e de aposentadoria por invalidez ao segurado que, após filiar-se ao RGPS, for acometido das seguintes doenças:

Tuberculose ativa, hanseníase, alienação mental, esclerose múltipla, hepatopatia grave, neoplasia maligna, cegueira, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estado avançado da doença de Paget (osteíte deformante), síndrome da deficiência imunológica adquirida (aids) ou contaminação por radiação

O rol acima não contempla eventual patologia desencadeada por epidemia/pandemia, portanto, avalia-se se esta listagem é tida como exemplificativa ou restritiva.

De antemão, a leitura do artigo e da portaria mencionados leva a conclusão de listagem exaustiva, em razão de sua literalidade.

O debate jurisprudencial sobre o tema encontra correlação com o rol de doenças listadas no art. 186, § 1º da Lei 8.112/90, que versa sobre situações de aposentadoria por invalidez com proventos integrais aos servidores públicos. Segundo a jurisprudência do STF, o rol das doenças e moléstias que ensejam aposentadoria por invalidez com proventos integrais tem natureza taxativa (RE 656.860).

Por outro lado, o TRF da 4ª Região mantém entendimento que “o rol de situações que dispensam a carência previsto no inciso II do artigo 26 da Lei 8.213/91 não foi estabelecido numerus clausus” (TRF4, AC 5034141-59.2015.4.04.9999, QUINTA TURMA, Relatora TAÍS SCHILLING FERRAZ, juntado aos autos em 20/11/2015).

Destarte, é evidente a impossibilidade de prever todas as doenças consideradas graves, em especial diante de um cenário mundial jamais visto.

No mais, cabe também fazer um questionamento a respeito de possíveis alterações que necessitem ser feitas na lei, para inserir a patologia de Covid-19 no rol do art. 151 da Lei 8.213/91 e na Portaria Interministerial acima citada.

Assim, tratando-se de doença grave, de difícil controle, que demanda isolamento e, às vezes, internação hospitalar, deve ser adotada interpretação que assegure, com fundamento no princípio in dubio pro misero, a proteção ao bem jurídico tutelado pelos benefícios de incapacidade, isto é, a vida, a saúde, e, mais remotamente, a própria dignidade da pessoa humana, fundamento no artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal.

 

Acidente de qualquer natureza: conceito e possibilidade de enquadramento

Conforme dispõe o art. 26 da Lei 8.213/91, independe de carência a concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa.

A esse respeito, é importante referir que o termo ‘acidente’ não significa apenas caso fortuito, inesperado, mas também um acontecimento desagradável que cause incapacidade, dano, perda, lesão, sofrimento ou morte.

A menção de ser de qualquer natureza ou causa exclui apenas a natureza laboral, abrangendo os demais casos de acidentes típicos e moléstia de origem exógena.

Neste sentido, vale destacar a seguinte lição:

[…] diagnóstico de toxoplasmose, que possui, dentre as possibilidades de sequela, a cegueira. A contaminação dessa doença infectocontagiosa pelo Toxoplasma Gondii é transmitida por contágios notoriamente conhecidos. Esse contágio não poderia ser considerado um acidente? Afinal, ninguém ingere produtos que podem ter a doença de forma consciente e espontânea, mas sim acidental. [1]

Logo, a luz de uma interpretação teleológica da sistemática previdenciária, conclui-se o conceito de acidente de qualquer natureza ou causa abrange o contágio pela Covid-19, visto se tratar de situação totalmente inesperada e imprevisível, isto porque a contaminação ocorre de forma ACIDENTAL.

Em resumo, é de suma importância a presente indagação, visto que inúmeras pessoas poderão ser afetadas, diante de uma interpretação restritiva que afaste a proteção previdenciária, especialmente trabalhadores recém contratados e autônomos que não possuam um mínimo de doze contribuições.

Pelo exposto, cabe a nós advogados previdenciaristas suscitar a discussão a respeito do tema, seja por meio de sugestões à possível nova regulamentação da matéria, seja por meio de fundamentação específica nos casos práticos.

Por fim, o Previdenciarista já disponibilizou um modelo de petição inicial para casos como este, com o pedido de isenção de carência.

 

[1] MARTINEZ, Wladimir Novaes, coordenador. Auxílio-acidente de qualquer natureza. São Paulo: LTr, 2016.

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