Dentre as alterações promovidas pela Reforma da Previdência está o benefício de pensão por morte, o qual que teve modificações em relação à forma de cálculo da cota familiar. Além disso, é também possível observar outra alteração, de forma reflexa, pois o art. 23, § 6º da EC 103/2019 abordou os dependentes equiparados a filho, excluindo do rol o menor sob guarda.
Veja-se o que dispõe o referido artigo:
Art. 23. A pensão por morte concedida a dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social ou de servidor público federal será equivalente a uma cota familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito, acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100% (cem por cento).
[…]
6º Equiparam-se a filho, para fins de recebimento da pensão por morte, exclusivamente o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica.
O texto da Emenda Constitucional está em consonância com o artigo 16, § 2º da Lei 8.213/91, que somente abarca como equiparados a filho o enteado e o menor tutelado.
Em ambas as previsões acima, vislumbra-se a exclusão do menor sob guarda como dependente previdenciário.
Não obstante, antes do advento da EC 103/2019, diversas decisões judiciais, amparados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, vinham assegurando os direitos previdenciários ao menor sob guarda como dependente equiparado a filho.
A extensão da proteção previdenciária ao menor sob guarda se justifica pois o ECA (Lei 8.069/90) é lei federal vigente e legislação especial, que confere expressamente a condição de dependente ao menor sob guarda, razão pela qual se obedece a legislação protetiva à criança, bem maior tutelado pelo Estado. Perceba-se:
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais. (Vide Lei nº 12.010, de 2009) Vigência […]
3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.
Aliado a isso, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos (Tema 732), em 11/10/2017, fixou a seguinte tese:
DIREITO PREVIDENCIÁRIO E HUMANITÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROCESSAMENTO NOS TERMOS DO ART. 543-C DO CPC E DA RESOLUÇÃO 08/STJ. DIREITO DO MENOR SOB GUARDA À PENSÃO POR MORTE DO SEU MANTENEDOR. EMBORA A LEI 9.528/97 O TENHA EXCLUÍDO DO ROL DOS DEPENDENTES PREVIDENCIÁRIOS NATURAIS OU LEGAIS DOS SEGURADOS DO INSS. PROIBIÇÃO DE RETROCESSO. DIRETRIZES CONSTITUCIONAIS DE ISONOMIA, PRIORIDADE ABSOLUTA E PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE (ART. 227 DA CF). APLICAÇÃO PRIORITÁRIA OU PREFERENCIAL DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI 8.069/90), POR SER ESPECÍFICA, PARA ASSEGURAR A MÁXIMA EFETIVIDADE DO PRECEITO CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO. PARECER DO MPF PELO NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO, A TEOR DA SÚMULA 126/STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO, PORÉM DESPROVIDO. […] 9. Em consequência, fixa-se a seguinte tese, nos termos do art. 543-C do CPC/1973: O MENOR SOB GUARDA TEM DIREITO À CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE DO SEU MANTENEDOR, COMPROVADA A SUA DEPENDÊNCIA ECONÔMICA, NOS TERMOS DO ART. 33, § 3o. DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, AINDA QUE O ÓBITO DO INSTITUIDOR DA PENSÃO SEJA POSTERIOR À VIGÊNCIA DA MEDIDA PROVISÓRIA 1.523/96, REEDITADA E CONVERTIDA NA LEI 9.528/97. FUNDA-SE ESSA CONCLUSÃO NA QUALIDADE DE LEI ESPECIAL DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (8.069/90), FRENTE À LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA. 10. Recurso Especial do INSS desprovido. (REsp 1411258/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/10/2017, DJe 21/02/2018, com grifos acrescidos)
O Supremo Tribunal Federal proferiu decisão nos autos do MS nº 32.907/DF, manifestando a prevalência ao art. 33 da ECA em um caso de menor sob guarda beneficiário do Regime Próprio de Previdência Social. Vale destacar trecho da decisão proferida pela Ministra Cármen Lúcia:
[…] A preocupação com os indivíduos quanto a eventos que lhes possam causar dificuldade ou até mesmo impossibilidade de prover sua subsistência, está na gênese da proteção social buscada pelo Estado contemporâneo, objetivando garantir a todos a dignidade da vida. […]
Mais grave se afigura a violação se o excluído for criança ou adolescente, que contam com proteção especial do Estado, o que abrange garantias de direitos previdenciários, nos termos do inc. II do § 3º do art. 227 da Constituição da República. E o art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que “a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários”. […]
Atualmente, a questão em análise possui duas ADIs pendentes de julgamento (nº 4.878 e 5.083).
De outro norte, importante atentar para os conceitos de guarda e tutela que permeiam a área de direito de família, mas que são fundamentais para a compreensão e aplicação do direito previdenciário nesse tema.
A guarda abrange hipótese em que o menor está sob os cuidados daqueles que não são seus pais biológicos, de modo que se faz necessária a definição de um guardião legal para assumir estas responsabilidades. Trata-se de circunstância em que os pais não perdem o poder familiar sobre o menor, porém, se efetiva a regularização da situação do infante, no intuito de permitir aquele que efetivamente está cuidando do menor tenha autonomia para tomar decisões sobre ele.
Por sua vez, a tutela, diferentemente da guarda, outorga a responsabilidade pelo menor a terceiro quando não mais existir o poder familiar, seja pelo falecimento de ambos os pais, ou porque eles foram destituídos ou suspensos do poder familiar.
Nesse contexto, é possível concluir que a guarda destina-se a prestar a assistência necessária ao menor, principalmente, material, moral e educacional, conforme menciona o § 1º do art. 33 do ECA:
Art. 33. […]
1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros. […]
Logo, a rigidez imposta pela EC 103/2019 ao excluir o menor sob guarda como dependente previdenciário confere tratamento normativo distinto, de situações semelhantes (menor tutelado), violando o princípio da isonomia e da proteção ao hipossuficiente.
Embora as regras sobre pensão previstas no art. 23 da EC 103/2019 possam ser alteradas por lei ordinária, a ausência de garantia atual ao menor sob guarda do direito de ter concedida a pensão por morte, na hipótese de falecimento de seu guardião, configura retrocesso social, sobretudo considerando que o próprio artigo 227 da Constituição Federal determina à família, à sociedade e ao Estado a absoluta proteção das crianças e adolescentes, no mais amplo sentido, o que lhes confere prioritária proteção, inclusive na esfera previdenciária.
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