Inicialmente, é fundamental esclarecer que é falso que o Projeto de Lei 2.047/23, de autoria da Deputada Marussa Boldrin – MDB/GO, prevê que também as donas de casa terão direito à aposentadoria como seguradas especiais. É necessário começar por esse ponto para desconstruir algumas afirmações feitas sobre o assunto. O projeto prevê uma interpretação mais adequada quanto aos documentos de atividade rural.  

Historicamente, as mulheres do campo tiveram dificuldades com o reconhecimento da sua profissão e da sua atividade na agricultura. Muitas delas não têm qualquer documento com o registro da profissão como “lavradora”, “agricultora”, “trabalhadora rural” ou similar. 

Conscientização da importância da informação correta

Ao contrário, são intituladas “do lar”, “doméstica”, “afazeres domésticos”, dentre outras nomenclaturas sem qualquer menção ao trabalho agrícola. É de se reconhecer que, atualmente, já há maior conscientização da importância da informação correta nos registros em geral. 

A Instrução Normativa n. 128, de 28 de março de 2024, prevê que qualquer documento pode ser usado por qualquer membro do grupo familiar. Isso, em tese, resolveria a questão da documentação da mulher. Entretanto, ainda há muitas decisões administrativas que fundamentam o indeferimento por conta da profissão “doméstica” ou “do lar” na certidão de casamento. 

No âmbito judicial, também encontramos afirmações como: 

Ademais, verifico que apenas dois dos documentos apresentados pela autora são contemporâneos ao interregno ora analisado (as certidões de nascimento da filha e de casamento da requerente, expedidas em 1981), sendo que ambos qualificam a autora como doméstica. ( 5000711-18.2022.4.04.7204, PRIMEIRA TURMA RECURSAL DE SC, Relator EDVALDO MENDES DA SILVA DOURADO, julgado em 09/05/2024)

Conforme visto, inexiste qualquer contrato de parceria ou notas de comercialização, não sendo possível comprovar a tese recursal através de prova exclusivamente testemunhal, como pretende a recorrente, através das declarações juntadas em nomes dos filhos dos proprietários das terras (evento 1, PROCADM6- fls. 11 a 13). Ademais, em mais de um documento a autora foi qualificada como doméstica e do lar, o que coloca em dúvida qual era o seu real vínculo de atividade laborativa nas terras. ( 5020417-81.2022.4.04.7108, PRIMEIRA TURMA RECURSAL DO RS, Relator ANDRÉ DE SOUZA FISCHER, julgado em 15/04/2024)

É bem verdade que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento diverso: 

Ressalto, ainda, que se encontra pacificado no Superior Tribunal de Justiça que a qualificação da mulher como “doméstica” ou “do lar” na certidão de casamento não descaracteriza sua condição de trabalhadora rural, uma vez que é comum o acúmulo da atividade rural com a doméstica, de forma que a condição de rurícola do marido contido no documento matrimonial pode ser estendida à esposa.(AREsp n. 2.171.268, Ministro Humberto Martins, DJe de 06/02/2023.)

Após demonstrado que a qualificação da mulher como doméstica em registros civis ainda é um problema, voltemos ao Projeto de Lei que propõe incluir o Parágrafo Único no art. 106 da Lei 8.213/91:

A qualificação da mulher como “do lar”, “dona de casa”, “doméstica” ou outras similares, em documentos de que trata este artigo ou o Regulamento, não impedirá o reconhecimento de sua qualidade de segurada especial, devendo ser admitidos, de forma complementar à autodeclaração de que trata o § 2º e ao cadastro de que trata o § 1º, ambos do art. 38-B desta Lei, aqueles nos quais conste expressamente a qualificação da segurada e de seu cônjuge ou companheiro, enquanto durar o matrimônio ou a união estável, ou da segurada e de seu ascendente, enquanto dependente deste, na condição de trabalhador rural, rurícola, lavrador ou agricultor.

Na Exposição de Motivos, a autora do PL refere justamente a interpretação recorrente de que a qualificação errônea nos documentos é fato impeditivo para o reconhecimento do direito e o acesso aos benefícios previdenciários, especialmente a aposentadoria rural. 

A proposta está inclusive, a nosso ver, atendendo a um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: 

5.c Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis

O Conselho Nacional de Justiça, por meio da RESOLUÇÃO N. 492, DE 17 DE MARÇO DE 2023, estabeleceu a obrigatoriedade da adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário. Mais especificamente quanto ao tempo aqui apreciado, o respectivo Protocolo dispõe: 

(…) A constituição de prova quanto à atividade rurícola para a mulher que vindica aposentadoria rural deve ser sensível a essas circunstâncias caracterizadas tanto pela proeminência do arcabouço probatório documental em nome e em posse do companheiro quanto pelo trabalho por ela majoritariamente desempenhado não ser comumente documentado. Assim, a qualificação do companheiro precisa prestigiar essa mulher.

Nota-se que há uma preocupação mundial com a efetivação dos direitos das mulheres, compromisso assumido pelo Brasil, ao aderir à Agenda 2.030 da ONU. O Judiciário vai (deve ir) nessa mesma linha. 

Quanto ao Projeto de Lei, entendemos, por um lado, lamentável que ainda seja necessário para que se garante o reconhecimento dos direitos das agricultoras. Por outro lado, se aprovado, certamente vai contribuir para melhorar o acesso das mulheres aos benefícios rurais. 

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