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CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITOS INDÍGENAS. SALÁRIO-MATERNID...

Data da publicação: 29/06/2020, 13:52:23

EMENTA: CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITOS INDÍGENAS. SALÁRIO-MATERNIDADE. REQUISITO ETÁRIO. IDADE MÍNIMA. DESCONSIDERAÇÃO. MULHERES INDÍGENAS. ETNIA KAINGANG. SEGURADAS ESPECIAIS. PROTEÇÃO SOCIAL CONSTITUCIONAL. PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA. MULHER INDÍGENA. DISCRIMINAÇÃO POR ETNIA, SEXO E IDADE. DISCRIMINAÇÃO MÚLTIPLA OU INTERSECCIONAL. DIREITOS CULTURAIS. DIVERSIDADE CULTURAL. DIREITO AO RECONHECIMENTO. DIREITO PROBATÓRIO. DISCRIMINAÇÃO INDIRETA. PODER JUDICIÁRIO. LEGISLADOR NEGATIVO. ATUAÇÃO CONCRETIZADORA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. APLICAÇÃO IMEDIATA. DIREITOS SOCIAIS DERIVADOS. PRESTAÇÃO SOCIAL POSITIVA. PROIBIÇÃO DO TRABALHO. MENORES DE DEZESSEIS ANOS. NORMA PROTETIVA. TRATAMENTO DIFERENCIADO. POSSIBILIDADE. 1. O MPF tem legitimidade para a defesa, por meio de ação civil pública, de direitos individuais homogêneos em matéria previdenciária, notadamente em defesa das comunidades indígenas, nos termos do art. 129, V, da Constituição. 2. Direito à proteção previdenciária em favor de mulheres mães indígenas, ainda que com idade inferior a 14 anos de idade. 3. A Constituição da República reconhece "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" (art. 231). O Estatuto do Índio prevê que "o regime geral da previdência social será extensivo aos índios, atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas" (art. 55). 4. A Constituição de 1988, atenta às diferenças culturais presentes na sociedade brasileira, previu tratamento específico quanto às culturas e etnias indígenas. Toda a legislação infraconstitucional deve ser interpretada conforme o comando do artigo 231, que prevê verdadeiro direito ao reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas. 5. Inaplicabilidade ao caso do art. 11, VII, "c", da Lei n.º 8.213/1991, que estipula a idade de 16 anos, para o filho ou quem for a este equiparado, como segurado obrigatório da Previdência Social, porque não se trata de condição de segurada decorrente da qualidade de filha, mas sim de cônjuge ou companheira de segurado especial, uma vez que a mulher indígena em questão estabelece relação conjugal. 6. Mesmo no paradigma do Código Civil, direito legislativo próprio da cultura não-indígena, permite-se o casamento aquém dos 16 anos de idade, em caso de gravidez (CC, art. 1520). Se assim é em norma jurídica cuja aplicação divorciada da cultura indígena seria inadequada - e que poderia levar à condição de segurada, como cônjuge, abaixo dos 16 anos -, com muito mais razão diante do mandamento constitucional de respeito às diferenças culturais. 7. No plano dos fatos, a literatura especializada não deixa dúvida quanto à idade de casamento na cultura kaingang ser não só inferior aos 16 anos, como serem consideradas adultas e, portanto, aptas para casarem desde a menarca (que ocorre entre os 9 e 15 anos, acontecendo em média aos 12 anos; dentre os Kaingang, há registro científico de 13 anos como idade média. 8. Na cultura indígena em questão, como em geral nas culturas indígenas espalhadas pelo Brasil, por volta dos 12 anos surgem não somente a menarca, como também a vida adulta. Junto com a vida adulta, não há como não reconhecer, igualmente, a participação ativa e relevante destas indígenas nas atividades vitais para o desenvolvimento de sua comunidade, expressão que utilizo objetivando aproximar-me da categoria "trabalho", como entendida desde a modernidade. 9. Não bastasse a proibição constitucional de discriminação sexista quanto à compreensão do que seja trabalho, a proibição de discriminação étnica também incide, fazendo ver que as atividades desempenhadas por mulheres indígenas casadas e mães, independentemente de idade, são culturalmente relevantes e valorizadas na cultura kaingang. É preciso, portanto, evitar qualquer tentação colonialista de desprezar o trabalho indígena, sob pena de violação da proibição de discriminação por motivo étnico, bem como em face do artigo 231 da CF/88. 10. Assim, ficam superadas alegações quanto à falta de comprovação de trabalho ou, do "costume de trabalhar" (sic). Tal argumentação parece padecer, ainda que involuntariamente, das representações preconceituosas, decorrentes do etnocentrismo, em particular, quanto às atividades produtivas na cultura indígena, e, mais ainda, quando se entrecruzam etnia, sexo e idade. 11. Diante de fatos históricos, passados e presentes, bem como da organização social da cultura indígena, estamos diante de fato púbico e notório, que não pode se confundir somente com aquilo que é disseminado no senso comum e, mais grave ainda, no senso comum da cultura branca ocidental. A dificuldade probatória decorrente da chamada discriminação institucional indireta, vale dizer, de efeitos discriminatórios involuntários originados da dificuldade que a cultura dominante e os grupos privilegiados tem para perceber a sua posição de vantagem e a naturalização, como se neutra fosse, sua visão de mundo. 12. A jurisprudência, inclusive aquela do Supremo Tribunal Federal, assentou que não podem ser prejudicados em seus direitos trabalhistas e previdenciários os menores de idade que exerçam efetivamente atividade laboral, ainda que contrariamente à Constituição e à lei, no tocante à idade mínima permitida para o referido trabalho. O limite mínimo de idade para que alguém possa trabalhar é garantia constitucional em prol do menor, vale dizer, norma protetiva do menor norteadora da legislação trabalhista e previdenciária. A mesma norma editada para proteger o menor não pode, no entanto, prejudicá-lo naqueles casos em que, não obstante a proibição constitucional, efetivamente trabalhou. 13. Não se sustenta o argumento de que o Estatuto do Índio apenas estende aos índios o regime previdenciário em vigor, o que significaria tornar letra morta o art. 55. Fosse correta tal interpretação, bastaria ao Estatuto dizer que a Previdência Social deve abranger os índios, sem necessidade de atender suas condições sociais, econômicas e culturais. Este argumento não ultrapassa, ainda pelo menos duas ordens de razões. A primeira diz respeito mesmo à letra da lei, aplicada no contexto cultural em causa. A mulher indígena aqui não é filho nem menor a tanto equiparada. Ela é, no mínimo, cônjuge, quando não trabalhadora segurada especial. A segunda, a partir e mesmo além da letra da lei, pelo chamado "espírito da lei", no caso, a sua finalidade protetiva. 14. De outro lado, não se está a aplicar tratamento diferenciado com base em critérios não razoáveis. Pelo contrário, o critério de diferenciação é perfeitamente razoável, tendo em vista as peculiaridades da cultura indígena, em especial da etnia Kaingang, e está expressamente previsto em Lei (Estatuto do Índio). Trata-se de normativa, a propósito, que deve ser vista como especial, prevalecendo diante das disposições da Lei n.º 8.213/1991, que ignoram os costumes das comunidades indígenas. 15. É superável igualmente o argumento de que a permissão da concessão de benefício a menores de dezesseis anos equivale a política assistencialista, cuja atribuição é da FUNAI. Não se trata de política propriamente assistencialista, mas sim de conceder benefício previdenciário também a menores de dezesseis anos, assim como já é concedido às maiores, desde que satisfeitos os demais requisitos. 16. Também não se sustenta o argumento de que a flexibilização do limite etário incentivará o trabalho infantil e a gravidez precoce. A um, porque tais elementos já ocorrem há muito tempo, fazendo parte da cultura dos índios, havendo ou não cobertura previdenciária; a dois, porque não se concebe a impossibilidade de se conceder qualquer benefício previdenciário ao argumento de que poderá abstratamente incentivar alguém a preferir a situação de risco coberta pela Previdência. A possibilidade de recebimento de salário-maternidade de forma alguma incentivará a gravidez precoce e muito menos pode servir de argumento para flexibilizar o requisito etário. 17. Não se trata de atuação do Poder Judiciário como legislador positivo. Primeiro, porque o artigo 231 da CF/88, que é norma de direito fundamental, a proteger liberdade e igualdade fundamentais aos povos indígenas, bem como a reconhecer sua dignidade, tem eficácia direta e imediata. Ainda que não se empreste tal eficácia direta e aplicabilidade imediata do direito de igualdade, estamos diante de direito fundamental derivado a não-ser discriminado no sistema previdenciário. Deste modo, o tribunal está agindo não como legislador positivo, não está inovando. Ele está aplicando a clássica proteção antidiscriminatória, de natureza negativa, ao dizer o que o legislador, no sistema que ele mesmo erigiu, não pode fazer: ele não pode excluir direito derivado à proteção social para uns e favorecer outros. Dito de outro modo: não há espaço para opção legislativa que viole o dever de observância à igualdade, seja diretamente, seja, como no caso, de direito derivado a prestação social. 18. Apelação e remessa necessária desprovidas, mantendo-se a sentença que determinou ao INSS que admita o ingresso no RGPS e se abstenha de indeferir benefício de salário-materinidade em razão do requisito etário para mulheres indígenas residentes em comunidades Kaingang abrangidas pela Subseção Judiciária de Palmeira das Missões/RS. (TRF4, AC 5001796-23.2015.4.04.7127, QUINTA TURMA, Relator ROGER RAUPP RIOS, juntado aos autos em 29/03/2017)


APELAÇÃO CÍVEL Nº 5001796-23.2015.4.04.7127/RS
RELATOR
:
ROGER RAUPP RIOS
APELANTE
:
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO
:
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
INTERESSADO
:
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI
:
UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
EMENTA
CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITOS INDÍGENAS. SALÁRIO-MATERNIDADE. REQUISITO ETÁRIO. IDADE MÍNIMA. DESCONSIDERAÇÃO. MULHERES INDÍGENAS. ETNIA KAINGANG. SEGURADAS ESPECIAIS. PROTEÇÃO SOCIAL CONSTITUCIONAL. PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA. MULHER INDÍGENA. DISCRIMINAÇÃO POR ETNIA, SEXO E IDADE. DISCRIMINAÇÃO MÚLTIPLA OU INTERSECCIONAL. DIREITOS CULTURAIS. DIVERSIDADE CULTURAL. DIREITO AO RECONHECIMENTO. DIREITO PROBATÓRIO. DISCRIMINAÇÃO INDIRETA. PODER JUDICIÁRIO. LEGISLADOR NEGATIVO. ATUAÇÃO CONCRETIZADORA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. APLICAÇÃO IMEDIATA. DIREITOS SOCIAIS DERIVADOS. PRESTAÇÃO SOCIAL POSITIVA. PROIBIÇÃO DO TRABALHO. MENORES DE DEZESSEIS ANOS. NORMA PROTETIVA. TRATAMENTO DIFERENCIADO. POSSIBILIDADE.
1. O MPF tem legitimidade para a defesa, por meio de ação civil pública, de direitos individuais homogêneos em matéria previdenciária, notadamente em defesa das comunidades indígenas, nos termos do art. 129, V, da Constituição.
2. Direito à proteção previdenciária em favor de mulheres mães indígenas, ainda que com idade inferior a 14 anos de idade.
3. A Constituição da República reconhece "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" (art. 231). O Estatuto do Índio prevê que "o regime geral da previdência social será extensivo aos índios, atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas" (art. 55).
4. A Constituição de 1988, atenta às diferenças culturais presentes na sociedade brasileira, previu tratamento específico quanto às culturas e etnias indígenas. Toda a legislação infraconstitucional deve ser interpretada conforme o comando do artigo 231, que prevê verdadeiro direito ao reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas.
5. Inaplicabilidade ao caso do art. 11, VII, "c", da Lei n.º 8.213/1991, que estipula a idade de 16 anos, para o filho ou quem for a este equiparado, como segurado obrigatório da Previdência Social, porque não se trata de condição de segurada decorrente da qualidade de filha, mas sim de cônjuge ou companheira de segurado especial, uma vez que a mulher indígena em questão estabelece relação conjugal.
6. Mesmo no paradigma do Código Civil, direito legislativo próprio da cultura não-indígena, permite-se o casamento aquém dos 16 anos de idade, em caso de gravidez (CC, art. 1520). Se assim é em norma jurídica cuja aplicação divorciada da cultura indígena seria inadequada - e que poderia levar à condição de segurada, como cônjuge, abaixo dos 16 anos -, com muito mais razão diante do mandamento constitucional de respeito às diferenças culturais.
7. No plano dos fatos, a literatura especializada não deixa dúvida quanto à idade de casamento na cultura kaingang ser não só inferior aos 16 anos, como serem consideradas adultas e, portanto, aptas para casarem desde a menarca (que ocorre entre os 9 e 15 anos, acontecendo em média aos 12 anos; dentre os Kaingang, há registro científico de 13 anos como idade média.
8. Na cultura indígena em questão, como em geral nas culturas indígenas espalhadas pelo Brasil, por volta dos 12 anos surgem não somente a menarca, como também a vida adulta. Junto com a vida adulta, não há como não reconhecer, igualmente, a participação ativa e relevante destas indígenas nas atividades vitais para o desenvolvimento de sua comunidade, expressão que utilizo objetivando aproximar-me da categoria "trabalho", como entendida desde a modernidade.
9. Não bastasse a proibição constitucional de discriminação sexista quanto à compreensão do que seja trabalho, a proibição de discriminação étnica também incide, fazendo ver que as atividades desempenhadas por mulheres indígenas casadas e mães, independentemente de idade, são culturalmente relevantes e valorizadas na cultura kaingang. É preciso, portanto, evitar qualquer tentação colonialista de desprezar o trabalho indígena, sob pena de violação da proibição de discriminação por motivo étnico, bem como em face do artigo 231 da CF/88.
10. Assim, ficam superadas alegações quanto à falta de comprovação de trabalho ou, do "costume de trabalhar" (sic). Tal argumentação parece padecer, ainda que involuntariamente, das representações preconceituosas, decorrentes do etnocentrismo, em particular, quanto às atividades produtivas na cultura indígena, e, mais ainda, quando se entrecruzam etnia, sexo e idade.
11. Diante de fatos históricos, passados e presentes, bem como da organização social da cultura indígena, estamos diante de fato púbico e notório, que não pode se confundir somente com aquilo que é disseminado no senso comum e, mais grave ainda, no senso comum da cultura branca ocidental. A dificuldade probatória decorrente da chamada discriminação institucional indireta, vale dizer, de efeitos discriminatórios involuntários originados da dificuldade que a cultura dominante e os grupos privilegiados tem para perceber a sua posição de vantagem e a naturalização, como se neutra fosse, sua visão de mundo.
12. A jurisprudência, inclusive aquela do Supremo Tribunal Federal, assentou que não podem ser prejudicados em seus direitos trabalhistas e previdenciários os menores de idade que exerçam efetivamente atividade laboral, ainda que contrariamente à Constituição e à lei, no tocante à idade mínima permitida para o referido trabalho. O limite mínimo de idade para que alguém possa trabalhar é garantia constitucional em prol do menor, vale dizer, norma protetiva do menor norteadora da legislação trabalhista e previdenciária. A mesma norma editada para proteger o menor não pode, no entanto, prejudicá-lo naqueles casos em que, não obstante a proibição constitucional, efetivamente trabalhou.
13. Não se sustenta o argumento de que o Estatuto do Índio apenas estende aos índios o regime previdenciário em vigor, o que significaria tornar letra morta o art. 55. Fosse correta tal interpretação, bastaria ao Estatuto dizer que a Previdência Social deve abranger os índios, sem necessidade de atender suas condições sociais, econômicas e culturais. Este argumento não ultrapassa, ainda pelo menos duas ordens de razões. A primeira diz respeito mesmo à letra da lei, aplicada no contexto cultural em causa. A mulher indígena aqui não é filho nem menor a tanto equiparada. Ela é, no mínimo, cônjuge, quando não trabalhadora segurada especial. A segunda, a partir e mesmo além da letra da lei, pelo chamado "espírito da lei", no caso, a sua finalidade protetiva.
14. De outro lado, não se está a aplicar tratamento diferenciado com base em critérios não razoáveis. Pelo contrário, o critério de diferenciação é perfeitamente razoável, tendo em vista as peculiaridades da cultura indígena, em especial da etnia Kaingang, e está expressamente previsto em Lei (Estatuto do Índio). Trata-se de normativa, a propósito, que deve ser vista como especial, prevalecendo diante das disposições da Lei n.º 8.213/1991, que ignoram os costumes das comunidades indígenas.
15. É superável igualmente o argumento de que a permissão da concessão de benefício a menores de dezesseis anos equivale a política assistencialista, cuja atribuição é da FUNAI. Não se trata de política propriamente assistencialista, mas sim de conceder benefício previdenciário também a menores de dezesseis anos, assim como já é concedido às maiores, desde que satisfeitos os demais requisitos.
16. Também não se sustenta o argumento de que a flexibilização do limite etário incentivará o trabalho infantil e a gravidez precoce. A um, porque tais elementos já ocorrem há muito tempo, fazendo parte da cultura dos índios, havendo ou não cobertura previdenciária; a dois, porque não se concebe a impossibilidade de se conceder qualquer benefício previdenciário ao argumento de que poderá abstratamente incentivar alguém a preferir a situação de risco coberta pela Previdência. A possibilidade de recebimento de salário-maternidade de forma alguma incentivará a gravidez precoce e muito menos pode servir de argumento para flexibilizar o requisito etário.
17. Não se trata de atuação do Poder Judiciário como legislador positivo. Primeiro, porque o artigo 231 da CF/88, que é norma de direito fundamental, a proteger liberdade e igualdade fundamentais aos povos indígenas, bem como a reconhecer sua dignidade, tem eficácia direta e imediata. Ainda que não se empreste tal eficácia direta e aplicabilidade imediata do direito de igualdade, estamos diante de direito fundamental derivado a não-ser discriminado no sistema previdenciário. Deste modo, o tribunal está agindo não como legislador positivo, não está inovando. Ele está aplicando a clássica proteção antidiscriminatória, de natureza negativa, ao dizer o que o legislador, no sistema que ele mesmo erigiu, não pode fazer: ele não pode excluir direito derivado à proteção social para uns e favorecer outros. Dito de outro modo: não há espaço para opção legislativa que viole o dever de observância à igualdade, seja diretamente, seja, como no caso, de direito derivado a prestação social.
18. Apelação e remessa necessária desprovidas, mantendo-se a sentença que determinou ao INSS que admita o ingresso no RGPS e se abstenha de indeferir benefício de salário-materinidade em razão do requisito etário para mulheres indígenas residentes em comunidades Kaingang abrangidas pela Subseção Judiciária de Palmeira das Missões/RS.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 5a. Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso de apelação e à remessa oficial, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 28 de março de 2017.
Des. Federal ROGER RAUPP RIOS
Relator


Documento eletrônico assinado por Des. Federal ROGER RAUPP RIOS, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 8815205v3 e, se solicitado, do código CRC E1C444AB.
Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): Roger Raupp Rios
Data e Hora: 29/03/2017 10:54




APELAÇÃO CÍVEL Nº 5001796-23.2015.4.04.7127/RS
RELATOR
:
ROGER RAUPP RIOS
APELANTE
:
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO
:
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
INTERESSADO
:
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI
:
UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
RELATÓRIO
Trata-se de recurso de apelação interposto pelo INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS contra sentença que julgou procedente a ação civil pública que lhe moveu o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, para "determinar que o Instituto Nacional do Seguro Social admita o ingresso no RGPS e se abstenha de indeferir o benefício de salário-maternidade exclusivamente em razão do critério etário para mulheres indígenas residentes em acampamentos e comunidades indígenas abrangidas por esta Subseção Judiciária de Palmeira das Missões/RS, atendidas as demais exigências legais".

Em suas razões recursais, arguiu, preliminarmente, a ilegitimidade ativa do MPF. No mérito, concordando que os indígenas são considerados segurados especiais do Regime Geral de Previdência Social, desde que não incorporados ao cotidiano urbano de vida e trabalho. Todavia, tendo em vista a proibição constitucional de trabalho por menor 16 anos, somente pode ser considerado segurado especial o participante do grupo familiar maior de 16 anos. Aduziu que "conferir a qualidade de segurado especial à pessoa menor de 16 anos, independente de ser índio ou não, corresponderia a atuar o magistrado como legislador positivo, criando regra contrária àquela definida pelo Poder Legislativo, constitucionalmente competente para tanto". Sustentou que considerar segurada a indígena menor de 16 anos, ao argumento de que o trabalho em tal idade é inerente à cultura indígena, viola o direito indisponível de cada brasileiro de não trabalhar até os 16 anos, salvo na condição de menor aprendiz. Referiu que, ainda que o princípio da isonomia permita tratamento diverso para situações diversas, não há lei que estabeleça o tratamento diferenciado, o qual, ainda, não se mostra razoável. Alegou que conceder benefício previdenciário em casos tais tenderá a perpetuar costume que deve ser repudiado e que leva à gravidez precoce das indígenas, invocando o art. 217 do Código Penal (estupro de vulnerável). Apontou risco de dano à saúde pública, com a possibilidade de gravidez na adolescência.

Apresentadas as contrarrazões, os autos foram remetidos a este Tribunal e vieram conclusos para julgamento.

Nesta instância, o Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso e da remessa oficial.

É o relatório.
VOTO
Do novo CPC (Lei 13.105/2015)
Consoante a norma inserta no art. 14 do atual CPC, Lei 13.105, de 16/03/2015, "a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada". Portanto, apesar da nova normatização processual ter aplicação imediata aos processos em curso, os atos processuais já praticados, perfeitos e acabados não podem mais ser atingidos pela mudança ocorrida a posteriori.
Nesse sentido, serão examinados segundo as normas do CPC de 2015 tão somente os recursos e remessas em face de sentenças/acórdãos publicado(a)s a contar do dia 18/03/2016.

Da ordem cronológica dos processos
Dispõe o art. 12 do atual CPC (Lei nº 13.105/2015, com redação da Lei nº 13.256/2016) que "os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão", estando, contudo, excluídos da regra do caput, entre outros, "as preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça" (§2º, inciso VII), bem como "a causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada" (§2º, inciso IX).
Dessa forma, deverão ter preferência de julgamento em relação àqueles processos que estão conclusos há mais tempo, aqueles feitos em que esteja litigando pessoa com mais de sessenta anos (idoso, Lei n. 10.741/2013), pessoas portadoras de doenças indicadas no art. 6º, inciso XIV, da Lei n. 7.713/88, as demandas de interesse de criança ou adolescente (Lei n. 8.069/90) ou os processos inseridos como prioritários nas metas impostas pelo CNJ.
Observado que o caso presente se enquadra em uma das hipóteses referidas (demanda de interesse de criança e adolescente indígena), justifica-se seja proferido julgamento fora da ordem cronológica de conclusão.

Da remessa oficial

O Colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ), seguindo a sistemática dos recursos repetitivos, regulada pelo art. 543-C, do CPC, decidiu que é obrigatório o reexame de sentença ilíquida proferida contra a União, Estados, Distrito Federal e Municípios e as respectivas autarquias e fundações de direito público. (REsp 1101727/PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/11/2009, DJe 03/12/2009).

Assim, o reexame necessário, previsto no art. 475 do CPC, é regra, admitindo-se o seu afastamento somente nos casos em que o valor da condenação seja certo e não exceda a sessenta salários mínimos.

Como o caso dos autos não se insere nas causas de dispensa do reexame, dou por interposta a remessa oficial.

Legitimidade ativa do Ministério Público Federal e cabimento da Ação Civil Pública

O Ministério Público Federal possui legitimidade para defender, por meio de ação civil pública, interesses individuais homogêneos, acaso evidenciado interesse social relevante. Nesse sentido:

AGRAVO. CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MPF. LEGITIMIDADE ATIVA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS E ASSISTENCIAIS DE VALOR MÍNIMO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. REQUISITOS. 1. O Ministério Público Federal tem legitimidade para ajuizar ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos, desde que evidenciado interesse social relevante, como no caso dos autos. Precedentes do STF e desta Corte. 2. Estando-se diante de situação que afeta interesses sociais e individuais indisponíveis, a ação civil pública revela-se via processual adequada. (...) (TRF4, AG 5012046-30.2013.404.0000, Sexta Turma, Relator p/ Acórdão Celso Kipper, juntado aos autos em 06/09/2013)

PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA. INTERESSE DE AGIR. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. AUSÊNCIA DE PERDA SUPERVENIENTE DO OBJETO. DESCUMPRIMENTO DE NORMAS DE CUNHO CONSTITUCIONAL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, LEGALIDADE E EFICIÊNCIA. MANUTENÇÃO DE PERITOS MÉDICOS DO INSS EM NÚMERO SUFICIENTE. PRAZO DE 45 (QUARENTA E CINCO) DIAS PARA REALIZAÇÃO DAS PERÍCIAS. VIABILIDADE. 1. Consoante iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao Ministério Público é dado promover, via ação coletiva, a defesa de direitos individuais homogêneos, porque tidos como espécie dos direitos coletivos, desde que o seu objeto se revista da necessária relevância social. 2. Deve ser afastada a carência de ação por falta de interesse de agir, visto que há resistência na pretensão deduzida em juízo pelo Ministério Público Federal, com o intuito de zelar pela eficiência da prestação do serviço público, de forma efetiva, conferindo adequada aplicabilidade ao art. 37 da Constituição Federal. 3. Inconsistente a alegação de impossibilidade jurídica do pedido, haja vista a possibilidade de controle da Administração e de suas políticas pela via judicial, quando necessário à tutela de direitos fundamentais. 4. Evidenciada grave situação, consolidada pela falta do mínimo existencial em relação aos serviços públicos prestados pela Autarquia Federal, haja vista a carência de profissionais no quadro de peritos do INSS, inviabilizando o exercício de direitos constitucionalmente assegurados a pessoas que se encontram impossibilitadas de trabalhar por motivo de enfermidade, impõe-se a correção da situação. 5. Hipótese em que caracterizado descumprimento de normas de cunho constitucional, como os princípios da legalidade e da eficiência, o que clama a intervenção do Poder Judiciário, a fim de equilibrar a situação, garantindo a dignidade da pessoa humana. 6. Deve o INSS manter, de forma permanente e em número suficiente, profissionais habilitados para a realização de perícias médicas indispensáveis à análise dos pedidos de benefícios previdenciários, no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, contados da data do agendamento inicial, sob pena de implantação automática. (TRF4, APELREEX 5004831-56.2012.404.7010, Quinta Turma, Relator p/ Acórdão Ricardo Teixeira do Valle Pereira, juntado aos autos em 16/07/2014)

Esta Turma já teve a oportunidade de assentar a legitimidade ativa do parquet inclusive em caso muito semelhante ao que ora se analisa. Refiro-me à Apelação Cível n.º 5010723-55.2012.404.7200/SC, julgada em 13/08/2013, de que foi relator para acórdão o Des. Federal ROGERIO FAVRETO, cuja ementa a seguir transcrevo:

PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA. SALÁRIO MATERNIDADE. TRABALHADORES INDÍGENAS. REQUISITO ETÁRIO. RESTRIÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO AGRAVADA AOS LIMITES DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL DO ÓRGÃO PROLATOR.
1. Este Tribunal vem reconhecendo a legitimidade ativa do Ministério Público Federal para propor ação civil pública na defesa dos direitos individuais homogêneos em matéria previdenciária, à luz do entendimento atualizado do Supremo Tribunal Federal. Hipótese, ademais, em que se discute sobre direito de indígenas de idade inferior a 16 anos, de modo que a legitimidade do Ministério Público Federal decorre do que expressamente dispõem os artigos 129 da CF, e 5º e 6º da LC 75/93.
(...) - grifei

De fato, tratando-se da tutela de interesses indígenas, a legitimidade ativa do MPF decorre diretamente do art. 129 da Constituição, verbis:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
(...)
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

Assenta-se, pois, a legitimidade ativa e o cabimento da ação proposta, destinada a garantir o acesso a benefício previdenciário de salário-maternidade a índias gestantes menores de dezesseis anos.

Limitação geográfica dos efeitos da sentença

Como a petição inicial restringiu o pedido à Subseção Judiciária de Palmeira das Missões/RS, não há controvérsia quanto ao relevante tópico.

Mérito

Sobre a matéria, já tive oportunidade de relatar feito idêntico (APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 5004029-67.2012.404.7104/RS), julgado, à unanimidade, por esta Turma em 11/11/2014. Para evitar tautologia, reproduzo integralmente as razões daquele feito, que se aplicam perfeitamente ao caso dos autos, mutatis mutandis:

"1. Proteção social constitucional e direitos indígenas. Proibição de discriminação por etnia, sexo e idade e proteção previdenciária à mulher indígena

Discute-se o direito à proteção previdenciária em favor de mulheres mães indígenas, ainda que com idade inferior a 14 anos de idade.

As razões recursais argumentam, em síntese, que (1) o enquadramento como segurado especial pressupõe o atendimento do requisito etário mínimo de dezesseis anos, nos termos do art. 11, VII, "c", da Lei n.º 8.213/1991; (2) que a regra em questão se ampara na previsão do art. 7º, XXXIII, da Constituição, que veda o trabalho a menores de dezesseis anos; (3) que a pretensão da ação possui índole assistencialista; (4) que, ao admitir a pretensão, o Judiciário está atuando como legislador positivo, pois o regime previdenciário, extensível aos indígenas em virtude do artigo 55 do Estatuto do Índio, estabelece como marco etário mínimo os 16 anos, o que atentaria até mesmo, analogicamente, ao entendimento consolidado na Súmula 339 do STF; (5) que o acolhimento da pretensão contraria a proibição constitucional do trabalho ao menor, cujo teor está em harmonia com a Convenção 182 da OIT, e a respectiva Recomendação 190, que protegem a saúde, a segurança e a moral das crianças que tenham recebido instruções ou formação profissional; (6) o acolhimento do pedido traz prejuízo ao grupo que se objetiva defender, por perpetuar o trabalho das menores indígenas na agricultura e consequencias nefastas da gravidez precoce; (7) que a decisão estaria estimulando a gravidez na adolescência, ocorrência prejudicial à saúde de adolescentes; neste sentido, invocou inclusive a capitulação penal, como estupro presumido, a relação sexual mantida com menores de 14 anos.

Por fim, em memoriais, o INSS salientou que (8) não há prova de que sejam ínsitos à cultura Kaingang o trabalho e a contribuição previdenciária entre os 14 e 16 anos e que, ainda que se saiba que muitas delas se casem ao redor dos 15 anos, não há previsão do salário maternidade para menores que meramente participem dos cuidados da casa. Avançando em seu argumento, os memoriais aduzem que, (9) mesmo em relação aos adultos, o trabalho não passa de 3 horas diárias, sendo sociedades que, sem gerar excedente, não geram poupança e sem nada que se assemelhe à ideia de previdência. Conclui que não haveria prova nem do trabalho, nem da contribuição sobre a produção, muito menos do costume de trabalhar.

a) Direitos culturais e inaplicabilidade do artigo 11, VII, c, da Lei n. 8.213/91 ao caso: condição de segurada como cônjuge, não como filha

O quadro normativo envolvido na solução deste litígio parte do artigo 231 da Constituição da República, cujos termos reconhecem "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam".

A seguir, são particularmente importantes as disposições do art. 55 da Lei n.º 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e o art. 11, VII, "c", da Lei n. 8.213/1991. Enquanto aquele prevê que "o regime geral da previdência social será extensivo aos índios, atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas", este estipula a idade de 16 anos, para o filho ou quem for a este equiparado, como segurado obrigatório da Previdência Social.

A interpretação constitucionalmente adequada das questões postas sob julgamento parte do dado normativo de que a Constituição de 1988 foi atenta às diferenças culturais presentes na sociedade brasileira, em especial, quanto às culturas indígenas. Toda a legislação infraconstitucional deve ser interpretada, portanto, conforme o comando do artigo 231, que prevê verdadeiro direito ao reconhecimento, como dado normativo, da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.

Nesta linha, a Convenção n. 169, da OIT, cujos termos ordenam que

Os governos terão a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática para proteger seus direitos e garantir respeito à sua integridade (art. 2, 1) e que a aplicacao dos direitos sociais, economicos e culturais deve respeitar sua identidade social e cultural, seus costumes e tradições e suas instituições (art. 2, 2, b).

Adotada esta perspectiva, a primeira questão que vem à tona é a invocação da limitação temporal de 16 anos, constante na legislação previdenciária, para a hipótese em discussão.

Com efeito, a norma previdenciária fala em "filho maior de 16 anos de idade ou a este equiparado". Todavia, aqui não se trata de condição de segurada decorrente da qualidade de filha, mas sim de cônjuge ou companheira de segurado especial, uma vez que a mulher indígena em questão estabelece relação conjugal com seu marido.

Registre-se que, mesmo no paradigma do Código Civil, direito legislativo próprio da cultura não-indígena, permite-se o casamento aquém dos 16 anos de idade, em caso de gravidez (CC, art. 1520). Se assim é em norma jurídica cuja aplicação divorciada da cultura indígena seria inadequada - e que poderia levar à condição de segurada, como cônjuge, abaixo dos 16 anos -, com muito mais razão diante do mandamento constitucional de respeito às diferenças culturais.

No plano dos fatos, a literatura especializada não deixa dúvida quanto à idade de casamento na cultura kaingang ser não só inferior aos 16 anos, como serem consideradas adultas e, portanto, aptas para casarem desde a menarca (que ocorre entre os 9 e 15 anos, acontecendo em média aos 12 anos; dentre os Kaingang, há registro científico de 13 anos como idade média, ver SILVA, Edimara Patrícia da et al . Exploração de fatores de risco para câncer de mama em mulheres de etnia Kaingáng, Terra Indígena Faxinal, Paraná, Brasil, 2008. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 25, n. 7, July 2009 . Available from . access on 10 Nov. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009000700007; Rosana de Oliveira Nunes Neto e Gizelda Monteiro da Silva, SAÚDE E QUALIDADE DE VIDA DA MULHER INDÍGENA: descrição de trabalhos realizados entre 2009 e 2013. http://unifia.edu.br/revista_eletronica/revistas/saude_foco/artigos/ano2014/saude_indigena.pdf).

b) Cultura indígena, trabalho e infância

Esta realidade cultural, que, como parte do suporte fático da norma jurídica constitucional que ordena o respeito à diversidade étnica, também reclama que se perceba a inadequação da compreensão defendida no recurso quanto ao que sejam "trabalho" e infância.

Com efeito, na cultura indígena em questão, como em geral nas culturas indígenas espalhadas pelo Brasil, por volta dos 12 anos surgem não somente a menarca, como também a vida adulta (Rosângela Faustino, APRENDIZAGEM ESCOLAR ENTRE INDÍGENAS KAINGANG NO PARANÁ: questões sobre língua, alfabetização e letramento, Práxis Educativa, Ponta Grossa, v.5, n.2, p. 213-219, jul.-dez. 2010.). Junto com a vida adulta, não há como não reconhecer, igualmente, a participação ativa e relevante destas indígenas nas atividades vitais para o desenvolvimento de sua comunidade, expressão que utilizo objetivando aproximar-me da categoria "trabalho", como entendida desde a modernidade.

Historicamente, tanto o trabalho feminino, quanto as atividades objetivando a vida social e coletiva empreendidas por indígenas foram objeto de exploração e desvalor.

O preconceito com o trabalho feminino e sua exploração (desvalorizado como "mera participação nos cuidados da casa" - e, anote-se, âmbito restrito a que não se restringe as atividades por indivíduos além da vida adulta como concebida na cultura indígena) foi destacado tanto por feministas como por Hannah Arendt, ao elaborar a célebre distinção entre "labor" e "trabalho", à qual correspondem às ideias de "trabalho produtivo" e "trabalho improdutivo" (onde se inseriria o doméstico). A valoração das atividades humanas, em dada sociedade, como trabalho, com tal ou qual valor ou desvalor, , só tem sentido historica e culturalmente situado, como demonstra Henrique C. Nardi (Ética, Trabalho e Subjetividade, Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006, p. 26 e seguintes).

Transcrevo oportuna e precisa síntese (Maria Ignez Paulilo, 'Trabalho doméstico: reflexões a partir de Polanyi e Arendt', disponível em http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c-v8n1_ignez.htm):

"Hannah Arendt (1981:137), ao discutir as esferas pública e privada, retoma a distinção entre "labor" e "trabalho", dizendo que "a revolução industrial substituiu todo artesanato pelo labor. O resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do labor, cujo destino natural é serem consumidos, ao invés de produtos de trabalho, que se destinam a ser usados, ao mesmo tempo em que demonstra o quanto o "labor" foi desprezado antes da era moderna. Para ela, "a súbita e espetacular promoção do labor, da mais humilde e desprezível posição à mais alta categoria, como a mais estimada das atividades humanas", começou com Locke, prosseguiu com Adam Smith e atingiu seu clímax com Marx.
Em seu emprego antigo, o termo "labor" designava as atividades ligadas à luta do homem contra as necessidades, luta cotidiana e repetitiva, travada no interior das famílias, que não produzia qualquer resultado duradouro. Entre os gregos, nenhuma atividade cujo fim era garantir o sustento do indivíduo era digna de pertencer à nobre esfera da política. Na privacidade da família, o homem não existia como um "ser verdadeiramente humano", mas como pertencente à "espécie animal humana" (Id.Ibid.: 55). Nada surpreende então que este tipo de atividade fosse desempenhada pelo escravo, pelo animal laborans e não pelo homo faber.
Para Arendt, a distinção entre "labor" e "trabalho" era ignorada na antiguidade clássica. Só começa a aparecer quando a produtividade do labor ultrapassa o doméstico e consegue produzir algo mais duradouro que a manutenção física. A era moderna, porém, não produziu uma teoria que distinguisse com clareza estas duas noções. O que houve foram tentativas de distinção, sendo a mais importante delas a que separa "trabalho produtivo" de "trabalho improdutivo". É curioso que, segundo a autora,

(...) a era moderna (...) tendo glorificado o trabalho (labor) como fonte de todos os valores (...) não tenha produzido uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber (...). Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo; um pouco mais tarde, a diferenciação entre trabalho qualificado e não-qualificado; e, finalmente, sobrepondo-se a ambas (...), a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. Das três, porém, somente a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo vai ao fundo da questão; e não foi por acaso que os dois teoristas do assunto, Adam Smith e Karl Marx, basearam nela toda a estrutura do seu argumento. (...) estavam de acordo com a moderna opinião pública quando menosprezavam o trabalho improdutivo, que para eles era parasítico, uma espécie de perversão do trabalho, como se fosse indigno deste nome toda a atividade que não enriquecesse o mundo. (...) a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo contém, embora eivada de preconceito, a distinção mais fundamental entre trabalho e labor" (Arendt, 1981: 96/8).

É desta tradição que surge a noção do trabalho doméstico como "improdutivo" , hierarquicamente inferior ao "produtivo", e é desta hierarquia que deriva a visão do trabalho da mulher rural apenas como "ajuda" ao do marido, quase como um não-trabalho. A idéia de que só as atividades que podem ser vendidas são trabalho, faz com que mesmo quando a lógica não é a do esforço individualmente remunerado, caso da agricultura familiar, tenham maior importância as atividades daqueles que seriam mais valorizados no mercado de trabalho, ou seja, os homens. Jerzy Tepicht (1976) analisa a importância do que ele chama de "forças marginais" (mulheres, crianças e idosos) na persistência e competitividade da agricultura camponesa. Em uma cadeia de preconceitos entrelaçados sobre o pano de fundo da posição subordinada da mulher na sociedade, a herança, o casamento e o acesso da mulher à terra acrescentam mais elos à corrente já pesada de discriminações que são seu próprio cerne. "

Não bastasse a proibição constitucional de discriminação sexista quanto à compreensão do que seja trabalho, a proibição de discriminação étnica também incide no caso, fazendo ver que as atividades desempenhadas por mulheres indígenas casadas e mães, independentemente de idade, são culturalmente relevantes e valorizadas na cultura kaingang.

Tanto por narrativas de protagonismo político feminino kaingang (Cinthia Creatini da Rocha, O PAPEL POLÍTICO FEMININO NA ORGANIZAÇÃO SOCIAL KAINGANG, http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277601188_ARQUIVO_ApresentacaoFinal_formatada30junho.pdf), quanto pelas atividades desempenhadas antes mesmo do casamento e da maternidade.

Com efeito, assim como se exige atenção ao concretizar a categoria trabalho para fins de proteção social, a própria compreensão das fases da vida, sua divisão, início e fim, requer que a infância e a adultez sejam vistas sem olhos colonialistas. Tanto que não somente a Convenção 169, da OIT, prevê o rechaço de políticas assimilacionistas, como também o artigo 231 da CF/88, o Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 28, p. 6 e 161, p. 2) e a Resolução no 91, de 23 de junho de 2003, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) que firmou entendimento segundo o qual a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente deve observar as peculiaridades socioculturais das comunidades indígenas.

De fato, as indígenas não são somente consideradas adultas desde os 14 anos (BECKER, Í. I. B. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1995), como também antes disso já fazem parte da organização social produtiva de suas comunidades (LAROQUE, Luís Fernando da Silva; SILVA, Juciane Beatriz Sehn da. Ambiente e cultura Kaingang: saúde e educação na pauta das lutas e conquistas dos Kaingang de uma terra indígena. Educ. rev., Belo Horizonte , v. 29, n. 2, June 2013 . Available from . access on 10 Nov. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982013000200011). Conforme antes demonstrado, desde os 13 anos, em geral, são consideradas adultas, como estão frequentemente casadas aos 15 anos (Ledson Kurtz de Almeida, ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DAS IGREJAS CRISTÃS ENTRE OS KAINGANG BASEADA NA ETNOGRAFIA, NA COSMOLOGIA E DUALISMO, UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL, 2004, tese de doutorado), dado que desde a menarca apresentam-se à vida conjugal (Juracilga Veiga, "Organização Social e cosmovisão Kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê Meridional", Dissertação de Mestrado, Departamento de Antropologia Social, Unicamp, 1994).

É preciso, portanto, evitar qualquer tentação colonialista de desprezar o trabalho indígena, sob pena de violação da proibição de discriminação por motivo étnico, bem como em face do artigo 231 da CF/88.

O indígena, aliás, é vítima de preconceito histórico na colonização portuguesa, no Brasil e fora dele (nesse sentido, THOMAZ, Fernanda Nascimento. Disciplinar o "indígena" com pena de trabalho: políticas coloniais portuguesas em Moçambique. Estud. hist. (Rio J.), Rio de Janeiro , v. 25, n. 50, Dec. 2012 . Available from . access on 10 Nov. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-21862012000200003):

O discurso civilizatório manteve-se, ao longo dessas décadas, vinculado à imposição de uma forma de relação de trabalho aos "indígenas". As bases da estrutura administrativa do colonialismo português em Moçambique pautaram-se no princípio da identificação do "indígena", com o intuito de impor leis para explorar sua força de trabalho. No campo administrativo e jurídico, aos delitos e infrações cometidas pelos "indígenas" atribuíam-se, geralmente, penas de trabalho. A obrigatoriedade do trabalho, o imposto da palhota, as penalidades ligadas aos trabalhos públicos e correcionais passavam a ser justificáveis quando eram impostos a indivíduos considerados "inferiores", enquanto a "civilização" isentava os demais. Por isso, buscou-se criar um "outro" que fosse legalmente considerado diferente dos colonizadores. A identificação de um indivíduo com suas características inferiorizadas pelo poder colonial admitia a criação de certos mecanismos de controle impostos somente ao colonizado. A alternativa foi utilizar um discurso que não contrariasse totalmente as defesas da liberdade e da igualdade em Portugal. Ao longo desse domínio em Moçambique, imperou uma concepção bastante defendida por António Enes, que era a necessidade de primeiro igualar as pessoas para depois igualar as leis. Pessoas com hábitos e costumes diferentes deveriam estar sob leis diferentes. Assim, justificou-se o uso de penalidades que há tempos eram rejeitadas em Portugal.

No Brasil colonizado, são abundantes as narrativas preconceituosas quanto ao trabalho por indígenas, impondo não somente uma visão de um "outro" colonizado a ser submetido (melhor dizendo, escravizado) às atividades de interesse da colonização exploratória (Raimundo Nonato de Castro, AS REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS NO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DO BRASIL http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/viewFile/1875/1043I), como também a ideia de que o indígena não seria apreciável para o progresso econômico na economia escravocrata (como relata Caio Prado Júnior, no clássimo "Formação Econômica do Brasil"). Ainda assim, esse viés não evitou o reconhecimento histórico do aprendizado para o desempenho de atividades produtivas e técnicas indígenas em favor de colonizadores (Fernando Torres Londano, "Trabalho indigena na dinamica do controle das reducoes de Maynas no Maranon do Sec. XVII", Revista Historia Sao Paulo, vol. 25, a. 1, p. 15, 2006).

c) Diversidade cultural, discriminação indireta e comprovação fática

Isso colocado, fica superada a alegação, trazida nos memoriais, quanto à falta de comprovação de trabalho ou, do "costume de trabalhar" (sic).

Com a devida vênia, tal argumentação parece padecer, ainda que involuntariamente, das representações preconceituosas, decorrentes do etnocentrismo, em particular, quanto às atividades produtivas na cultura indígena, e, mais ainda, quando se entrecruzam etnia, sexo e idade.

Diante de fatos históricos, passados e presentes, bem como da conhecida organização social da cultura indígena, estamos diante do fato púbico e notório, que não pode se confundir somente com aquilo que é disseminado no senso comum e, mais grave ainda, no senso comum da cultura branca ocidental.

A dificuldade probatória alegada, salvo melhor juízo, decorre da chamada discriminação institucional indireta, vale dizer, de efeitos discriminatórios involuntários originados da dificuldade que a cultura dominante e os grupos privilegiados tem para perceber a sua posição de vantagem e a naturalização, como se neutra fosse, sua visão de mundo (nesse sentido, meu Direito da Antidiscriminação, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, capítulo 3).

Esse desafio é particularmente desafiador quando interseccionam diversos fatores de discriminação, fenômeno capturado no conceito jurídico de discriminação múltipla ou interseccional, previsto na Convenção Interamericana contra Todas as Formas de Discriminação e Intolerância, de 2013, já ratificada pelo Brasil, como também presente no direito infraconstitucional brasileiro, na Lei n. 12.288/2010, o chamado Estatuto da Igualdade Racial, que também abarca outras formas de intolerância étnica (art. 1, abrangendo a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos).

De fato, a percepção da discriminação exige atenção às representações sociais associadas à pessoa envolvida na situação em que experimentado tratamento indevido. Em nossa sociedade, como de resto em todo mundo ocidental (para nos limitarmos a esse gomo do globo terrestre), a história de nossos povos demonstra que as atitudes, juízos, procedimentos, idéias e representações variam significativamente conforme vários critérios, dentre os quais cor, etnia e condição social (para não elencarmos mais hipóteses, como sexo, idade, orientação sexual, religião ou grau de escolaridade).

Esse conjunto de crenças, essa visão de mundo, informados por tais elementos, acabam por, efetivamente, constituir a própria realidade, a partir da influência decisiva dessas representações nos procedimentos, práticas, idéias e juízos cotidianos e corriqueiros. Como demonstrou Pierre Bordieu ao analisar a questão regionalista (cujos termos, advertiu, são eufemismos eruditos para substituir a sempre presente noção de raça - A identidade e a representação - Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região, in O Poder Simbólico, Lisboa, Difusão Editorial Ltda, 1989), a mudança das representações coletivas conduz a transformações da própria realidade social, precisamente porque a realidade se constrói a partir dessas percepções, dessas representações.

O direito processual vigente, ao cuidar da produção probatória, prevê que "em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial." (CPC, art. 335).

Esta regra jurídica diz respeito, primeiramente, às chamadas máximas de experiência e à prova prima facie. Em precisa lição, comentou João Carlos Pestana de Aguiar (Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., São Paulo: RT, 1977): "Estudando as máximas de experiência, não podemos deixar de fazer alusão à prova prima facie, da qual aquelas são a fonte. Surgida na Alemanha ao limiar deste século e, segundo autores, por obra de Rumelin, o qual chegou a ser confundido com o precursor também das máximas de experiência, recebeu a prova prima facie a denominação de "prova de primeira aparência". Consiste na formação do convencimento do juiz através de princípios práticos da vida e da experiência daquilo que geralmente acontece (id quod plerumque accidit). Embora seja um juízo de raciocino lógico formado fora dos elementos de prova constantes dos autos, não se pode afirmar que se trata de um juízo baseado na ciência privada. É, sob certo ângulo de visão, uma exceção à regra quod non est in actis non est in mundo, mas que se forma por meio de noções pertencentes ao patrimônio cultural comum, eis que se sustém naquilo que de ordinário acontece. Logo, são noções ao alcance de grande número de pessoas e até mesmo do conhecimento obrigatório de uma camada social, pelo que não se pode concluir como noções limitadas à ciência privada do juiz." (p. 106-107).

No caso dos autos, não se pode esquecer a história e a realidade da diversidade étnica ao interpretar o conjunto probatório. O juiz não pode ser indiferente à realidade, sob pena inclusive de ofender a norma constitucional que manda que todos os Poderes Públicos, inclusive o Judiciário, pratiquem o direito conforme os objetivos fundamentais da República (Constituição da República de 1988, art. 3°), dentre os quais se inclui construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), erradicar a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (inciso III) e promover o bem de todos, sem preconceitos de raça e cor (inciso IV).

As máximas de experiência conduzem, ademais, como salientado pelo processualista citado, às provas prima facie ou "provas de primeira aparência". Elas chamam a atenção do óbvio: numa realidade discriminatória, a formação do convencimento não pode ser alheia à experiência daquilo que geralmente acontece. Infelizmente, o que geralmente acontece em nossa realidade é a diferenciação étnica, mesmo que velada por meio de ideologias já retratadas e refutadas. Dados e interpretações da realidade nacional tão fundamentais e decisivos, não podem ser ignorados pelo Poder Judiciário.

Como disse Moacir Amaral dos Santos, estes conhecimentos "...integram o patrimônio de noções pacificamente armazenadas por uma determinada esfera social, e assim a do juiz, a que se pode genericamente denominar cultura, se utiliza o juiz como normas destinadas a servir como premissa maior dos silogismos que forma no seu trabalho de fixação, interpretação e avaliação das provas." (Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. IV, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 51).

Disse o mesmo jurista, em outra passagem: "O juiz, como homem culto e vivendo em sociedade, no encaminhar as provas, no avaliá-las, no interpretar e aplicar o direito, no decidir, enfim, necessariamente usa de uma porção de noções extrajudiciais, fruto de sua cultura, colhida de seus conhecimentos sociais, científicos, artísticos ou práticos, dos mais aperfeiçoados aos mais rudimentares. São as noções a que se costumou, por iniciativa do processualista STEIN, denominar máximas da experiência ou regras da experiência, isto é, juízos formados na observação do que comumente acontece e que, como tais, podem ser formados em abstrato por qualquer pessoa de cultura média." (Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 2° vol., 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1983, p. 339).

Postos todos esses fundamentos, que afirmam (1) o mandamento constitucional de respeito à diversidade étnica, cujo conteúdo determina a concretização, conforme a cultura respectiva, do que seja trabalho e da cronologia de fases de vida conforme faixas etárias; (2) a proibição de discriminação por motivo de sexo e de idade, (3) a impropriedade da desqualificação das atividades indígenas como algo fora do alcance da dignidade do trabalho, (4) a propriedade, portanto, da pretensão ao âmbito da previdência social, e não da assistência, conclui-se, desse modo, pela impropriedade dos argumentos recursais sobre a vedação de trabalho a menor de 16 anos, de que a presente ação tenha índole assistencialista, de contrariedade à Convenção 182 da OIT (e da respectiva recomendação 190). Também ficam rejeitados os argumentos quanto à perpetuação de trabalho de menores indígenas e de estímulo à gravidez precoce, pois totalmente fora do contexto étnico cultural. Registro, nessa esteira, o descabimento da invocação de estupro presumido, uma vez que, acaso aceito, configuraria desrespeito direto e concreto à cultura indígena.

d) Acolhimento da pretensão e atribuição constitucional do Poder Judiciário ("legislador negativo" e atuação concretizadora)

A jurisprudência (como demonstro no item 2, abaixo), inclusive aquela do Supremo Tribunal Federal, assentou que não podem ser prejudicados em seus direitos trabalhistas e previdenciários os menores de idade que exerçam efetivamente atividade laboral, ainda que contrariamente à Constituição e à lei, no tocante à idade mínima permitida para o referido trabalho. O limite mínimo de idade para que alguém possa trabalhar é garantia constitucional em prol do menor, vale dizer, norma protetiva do menor norteadora da legislação trabalhista e previdenciária. A mesma norma editada para proteger o menor não pode, no entanto, prejudicá-lo naqueles casos em que, não obstante a proibição constitucional, efetivamente trabalhou.

Percebe-se, deste modo, já ser tradicional o entendimento segundo o qual o beneficiário da norma protetiva que impede o trabalho a menores de dezesseis anos não pode ser prejudicado por esta mesma norma, sendo alijado da Previdência Social.

No caso ora em análise, a questão é ainda mais relevante. Isso porque se trata de analisar contexto de etnia indígena, sendo certo que a Constituição (art. 231) reconhece "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". No particular aspecto da Previdência Social, dispõe o art. 55 da Lei n.º 6.001/1973 (Estatuto do Índio) que "o regime geral da previdência social será extensivo aos índios, atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas".

Em tal contexto, como demonstrado, é bastante comum que meninas com menos de dezesseis anos de idade (por vezes, menos de quatorze anos), já trabalhem, casem e tenham filhos.

Com efeito, tenho que o pedido é integralmente procedente, devendo ser desprovido o apelo.

De fato, a idade mínima de trabalho estabelecida pelo art. 7º, XXXIII, da Constituição não configura óbice à percepção de benefício previdenciário por menores de dezesseis anos, já que a norma protetiva não pode ser aplicada em prejuízo daquele a quem ela pretende proteger. Se a jurisprudência majoritária já há muito flexibiliza tal limite para os segurados especiais do meio rural, com mais razão não pode servir de óbice à percepção de benefício pelas indígenas da etnia Kaingang.

A força normativa da Constituição (art. 231) impõe que se considere os costumes dos índios e, analisando-se tais costumes, percebe-se que as mulheres iniciam o trabalho muito cedo, casam e têm filhos. Como ressaltado acima, para elas não é cedo, já que a expectativa de vida dos membros da comunidade não é grande. É por isso que o art. 55 do Estatuto do Índio determina que "o regime geral da previdência social será extensivo aos índios, atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas".

O que se está aqui a fazer não é atuar o Judiciário como legislador positivo, ao contrário do que alega o apelo. Está-se, apenas, a aplicar o art. 55, estendendo aos índios a Previdência Social, atendendo às suas condições sociais, econômicas e culturais, em respeito ao art. 231 da Constituição.

O entendimento do INSS expresso no apelo, no sentido de que "a interpretação do art. 55 do Estatuto do Índio transcrito acima induz à conclusão inequívoca de que é o regime geral da previdência social em vigor que será extensivo aos índios, não autorizando a norma a que se passe por cima das disposições da lei previdenciária para outorgar uma proteção que ela própria não prevê", significa tornar letra morta o dispositivo em questão. Fosse correta a interpretação da autarquia, bastaria ao Estatuto do Índio dizer que a Previdência Social deve abranger os índios, sem necessidade de ressalva quanto a atender suas condições sociais, econômicas e culturais.

Este argumento não ultrapassa, a meu juízo, pelo menos, duas ordens de razões.

A primeira diz respeito mesmo à letra da lei, aplicada no contexto cultural em causa. A mulher indígena aqui não é filho nem menor a tanto equiparada. Ela é, no mínimo, cônjuge, quando não trabalhadora segurada especial.

A segunda, a partir e mesmo além da letra da lei, pelo chamado "espírito da lei", no caso, a sua finalidade protetiva.

De outro lado, não se está a aplicar tratamento diferenciado com base em critérios não razoáveis. Pelo contrário, o critério de diferenciação é perfeitamente razoável, tendo em vista as peculiaridades da cultura indígena já referidas, em especial da etnia Kaingang, e está expressamente previsto em Lei (Estatuto do Índio). Trata-se de normativa, a propósito, que deve ser vista como especial, prevalecendo diante das disposições da Lei n.º 8.213/1991, que ignoram os costumes das comunidades indígenas.

Reitero que é superável igualmente o argumento de que a permissão da concessão de benefício a menores de dezesseis anos equivale a política assistencialista, cuja atribuição é da FUNAI. Não se trata de política propriamente assistencialista, mas sim de conceder benefício previdenciário também a meninas menores de dezesseis anos, assim como já é concedido às maiores, desde que satisfeitos os demais requisitos.

Também reitero que não se sustenta o argumento de que a flexibilização do limite etário incentivará o trabalho infantil e a gravidez precoce. A um, porque tais elementos já ocorrem há muito tempo, fazendo parte da cultura dos índios, havendo ou não cobertura previdenciária; a dois, porque não se concebe a impossibilidade de se conceder qualquer benefício previdenciário ao argumento de que poderá abstratamente incentivar alguém a preferir a situação de risco coberta pela Previdência. Dito de outra forma: não se defende a impossibilidade de concessão de aposentadoria por invalidez ou pensão por morte pelo suspeito argumento de que alguém pode preferir a invalidez para o trabalho e o recebimento de aposentadoria ou mesmo a morte de um ente querido para o recebimento da pensão por morte. Quer dizer, a meu juízo, a possibilidade de recebimento de salário-maternidade de forma alguma incentivará a gravidez precoce e muito menos pode servir de argumento para flexibilizar o requisito etário.

e) Sobre o Judiciário como legislador negativo, direitos fundamentais auto-aplicáveis e direito derivado à prestações positivas

O que o Judiciário está a fazer, portanto, é aplicar sistematicamente a Constituição e estender como manda a lei, aos indígenas o regime previdenciário, observada sua cultura. Em vez disso, a defesa sustenta que estar-se-ia criando judicialmente novo regramento, afrontando o limite do "legislador negativo".

Duas razões constitucionalmente corretas afastam tal insurgência.

Primeiro, a eficácia direta e imediata do artigo 231 da CF/88, que é norma de direito fundamental, a proteger liberdade e igualdade fundamentais aos povos indígenas, bem como a reconhecer sua dignidade.

Assim, não há ausência de norma jurídica que suporte o direito vindicado. A norma donde exsurge o direito é o artigo 231 da CF/88, que prevê o direito à igualdade e tem aplicabilidade imediata, combinado com os artigos 55 do Estatuto do Índio e art. 8º da Lei 8213/91.

Ainda que não se empreste tal eficácia direta e aplicabilidade imediata do direito de igualdade, estamos diante de direito fundamental derivado a não-ser discriminado no sistema previdenciário. Ao passo que a postulação de um direito originário à igualdade requer o reconhecimento de efeitos diretos da norma de direito fundamental em face do caso concreto, imediatamente justiciáveis, independente da atividade legislativa e administrativa concretizadoras, direitos derivados são

"direitos dos cidadãos a uma participação igual nas prestações estaduais concretizadas por lei segundo a medida das capacidades existentes. Os direitos a prestações passam, naquilo em que constituem a densificação de direitos fundamentais, passam a desempenhar uma função de 'guarda de flanco' (J. P. Muller) desses direitos garantindo o grau de concretização já obtido." (Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 7ª ed., p. 479).

Nesta perspectiva, o direito pleiteado pode ser visto como forma a evitar uma discriminação violadora da igualdade na proteção social conferida pelo sistema normativo constitucional e infraconstitucional, o que ocorreria se o legislador previdenciário infraconstitucional excluísse certos segurados, sem fundamento racional e desprovido de lógica, de determinada proteção social, violando a proibição de discriminação por motivo étnico.

No caso concreto, o acesso à prestação previdencária requerida, entendido como direito derivado, é obtido judicialmente em virtude da proteção jurídica-fundamental típica dos direitos clássicos de igualdade e de não-discriminação (ditos direitos negativos), pois, como decidiu o Tribunal Constitucional português, "a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passam também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social."

Deste modo, o tribunal está agindo não como legislador positivo, não está inovando. Ele está aplicando a clássica proteção antidiscriminatória, de natureza negativa, ao dizer o que o legislador, no sistema que ele mesmo erigiu, não pode fazer: ele não pode excluir direito derivado à proteção social para uns e favorecer outros. Dito de outro modo: não há espaço para opção legislativa que viole o dever de observância à igualdade, seja diretamente, seja, como no caso, de direito derivado a prestação social.

Por fim, a teoria do legislador negativo, neste contexto, ganha adequada compreensão. Dela não se extrai proibição à atuação judicial concretizadora da norma constitucional diretamente aplicável, muito menos vedação à reprovação judicial do ato legislativo que, ao regular de forma sistemática e abrangente o sistema previdenciário, macule o direito derivado à determinada prestação social por concedê-lo de modo discriminatório.

Esta teoria foi formulada por Hans Kelsen diante da crítica de Carl Schmitt quanto ao perigo de politização indevida, por parte do tribunal constitucional, na clássica contenda sobre quem deveria ser o guardião da Constituição. Ela diz respeito a um momento histórico e a um estágio da teoria da Constituição há muito superados. Tanto que sua aplicação no STF tem sido feita de modo contextualizado, em nenhum momento restringindo a atuação do tribunal, no ofício interpretativo, como concretizador da Constituição, ainda mais diante de mandamento constitucional expresso de respeito às diferenças étnicas.

2. A proteção previdenciária e a construção jurisprudencial neste Tribunal

A questão é relevante e já foi julgada pela Terceira Seção desta Corte, em 08/05/2014, nos Embargos Infringentes n.º 5010723-55.2012.404.7200/SC, relator o Des. Federal CELSO KIPPER. Reconheceu-se, à unanimidade, que não deve haver o limite etário de dezesseis anos considerado pelo INSS. O Des. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira restou vencido nos embargos infringentes porque considerou, tal como já votara na Turma, necessário o estabelecimento do limite de quatorze anos, ou seja, também via razão na impossibilidade de se deferir o benefício apenas às gestantes maiores de dezesseis anos.

Trago à colação o voto do Des. Celso Kipper, que possui o seguinte teor, verbis:

"b) DA OBRIGATORIEDADE DE O INSS ANALISAR PEDIDOS DE BENEFÍCIO DE SALÁRIO-MATERNIDADE FORMULADOS POR MÃES INDÍGENAS COM MENOS DE 12 ANOS DE IDADE, SEM OPOR-LHES TAL CIRCUNSTÂNCIA COMO FUNDAMENTO DO INDEFERIMENTO.

Nesse ponto, cumpre salientar que o art. 11, inciso VII, § 6.º, da Lei 8.213/91, acima transcrito, estabelece a idade mínima de 16 anos para que o trabalhador rural em regime de economia familiar possa ser considerado segurado especial da Previdência Social. A idade de 16 anos não é aleatória. À toda evidência, o legislador procurou coerência com a idade mínima permitida para o exercício de atividade laboral segundo a norma constitucional, alterada pela EC n. 20/98. A lógica foi a seguinte: se o art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal de 1988, a partir da EC n. 20/98, proíbe qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, deve esta idade ser considerada limite mínimo para a obtenção da condição de segurado especial.

Todavia, o fato de os filhos das autoras representadas, no caso concreto, terem nascido quanto estas ainda contavam com idade inferior à recém mencionada não constitui óbice para o reconhecimento de sua qualidade de seguradas.

Ocorre que, desde há muito tempo, tem sido considerado pelos tribunais pátrios, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, que não podem ser prejudicados em seus direitos trabalhistas e previdenciários os menores de idade que exerçam efetivamente atividade laboral, ainda que contrariamente à Constituição e à lei, no tocante à idade mínima permitida para o referido trabalho. O limite mínimo de idade para que alguém possa trabalhar é garantia constitucional em prol do menor, vale dizer, norma protetiva do menor norteadora da legislação trabalhista e previdenciária. A mesma norma editada para proteger o menor não pode, no entanto, prejudicá-lo naqueles casos em que, não obstante a proibição constitucional, efetivamente trabalhou.

Nesse sentido, em matéria previdenciária, precedente do Supremo Tribunal Federal, sob o regime constitucional anterior:

ACIDENTE DO TRABALHO. SEGURO OBRIGATÓRIO ESTABELECIDO NO ART. 165- XVI DA CONSTITUIÇÃO: ALCANCE. CONTRATO LABORAL COM AFRONTA A PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO DO MENOR DE DOZE ANOS.
Menor de doze anos que prestava serviços a um empregador, sob a dependência deste, e mediante salário. Tendo sofrido o acidente de trabalho faz jus ao seguro próprio. Não obsta ao beneficio a regra do art. 165-X da Carta da Republica, que foi inscrita na lista das garantias dos trabalhadores em proveito destes, não em seu detrimento.
Recursos extraordinários conhecidos e providos.
(STF, RE 104.654-6/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Francisco Rezek, julgado unânime em 11.03.86, DJ 25.04.86, p. 6.514)

Do voto do ilustre Ministro Relator, extraio um parágrafo que resume o fundamento daquela decisão:

Está claro, ainda, que a regra do inciso X do mesmo dispositivo constitucional - proibindo qualquer trabalho ao menor de doze anos - foi inscrita na lista das garantias dos trabalhadores em proveito destes, e não em seu detrimento. Não me parece, assim, razoável o entendimento da origem, que invoca justamente uma norma voltada para a melhoria da condição social do trabalhador, e faz dela a premissa de uma conclusão que contraria o interesse de seu beneficiário, como que a prover nova espécie de ilustração para a secular ironia 'summum jus, summa injuria'.

Vê-se, pois, que o STF alarga ainda mais a interpretação acima deduzida. Já não se trata de limitar os efeitos de natureza previdenciária àquelas atividades desempenhadas segundo a idade constitucionalmente permitida, considerando-se a Constituição vigente à época do efetivo exercício laboral, mas de estender aqueles efeitos mesmo se o exercício do trabalho tenha se dado contra expressa proibição constitucional, relativa à idade mínima para tal.

Tal entendimento vem também evidenciado no seguinte precedente em matéria similar, de que colho a ementa a seguir:

Agravo de instrumento. 2. Trabalhador rural ou rurícola menor de quatorze anos. Contagem de tempo de serviço. Art. 11, VII, da Lei nº 8213. Possibilidade. Precedentes. 3. Alegação de violação aos arts. 5°, XXXVI; e 97, da CF/88. Improcedente. Impossibilidade de declaração de efeitos retroativos para o caso de declaração de nulidade de contratos trabalhistas. Tratamento similar na doutrina do direito comparado: México, Alemanha, França e Itália. Norma de garantia do trabalhador que não se interpreta em seu detrimento. Acórdão do STJ em conformidade com a jurisprudência desta Corte. 4. Precedentes citados: AgRAI 105.794, 2ª T., Rel. Aldir Passarinho, DJ 02.05.86; e RE 104.654, 2ª T., Rel. Francisco Rezek, DJ 25.04.86 5. Agravo de instrumento a que se nega provimento.
(AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 529.694-1/RS, Segunda Turma, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ 11-03-2005)

Existe outro fundamento relevante para o reconhecimento de efeitos previdenciários àquele que, embora conte com idade inferior à mínima permitida para o exercício de qualquer trabalho, efetivamente o desempenhe. Trata-se de um argumento que diz respeito ao seu contrário, ou seja, à hipótese de não-reconhecimento daqueles efeitos, e pode ser resumido assim: a vida e o direito, nesse caso, seriam muito cruéis para o menor, criança ainda, pois além de ter sido obrigado ao trabalho em tenra idade - sem valer-se da proteção da família e do Estado - ainda não teria considerado tal trabalho para fins previdenciários, resultando, na prática, uma dupla punição.

Com base em tais fundamentos, o Superior Tribunal de Justiça vem, reiteradamente, desde há muito, reconhecendo para fins previdenciários o tempo de serviço rural desempenhado antes da idade mínima constitucionalmente imposta, como se constata, apenas a título de exemplo, das decisões assim ementadas:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TEMPO DE SERVIÇO. RURÍCOLA. MENOR DE 12 ANOS. LEI Nº 8.213/91, ART. 11, INCISO VII. PRECEDENTES. SÚMULA 07/STJ.
1 - Demonstrado o exercício da atividade rural do menor de doze anos, em regime de economia familiar, o tempo de serviço é de ser reconhecido para fins previdenciários, porquanto as normas que proíbem o trabalho do menor foram editadas para protegê-lo e não para prejudicá-lo. Precedentes.
2 - Recurso especial conhecido.
(STJ, RE 331.568/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado unânime em 23.10.2001, DJ 12.11.2001)

PREVIDENCIÁRIO - RECURSO ESPECIAL - RECONHECIMENTO DE TEMPO DE SERVIÇO RURAL ANTERIOR AOS 14 ANOS DE IDADE - POSSIBILIDADE - NORMA CONSTITUCIONAL DE CARÁTER PROTECIONISTA - IMPOSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO AOS DIREITOS DO TRABALHADOR - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA - ART. 255 E PARÁGRAFOS DO RISTJ.
- Desde de que comprovada atividade rural por menor de 12 (doze) anos de idade, impõe-se o seu reconhecimento para fins previdenciários. Precedentes.
- A simples transcrição de ementas não é suficiente para caracterizar o dissídio jurisprudencial apto a ensejar a abertura da via especial, devendo ser mencionadas e expostas as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados, bem como, juntadas certidões ou cópias integrais dos julgados paradigmas.
- Inteligência do art. 255 e seus parágrafos do RISTJ.
- Precedentes desta Corte.
- Recurso parcialmente conhecido, e nessa parte provido.
(STJ, RE 396.338/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, julgado unânime em 02.04.2002, DJ 22.04.2002)

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. NOTAS FISCAIS EM NOME DO PAI. INÍCIO DE PROVA MATERIAL. CÔMPUTO DE ATIVIDADE RURAL EXERCIDA ANTES DE COMPLETAR QUATORZE ANOS DE IDADE EM REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. POSSIBILIDADE. ALUNO-APRENDIZ. ESCOLA PÚBLICA PROFISSIONAL.
I - As notas fiscais de produtor rural, em nome do pai do Autor, constituem início razoável de prova material, a completar a prova testemunhal, para comprovação de atividade rural em regime de economia familiar.
II - Deve-se considerar o período de atividade rural do menor de 12 (doze) anos, para fins previdenciários, desde que devidamente comprovado, pois a proteção conferida ao menor não pode agora servir para prejudicá-lo.
III - O tempo de atividade como aluno-aprendiz é contado para fins de aposentadoria previdenciária.
IV - Recurso conhecido e provido.
(STJ, RE 382.085, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado unânime em 06.06.2002, DJ 01.07.2002)

Não vejo qualquer motivo para não adotar essa consagrada jurisprudência tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do superior tribunal de justiça aos trabalhadores indígenas, sob pena de estabelecer uma discriminação injustificada em detrimento de grupo social constitucionalmente protegido.

De qualquer sorte, o efetivo exercício de atividades vinculadas deve ser comprovado, como referido no voto majoritário.

Com essas breves considerações, entendo que o voto majoritário melhor equacionou o caso dos autos.

Ante o exposto, voto por NEGAR PROVIMENTO aos embargos infringentes." - grifei

A questão foi muito bem analisada no voto vencedor proferido pelo Des. ROGERIO FAVRETO na Apelação Cível n.º 5010723-55.2012.404.7200/SC (que originou os embargos infringentes antes referidos), inclusive com transcrição do oportuno parecer oral do Procurador Regional da República Domingos Sávio Dresch da Silviera, razão por que o transcrevo, verbis:

"No mérito, conforme asseverado antes, com a vênia do Relator, aprofundei a reflexão desse debate, auxiliado pelas manifestações do Ministério Público e do INSS, de forma que sobre a questão controversa, apresento solução mais ampliativa e protetiva, contemplando integralmente o pedido inicial.
Em resumo, pede-se o provimento do pedido para que o INSS se abstenha de indeferir, 'por motivo de idade ou qualquer outro com ele relacionado, os requerimento administrativos de benefícios de salário-maternidade das seguradas especiais indígenas que residem na área de abrangência da Subseção Judiciária de Santa Catarina, devendo observar, nos procedimentos administrativos, os costumes e tradições dos povos indígenas catarinenses'. O Relator estende até os 14 anos. Parece-me que está correto, que não é o caso aqui de trabalho infantil, proibido, mas sim, da proteção originária da própria criança, no espetro do que também preconiza a especial dicção constitucional do art. 231 da nossa Constituição.
Creio que a gravidez precoce, no caso, é regra comum nas comunidades indígenas. Aqui me reporto à manifestação do ilustre Procurador do Ministério Público Federal, no sentido de que essa, precocidade tem por objetivo manter a própria sobrevivência dos povos indígena e, em razão disso, tal precocidade não pode gerar um prejuízo à proteção da maternidade e da prole da criança indígena. Considero para a melhor compreensão do tema, o conhecimento dessa realidade, visto que tenho origem do meio rural e no meu município (Tapejara/RS) conheci e convivi, mesmo que diretamente, com duas comunidades indígenas de etnia kaingàng, onde já percebia a precocidade da gestação das mulheres indígenas. Aliás, nem precisamos ir longe, pois verificamos idêntico comportamento e cultura nos dias atuais, mesmo nas comunidades indígenas urbanas da própria capital do Estado. Mais, dados estatísticos apontam que a idade média do indígena é muito baixa, o que explica a precocidade da sua reprodução humana, como forma de sobrevivência e 'manutenção' da própria etnia.
A propósito disso, muito enriquecedoras para o deslinde do feito as seguintes considerações feita pelo Dr. Domingos Sávio Dresch da Silveira, Procurador da República em sua sustentação oral, valendo destacar os seguintes trechos:

'Aqui, temos um conflito, uma colisão de direitos, um conflito multicultural na aplicação de direitos posta dentro do nosso Estado, posta à luz da reflexão do nosso direito, e essa multiculturalidade não é uma excepcionalidade, não é uma jabuticaba que só existe no Brasil. (...) A Constituição determina, impõe uma situação de pluralismo jurídico relativamente a essas comunidades e, portanto, ela impõe, por parte do Estado, da sociedade, de todos nós e sobretudo desta Turma, que hoje tem que desatar esse nó em torno do auxílio-maternidade, a obrigação de olhar diferentemente para a adolescente índia e para a adolescente não índia.
(...)
Portanto, o que temos que ler, no caso concreto, é a legislação previdenciária, com as lentes postas pelo multiculturalismo consagrado pelo art. 231 da Constituição. Esse é o belíssimo desafio de interpretação e de aplicação de direito que se propõe a esta Turma de uma forma bastante peculiar e bastante particular nesta tarde.
(...)
Talvez haja alguma distorção pela forma de registro, nós próprios conhecemos índios velhos, mas os abissais índices de mortalidade, inteiramente diferentes daqueles que presenciamos, fazem com que a idade média do índio no Brasil seja de 37 anos, e, portanto, a gravidez na adolescência não é uma gravidez precoce, é uma condição de sobrevivência dessas etnias, é a forma de organizar a vida, e, portanto é aquela diferença que, se tratarmos com igualdade, no dizer de Boaventura, descaracterizaremos essas comunidades. Temos direito à igualdade quando a diferença nos inferioriza e temos direito à diferença quando a igualdade nos descaracteriza.'
(...)
Se vamos levar a sério o art. 231 da Constituição, temos de entender que o direito ao auxílio-maternidade nasce de uma forma diversa para as comunidades indígenas, e, portanto, o limitador dos 16 anos, que é um limitador legal, precisa ser lido com as lentes do art. 231, não para afastá-lo como um todo, mas para adequá-lo às condições e a forma de organização social de cada um dos grupos envolvidos. E, portanto, limitar em 16 ou limitar em 14, como há um belíssimo precedente desta Turma, em que se constrói, a luz da figura do aprendizado e da atividade rural, a possibilidade do auxílio-maternidade desde os 14 anos é ainda não assegurar, na sua totalidade, direito das comunidades indígenas à proteção do estado.

Então, parece-me estarmos aqui tratando justamente da proteção à maternidade, especialmente da criança/adolescente, e aí sim devemos, por respeito aos costumes e tradições dos povos indígenas, tratar esses desiguais de forma desigual. Assim, entendo que sobre a questão do limite de idade é indiferente estabelecer desde 12 ou 14 anos, visto que pela própria diversidade indígena e contexto multicultural, a precocidade da sua reprodução não obedece esse balizamento etário. Trata-se assim, de conferir efetividade ao comando do art. 231 da Constituição da República, na busca da concretização dos direitos fundamentais de proteção da mulher e da criança indígena.

O auxílio-maternidade surge de forma distinta para os indígenas, seja pela organização social própria seja pela sobrevivência da etnia. Portanto, o limite convencional de idade precisa ser relevado como forma de conferir efetividade integral ao direito protetivo da criança e de sua mãe, no propósito de conferir interpretação do art. 231 da Carta federal, harmonizado ao contexto multicultural e dignidade humana da população indígena.

Acrescento a isso o fato de ser acolhido, neste Tribunal, pedidos de reconhecimento de tempo de serviço para os segurados especiais desde os 12 anos, que já contam com uma característica diferenciada dos demais trabalhadores, pois começam a trabalhar muito cedo. Logo, também não vejo como negar às adolescentes indígenas, o direito de ter apreciados os pedidos de concessão de salário-maternidade, reforçado pelas características muito peculiares, como: condição nômade, forma mais primitiva de vida comunitária, reprodução precoce, etc, entre outros fatores que os distinguem de padrões da civilidade urbana.

Dessa forma, analisando a hipótese dos autos com as lentes postas pelo multiculturalismo consagrado pelo art. 231 da Constituição, acolho integralmente o pedido inicial, divergindo parcialmente da solução proposta pelo relator, no escopo de dar concretude ao direito básico de apoio à maternidade inicial da criança, pela modesta possibilidade de perceber um salário mínimo nos primeiros meses de vida.

Desde logo esclareço que o provimento ora proposto não tem a intenção de incentivar a concepção precoce ou mesmo estimular o trabalho infantil, do adolescente ou da criança, mas sim garantir o direito à maternidade das índias menores de 16 anos de idade, que se realiza em condições distintas e especiais, merecendo tratamento diferenciado.

Trata-se assim, de bem receber a lição do sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos, que assevera 'que temos direito à diferença quando a igualdade nos inferioriza e temos direito à diferença quando a igualdade nos descaracteriza'. No caso em tela, cabe interpretar a regra geral de forma diferente para não inferiorizar a proteção das mães e filhos indígenas, visto que o plano linear do direito o descaracterizaria.

No caso em apreço, a decisão apenas garante o recebimento do pedido pela Autarquia Previdenciária para análise das condições e os requisitos legais de concessão do direito ao auxílio-maternidade, ficando, porém, vedado o indeferimento do benefício, tão-somente pelo critério de se tratar de mãe menor de 16 anos de idade." - grifei
Com base em todos esses argumentos, entendo que: (a) o Ministério Público Federal possui legitimidade ativa atribuída constitucionalmente para a defesa de interesses individuais homogêneos dos índios; (b) a norma constitucional que veda o trabalho a menores de dezesseis anos não pode servir de óbice ao recebimento de salário-maternidade por menores de dezesseis anos, porque visa a protegê-las; (c) a cultura indígena recebe especial proteção constitucional (art. 231) e legal (art. 55 do Estatuto do Índio), de modo que as peculiaridades da etnia Kaingang devem ser levadas em consideração para a cobertura previdenciária; (d) não deve haver limite etário predeterminado para a concessão de salário-maternidade às gestantes Kaingangs, porque, de acordo com a sua cultura, a gravidez e o trabalho podem ocorrer em idades variadas, inclusive inferiores a quatorze anos; (e) o tratamento diferenciado é perfeitamente justificado e se impõe diante da força normativa da Constituição e de expressa previsão legal; (f) a possibilidade de recebimento de salário-maternidade por menores de dezesseis anos, cumpridos os demais requisitos, não incentiva a gravidez precoce ou o trabalho infantil, circunstâncias que fazem parte da cultura indígena Kaingang.

É caso, portanto, de desprovimento do apelo e da remessa oficial."

O voto acima transcrito aborda argumentos não suscitados pelo INSS nesta ação, servindo, portanto, de reforço argumentativo.

Deve ser desprovida a apelação e a remessa oficial tida por interposta, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Ante o exposto, voto por negar provimento ao recurso de apelação à remessa oficial.

É o voto.
Des. Federal ROGER RAUPP RIOS
Relator


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Signatário (a): Roger Raupp Rios
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO DE 28/03/2017
APELAÇÃO CÍVEL Nº 5001796-23.2015.4.04.7127/RS
ORIGEM: RS 50017962320154047127
RELATOR
:
Des. Federal ROGER RAUPP RIOS
PRESIDENTE
:
Paulo Afonso Brum Vaz
PROCURADOR
:
Dr. Jorge Luiz Gasparini da Silva
SUSTENTAÇÃO ORAL
:
presencial - DR. JORGE LUIZ GASPARINI DA SILVA - REPRESENTANTE DO MPF
APELANTE
:
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO
:
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
INTERESSADO
:
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI
:
UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
Certifico que este processo foi incluído na Pauta do dia 28/03/2017, na seqüência 709, disponibilizada no DE de 09/03/2017, da qual foi intimado(a) INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, a DEFENSORIA PÚBLICA e as demais PROCURADORIAS FEDERAIS.
Certifico que o(a) 5ª TURMA, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, em sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A TURMA, POR UNANIMIDADE, DECIDIU NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO À REMESSA OFICIAL.
RELATOR ACÓRDÃO
:
Des. Federal ROGER RAUPP RIOS
VOTANTE(S)
:
Des. Federal ROGER RAUPP RIOS
:
Des. Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ
:
Des. Federal ROGERIO FAVRETO
Lídice Peña Thomaz
Secretária de Turma


Documento eletrônico assinado por Lídice Peña Thomaz, Secretária de Turma, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 8908963v1 e, se solicitado, do código CRC 693DF78D.
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Signatário (a): Lídice Peña Thomaz
Data e Hora: 28/03/2017 17:03




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