Apelação Cível Nº 5002708-35.2019.4.04.7012/PR
RELATOR: Desembargador Federal MÁRCIO ANTONIO ROCHA
APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)
APELANTE: ESTADO DO PARANÁ (RÉU)
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (AUTOR)
RELATÓRIO
Trata-se de apelação da União e do Estado do Paraná contra sentença que julgou procedente a ação em que se busca o fornecimento do medicamento HEMP OIL (RSHO) 18% CANABIDIOL GOLD, para tratamento de transtorno do espectro autista grave (F81.4) e déficit mental grave (F72.0), agravado por crises convulsivas de epilepsia, nos seguintes termos (ev. 59 do processo de origem):
3. Dispositivo
Ante o exposto, julgo extinto defiro a antecipação dos efeitos da tutela, julgo procedente o pedido e extinto o feito com resolução de mérito, nos termos do art. 487, inciso I, do CPC, para o fim de condenar os réus em caráter solidário, a fornecerem, gratuita e ininterruptamente, à parte autora, o medicamento "Hemp Oil (RSHO) 18% Canabidiol Gold", na quantidade indicada pelo médico que acompanha seu tratamento de saúde (3 (três) tubos,devendo tomar 3 cm, 2x ao dia, por tempo indeterminado), conforme evolução do tratamento e consoante prescrição do médico assistente, sob pena de multa diária de R$ 100,00 (cem reais), atendendo à jurisprudência consolidada no TRF da 4ª Região.
Os medicamentos poderão ser ofertados na sua forma genérica, se existentes, e/ou com variações de nome em razão do laboratório fabricante, se possível, conforme parecer de médico habilitado do SUS.
Fica estabelecido que eventuais modificações na dosagem da medicação ora concedida à parte autora não implica em julgamento ultra petita, tendo em vista que a prestação buscada tem nítido caráter periódico.
Prazo para cumprimento: fixo o prazo de 30 (trinta) dias para a implementação desta medida e primeira entrega, a partir da intimação, sob pena de incidência automática da multa diária acima fixada, sem prejuízo das sanções criminais e por improbidade administrativa eventualmente cabíveis.
Questões de logística e/ou repasse de valores são internas ao SUS, devendo ser resolvidas pelos próprios réus, sem prejuízo do cumprimento da decisão.
Exoneração do fornecimento
Ficarão os réus desobrigados do fornecimento do medicamento, caso não cumpridas as obrigações acessórias adiante determinadas.
Obrigações acessórias de incumbência da parte autora:
Determino as seguintes obrigações, que devem ser observadas pelo paciente para recebimento dos medicamentos deferidos nesta sentença, quais sejam:
a) a receita médica acerca dos medicamentos deve ser renovada semestralmente e deve ser apresentada no local de retirada do medicamento;
b) comunicação imediata (dentro do prazo de 48 horas) ao órgão de saúde que disponibilizou o medicamento e a este juízo acerca da ocorrência de suspensão/interrupção do tratamento ou de morte do(s) paciente(s);
c) acondicionamento do medicamento recebido de acordo com as informações e especificações do laboratório fabricante;
d) devolução, no prazo de 48 horas, ao órgão estadual de saúde que disponibilizou o medicamento excedente ou não utilizado, a contar da interrupção/suspensão do tratamento ou da morte;
e) devolução, no prazo de 48 horas, do medicamento não utilizado por inadequação.
Sem custas (artigo 4º, inciso I, da Lei nº 9.289/96).
Deixo de arbitrar honorários em favor do MPF, considerando que "em ação civil pública, não há condenação em honorários advocatícios. A Lei 7.347/85, em seu artigo 18, não faz diferença quanto ao autor ser o Ministério Público ou outro, razão pela qual, por critério de simetria, não cabe a condenação da parte vencida ao pagamento de honorários advocatícios" (TRF4, AC 5026519-33.2014.404.7001, QUARTA TURMA, Relator CANDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR, juntado aos autos em 19/08/2016).
Condeno os réus a restituírem à Seção Judiciária do Paraná, pro rata, o valor a pago ao perito a título de honorários periciais, nos termos da Resolução CJF n. 558/07 e do art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 9.289/96, devidamente corrigidos pelos IPCA-E desde a data da prolação da sentença até o efetivo pagamento.
Sentença publicada e registrada eletronicamente. Intimem-se.
Em sendo interposta apelação (principal ou adesiva), intime-se a parte conrária para apresentar contrarrazões, no prazo de 15 (quinze) dias. Outrossim, caso a parte recorrida suscite nas contrarrazões questão resolvida na fase de conhecimento não coberta pela preclusão, intime-se a parte recorrente para manifestação sobre ela, no prazo de 15 (quinze) dias. Observe-se, em sendo o caso, os artigos 180 e 183 do NCPC. Por derradeiro, remetam-se os autos ao e. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, independentemente de juízo de admissibilidade.
O Estado do Paraná apelou alegando que se trata de fornecimento de medicamento que não possui registro na ANVISA, sendo a sua dispensação proibida pelo ordenamento jurídico. Aduz que o tratamento pretendido está fora dos protocolos e listas do SUS e a negativa do Poder Público não implica em ofensa à assistência terapêutica integral, tampouco ao direito à saúde. Assevera que, em se tratando de medicamento não incluído nas políticas públicas do SUS, sobretudo o de alto custo, a obrigação do fornecimento é da União exclusivamente. Na eventualidade de ser mantida a condenação do Estado do Paraná, requer seja o fornecimento dado por sequestro de valores (ev. 72).
A União recorreu sustentando que o medicamento não possui registro na ANVISA e portanto é indevida a sua dispensação. Asseverou que não há comprovação da imprescindibilidade do medicamento postulado, tampouco da superioridade deste em relação aos fármacos disponíveis na rede pública, não existindo, portanto, ineficácia da política pública. Argumenta que as decisões da CONITEC em relação à incorporação das tecnologias devem ser respeitadas. Subsidiariamente, reforça que a decisão judicial necessariamente direcione a obrigação ao Estado do Paraná. Requer seja determinado o ressarcimento pela via administrativa (ev. 74).
No evento 78, a União apresenta nova apelação sustentando, além dos argumentos expostos no recurso colacionado no ev. 74, que há disponibilidade de alternativas terapêuticas no âmbito do SUS para o tratamento da doença que acomete a parte autora. Aponta para o alto custo do tratamento, a incapacidade orçamentária do SUS e o impacto danoso do custo do tratamento que inviabiliza a efetivação de políticas públicas. Requer, outrossim, seja observado o Tema 106 do STJ.
Com contrarrazões, vieram os autos a esta Corte.
O Ministério Público Federal apresentou parecer pelo desprovimento do apelo da União e pelo provimento parcial do recurso do Estado do Paraná.
É o relatório.
Peço dia para julgamento.
VOTO
Inadmissibilidade do recurso da União
A União intimada da sentença proferida no ev. 59, apresentou recurso de apelação no ev. 74. No entanto, ainda dentro do prazo legal, apresentou novo apelo no ev. 78, contra a mesma sentença, com razões mais abrangentes.
Ocorre que, em atenção ao princípio da unirrecorribilidade recursal, bem como a ocorrência da preclusão consumativa, o segundo recurso, acostado no ev. 78, não merece conhecimento, de modo a evitar a acumulação de impugnações.
Neste sentido:
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. UNIRRECORRIBILIDADE RECURSAL. APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. CONCESSÃO. TERMO INICIAL. PONTUAÇÃO MÍNIMA. CONSECTÁRIOS LEGAIS DA CONDENAÇÃO. PRECEDENTES DO STF (TEMA 810) E STJ (TEMA 905). CONSECTÁRIOS DA SUCUMBÊNCIA. TUTELA ESPECÍFICA. IMPLANTAÇÃO DO BENEFÍCIO. 1. Não se conhece da apelação quando idêntica àquela manejada anteriormente, forte no pressuposto da unirrecorribilidade recursal. 2. Contando o segurado com mais de 35 anos de tempo de serviço/contribuição e cumprida a carência legalmente exigida, tem direito à concessão de Aposentadoria por Tempo de Contribuição, a contar da data do requerimento administrativo, nos termos do artigo 49, II, c/c art. 54, da Lei nº 8.213/1991. 3. A partir de 18-6-2015 (data da publicação da MP n° 676/15, posteriormente convertida na Lei n° 13.183/2015): de acordo com a nova redação do artigo 29-C da Lei n° 8.213/91, o segurado que preencher o requisito para a aposentadoria por tempo de contribuição poderá optar pela não incidência do fator previdenciário no cálculo de sua aposentadoria, quando o total resultante da soma de sua idade e de seu tempo de contribuição, incluídas as frações, na data de requerimento da aposentadoria, for igual ou superior a 95 pontos (se homem, observado o tempo mínimo de contribuição de 35 anos) ou igual ou superior a 85 pontos (se mulher, observado o tempo mínimo de contribuição de 30 anos). Para tanto, serão somadas as frações em meses completos de tempo de contribuição e idade. 4. Caso em que a parte possui tempo suficiente para alcançar a regra "85/95". 5. Critérios de correção monetária e juros de mora conforme decisão do STF no RE nº 870.947/SE (Tema 810) e do STJ no REsp nº 1.492.221/PR (Tema 905). Hipótese em que fixados juros de mora, a partir de 30-6-2009, de acordo com os índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança. 6. Determinada a imediata implementação do benefício, valendo-se da tutela específica da obrigação de fazer prevista no artigo 461 do CPC/1973, bem como nos artigos 497, 536 e parágrafos e 537, do CPC/2015, independentemente de requerimento expresso por parte do segurado ou beneficiário. (TRF4, AC 5036326-75.2017.4.04.7000, TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DO PR, Relator FERNANDO QUADROS DA SILVA, juntado aos autos em 16/12/2020)
Diante disso, não admito o recurso veiculado pela União no ev. 78, em face da preclusão consumativa.
Responsabilidade Solidária
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento em 05.03.2015, sob a sistemática da repercussão geral (Tema 793), assim decidiu:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. No mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, vencidos os Ministros Teori Zavascki, Roberto Barroso e Marco Aurélio. Não se manifestou a Ministra Cármen Lúcia. (Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 855.178, Plenário, Relator Ministro Luiz Fux, j. 05/03/2015, sem o grifo no original)
Outrossim, em Plenário, o STF, em 22.05.2019, fixou a seguinte tese de repercussão geral ao julgar os embargos de declaração opostos nesse mesmo recurso (RE 855.178, Tema 793):
Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Destarte, não merece correção a decisão de primeiro grau neste aspecto.
Mérito
O direito fundamental à saúde é assegurado nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal e compreende a assistência farmacêutica (art. 6º, inc. I, alínea d, da Lei n.º 8.080/90), cuja finalidade é garantir a todos o acesso aos medicamentos necessários para a promoção e tratamento da saúde.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da STA 175, expressamente reconheceu e definiu alguns parâmetros para solução judicial dos casos que envolvem direito à saúde, bem como a demonstração de evidências científicas para justificar o pedido. Assim, devem ser considerados, entre outros, os seguintes fatores:
a) a inexistência de tratamento/procedimento ou medicamento similar/genérico oferecido gratuitamente pelo SUS para a doença ou, no caso de existência, sua utilização sem êxito pelo postulante ou sua inadequação devido a peculiaridades do paciente;
b) a adequação e a necessidade do tratamento ou do medicamento pleiteado para a doença que acomete o paciente;
c) a aprovação do medicamento pela ANVISA;
d) a não configuração de tratamento experimental.
De fato, tratando-se de adoção de uma política pública de saúde, caberá aos profissionais de saúde, dentro de suas melhores convicções profissionais, tomarem as decisões que espelhem os interesses de toda a Sociedade. Isso importa, necessariamente, na eleição de prioridades, na análise de custo benefício, ponderação dos objetivos alcançáveis pelo tratamento, etc, tudo para que possa o sistema de saúde dar atendimento ao maior número de pacientes, e com a melhor eficiência possível frente as limitações orçamentárias. Desnecessário lembrar que a população, por vezes, carece de tratamentos e medicamentos, e mesmo de atendimento profissional, por questões de falta de recursos, mesmo para alguns tratamentos comprovadamente eficientes ou de urgência.
Estabelecida a política pública de disponibilização de medicamentos, há que se lhe dar credibilidade, pelo menos até que seja seriamente desafiada em sua correção. Isso, não apenas por que se presume a sua seriedade, mas também pois se presume tenha Estado consultado profissionais qualificados para definir sua dispensação de remédios. E ainda, fundamentalmente, por se admitir, de modo razoável, que o conjunto, que a reunião desses profissionais que subsidiaram as políticas públicas substancializa um espectro maior e mais variado de opiniões, cuja soma fornece densidade mais robusta que opiniões isoladas de médicos, muitas vezes pressionados pelos casos à frente.
Aqui uma primeira importante perspectiva, a política de dispensação de medicamentos não pode ser afastada, via de regra, com base em opinião isolada de um determinado médico, mesmo que perito nomeado pelo juiz. Não há qualquer razoabilidade em se admitir a opinião isolada de um único médico, contra o conjunto de informações que subsidiaram a decisão pública. Não bastará a mera opinião, baseada em considerações pessoais, sem que se aponte, com suficiente e racional fundamentação, o erro da política pública.
A crítica, para ser válida e aceitável, deverá ser manifestada em artigos, estudos ou qualquer dado público que confronte as razões que informam a decisão do sistema público em não ofertar, de forma geral e universal, determinado medicamento. Nesse sentido, aliás, não se tem até aqui comprovado que tenha a política pública de dispensação de medicamentos deixado de fora, por longo tempo, algum fármaco de efetiva eficácia para doenças raras. Muito pelo contrário, passado recente envolvendo a Fosfoetanolamina, cujo fornecimento generalizado foi autorizado pelo Poder Judiciário, demonstrou que a negativa do Estado no fornecimento desse preparado químico não tinha por base um erro da política de dispensação de remédios.
Nesse particular, observe-se que a problemática de medicamentos não se limita à questão orçamentária. Igualmente importante é saber sobre a necessidade ou não de determinado medicamento, e de se sua eficácia. Da análise do, por vezes, pouco benefício esperado frente a situações irreversíveis do curso da vida. Haveria ainda problemas periféricos, de certo conhecimento público, do induzimento do fornecimento de determinados medicamentos, ganhos diretos e indiretos relacionados à prescrições médicas, interesses da poderosa indústria farmacêutica, etc. Por outro lado, o fenômeno da judicialização da saúde tem criado um sistema de saúde lateral ao sistema único de saúde, sendo os dois sistemas custeados pelo orçamento público, o que evidencia que a questão fundamental não é orçamentária.
Tão importante quanto às questões acima, é preciso compreender que medicamentos que não ultrapassaram todas as fases de teste, são, em princípio, medicamentos ainda não definitivamente testados, tanto na comprovação de sua eficácia, quanto na averiguação das questões ligadas a riscos remanescentes de sua administração. Daí porque, não servem, em geral, para serem incorporados definitivamente no fornecimento pelo sistema de saúde. A aprovação de medicamentos em testes na fase III, deve ser seguida de esforços da pesquisa médica, e principalmente dos grandes fabricantes, para fornecimento dos estudos finais e definitivos sobre o fármaco. Do contrário, e especialmente no Brasil, a população estará sujeita a ser a base de testes da indústria farmacêutica, incorrendo a população nos riscos aí envolvidos, e mediante financiamento público.
Por outro lado, imaginar que o Juiz tenha condições de decidir o fornecimento de medicamentos, com base na voz de seu perito, é presumir racionalidade onde não há.
Primeiro, porque o médico perito não raras vezes, não terá maior conhecimento que os profissionais que informam a política pública de medicamentos, e assim, na grande maioria das vezes não indica onde está o erro por determinado medicamento não estar na lista dos disponibilizados. Nessas circunstâncias, o perito oferta ao Juiz mera opinião pessoal, e não uma análise científica, da possibilidade de determinado medicamente vir a ter efeito no paciente. Muitos peritos sequer mencionam experiências pessoais, ou novos estudos, onde teriam prescrito determinado medicamento, o que mostra a natureza meramente opinativa de seus pareceres.
Segundo, porque no processo judicial, não se tendo conhecimento técnico, o Juiz tenderá a fornecer o medicamento, não porque está convencido de que há um erro por parte do Estado, mas porque não desejará assumir o ônus moral de não ter deferido determinando medicamento. A decisão do juiz, nessas circunstâncias, visa o conforto emocional do magistrado e não se baseia em dados científicos e argumentos racionais. Apontados fossem, argumentos reais, a conclusão a se extrair da decisão seria o amplo e geral fornecimento do medicamento, a toda a população necessitada, independentemente do seu custo.
Sobre o ônus moral de decisões dessa natureza, importante observar que a decisão de não fornecer o medicamento já foi tomada pelo Estado. E ela é válida enquanto política universal destinada a atender a toda a população. Portanto, a decisão do Juiz, a se estabelecer, é outra. Ou seja, diz respeito a verificar se foram, ou não, fornecidos dados suficientes para comprovar que, no caso concreto, a política pública está equivocada, ou é insuficiente.
Caso concreto
Extrai-se dos autos que a autora conta com 12 anos de idade e é portadora de transtorno do espectro autista grave (f81.4) e déficit mental grave (F72.0), agravado por crises convulsivas de epilepsia, tendo ajuizado a presente ação ordinária objetivando o fornecimento do medicamento HEMP OIL (RSHO) 18% CANABIDIOL GOLD, para seu tratamento, conforme documentos juntados com a inicial.
Por força da antecipação de tutela concedida na sentença de primeiro grau (ev. 59), a demandante já iniciou o tratamento com o medicamento HEMP OIL (RSHO) 18% CANABIDIOL GOLD, conforme confirmado pelo Ministério Público Federal nos evs. 51 e 59 dos autos nº 5001650-60.2020.4.04.7012 de cumprimento provisório de sentença.
E nesse contexto, independentemente das questões jurídicas acerca de haver ou não comprovação científica da superioridade do medicamento pleiteado sobre o tratamento disponibilizado pelo sistema público, tendo sido iniciado o tratamento, entendo que em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, é incabível a suspensão nesse momento, salvo comprovada ineficácia, o que não ocorreu nos autos.
O vetor principal de respeito à dignidade humana, nessa situação, não se fundamenta exatamente no direito à saúde, foco da decisão questionada, pois aqui não se tem evidências científicas da real superioridade da medicação em relação a já disponibilizada pelo SUS. Ao contrário, o respeito à dignidade refere-se à incolumidade emocional e psicológica dos pacientes que, mesmo enfrentando doenças graves ou terminais, confiam suas forças, esperanças e fé no resultado da medicação que receberam por decisão judicial, hipótese na qual a retirada da medicação, pondo termo às esperanças, traria angústias, quiçá, insuperáveis a quem já se encontra em situação tão delicada.
Além disso, ressalte-se, conforme consignado no parecer do MPF, que a ANVISA, por meio da RDC n.º 327, de 9 de dezembro de 2019, regulamentou os procedimentos para a concessão da autorização sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de “produtos de Cannabis para fins medicinais de uso humano”, o que é recomentado para o tratamento da autora, tendo sido liberada a sua importação excepcional pela ANVISA (Evento 3 -DESPADEC1, Evento 15 - MANIF_MPF1 e Evento 43 – LAUDOPERIC1).
Assim, ressalvada a posição pessoal deste Relator, entendo que no caso concreto, não se mostra razoável a suspensão da medicação, cujo tratamento está sendo realizado, sem indicação de ineficácia.
Tema 6 STF
O Supremo Tribunal Federal, analisando a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo - objeto do Recurso Extraordinário 566471 -, reconheceu a repercussão geral da matéria sem, contudo, determinar que processos análogos ao paradigma fossem suspensos.
Em 11.03.2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do Sistema Único de Saúde (SUS). As situações excepcionais ainda serão definidas na formulação da tese de repercussão geral do Tema 6, que ainda, não foi fixada.
Do site do STF consta que "A maioria dos ministros - oito votos no total – desproveu o recurso tendo como condutor o voto do relator, ministro Marco Aurélio, proferido em setembro de 2016. A vertente vencedora entendeu que, nos casos de remédios de alto custo não disponíveis no sistema, o Estado pode ser obrigado a fornecê-los, desde que comprovadas a extrema necessidade do medicamento e a incapacidade financeira do paciente e de sua família para sua aquisição. O entendimento também considera que o Estado não pode ser obrigado a fornecer fármacos não registrados na agência reguladora." (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp? idConteudo=439095&caixaBusca=N).
No caso, o julgamento está em consonância com o decidido pelo STF, pois asseverou a necessidade de comprovação da extrema necessidade do medicamento, nada obstante tenha se entendido que no caso concreto não se mostra razoável a suspensão da medicação, cujo tratamento está em andamento.
Atribuições, custeio e reembolso das despesas entre os Réus
O Plenário do STF em 22.05.2019 reiterou sua jurisprudência no sentido de que os entes federados têm responsabilidade solidária no fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde, fixando a seguinte tese de repercussão geral (RE 855.178, Tema 793):
Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Nesse contexto, deve ser reconhecido que a União é a responsável financeira pelo custeio de tratamentos de alto custo, bem como pelo cumprimento da medida, sem prejuízo, em caso de descumprimento, do redirecionamento ao Estado, como responsável solidário.
Cumpre ressaltar, por fim, que eventual ressarcimento que se fizer necessário deverá ocorrer na esfera administrativa.
Contracautelas
Nos casos de dispensação de medicamento, entende-se que a adoção de medidas de contracautela são salutares a fim de garantir o exato cumprimento da decisão judicial e devem ser aplicadas mesmo de ofício. Em casos onde há possibilidade de que o tratamento perdure por longo tempo, ou seja, a dispensação da medicação deve se perpetuar enquanto o fármaco apresentar eficiência no controle da doença da parte autora, considero cabível a determinação de tais medidas.
Neste sentido, estabeleço as seguintes contracautelas, próprias da excepcionalidade e nos moldes de decisões desta Corte em casos similares:
a) a medicação deve ser fornecida ao paciente através da unidade onde realiza o tratamento, sob responsabilidade do médico que fez a indicação do fármaco e mediante a apresentação da respectiva receita, que deve ser renovada bimestralmente;
b) comunicação imediata, no prazo de 5 dias, ao Juízo, em caso de suspensão da necessidade ou prescrição do medicamento ou de seu tratamento, bem como à Gerência Regional de Saúde;
c) devolução, no prazo de 5 dias, ao órgão estadual de saúde que disponibilizou o medicamento excedente ou não utilizado, a contar da interrupção/suspensão do tratamento;
d) acondicionamento do medicamento recebido de acordo com as informações e especificações do laboratório fabricante; e
e) apresentação, a cada 90 dias, de relatório subscrito pelo médico responsável pelo tratamento dando conta da evolução do quadro clínico da parte autora e informando a necessidade (ou não) de prosseguimento do tratamento.
Honorários advocatícios
Como asseverado pelo Juízo a quo, não há condenação em honorários advocatícios, vez que o Ministério Público Federal é o autor desta ação civil pública.
Prequestionamento
Objetivando possibilitar o acesso das partes às Instâncias Superiores, considero prequestionadas as matérias constitucionais e/ou legais suscitadas nos autos, conquanto não referidos expressamente os respectivos artigos na fundamentação do voto, nos termos do art. 1.025 do CPC.
Conclusão
- apelaçao da União e Estado do Paraná: improvidas.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por negar provimento aos apelos da União e do Estado do Paraná.
Documento eletrônico assinado por MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40002809024v21 e do código CRC f5987160.Informações adicionais da assinatura:
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Apelação Cível Nº 5002708-35.2019.4.04.7012/PR
RELATOR: Desembargador Federal MÁRCIO ANTONIO ROCHA
APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)
APELANTE: ESTADO DO PARANÁ (RÉU)
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (AUTOR)
EMENTA
DIREITO À SAÚDE. processo civil. unirrecorribilidade recursal. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. TRATAMENTO INICIADO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
1. Não se conhece da apelação quando idêntica àquela manejada anteriormente, forte no pressuposto da unirrecorribilidade recursal.
2. Tratando-se de adoção de uma política pública de saúde, caberá aos profissionais de saúde, dentro de suas melhores convicções profissionais, tomarem as decisões que espelhem os interesses de toda a Sociedade. Isso importa, necessariamente, na eleição de prioridades, na análise de custo-benefício, na ponderação dos objetivos alcançáveis pelo tratamento, para que possa o sistema de saúde dar atendimento ao maior número de pacientes, e com a melhor eficiência possível frente as limitações orçamentárias.
3. Estabelecida a política pública de disponibilização de medicamentos, há que se lhe dar credibilidade, não podendo ser afastada, via de regra, com base em opinião isolada de um determinado médico, mesmo que perito nomeado pelo juiz.
4. Procurando racionalizar as decisões judiciais, é que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da STA 175, expressamente reconheceu e definiu alguns parâmetros para solução judicial dos casos que envolvem direito à saúde, bem como a demonstração de evidências científicas para justificar o pedido.
5. No caso concreto o tratamento se iniciou por força da liminar deferida, razão pela qual - forte no princípio da dignidade da pessoa humana - não seria razoável a suspensão do tratamento nesta fase, salvo comprovada ineficácia.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia Turma Regional Suplementar do Paraná do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por unanimidade, negar provimento aos apelos da União e do Estado do Paraná, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Curitiba, 05 de outubro de 2021.
Documento eletrônico assinado por MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40002809025v4 e do código CRC 6b298b75.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA
Data e Hora: 8/10/2021, às 13:38:0
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 28/09/2021 A 05/10/2021
Apelação Cível Nº 5002708-35.2019.4.04.7012/PR
RELATOR: Desembargador Federal MÁRCIO ANTONIO ROCHA
PRESIDENTE: Desembargador Federal MÁRCIO ANTONIO ROCHA
PROCURADOR(A): MAURICIO GOTARDO GERUM
APELANTE: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)
APELANTE: ESTADO DO PARANÁ (RÉU)
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (AUTOR)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 28/09/2021, às 00:00, a 05/10/2021, às 16:00, na sequência 560, disponibilizada no DE de 16/09/2021.
Certifico que a Turma Regional suplementar do Paraná, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DO PARANÁ DECIDIU, POR UNANIMIDADE, NEGAR PROVIMENTO AOS APELOS DA UNIÃO E DO ESTADO DO PARANÁ.
RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador Federal MÁRCIO ANTONIO ROCHA
Votante: Desembargador Federal MÁRCIO ANTONIO ROCHA
Votante: Desembargador Federal LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO
Votante: Juíza Federal GISELE LEMKE
SUZANA ROESSING
Secretária
Conferência de autenticidade emitida em 16/10/2021 12:01:09.