Apelação Cível Nº 5066674-62.2020.4.04.7100/RS
RELATORA: Desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA
APELANTE: ORLANDO PEDRO MICHELLI (AUTOR)
ADVOGADO: THAYNA TEIXEIRA MORAIS (OAB RS102874)
ADVOGADO: JOSE VECCHIO FILHO (OAB RS031437)
ADVOGADO: STEFAN GUIMARAES EMERIM (OAB RS080361)
ADVOGADO: BRUNO SCHINEIDER KLEMENT (OAB RS122035)
APELADO: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)
RELATÓRIO
Trata-se de ação proposta por Orlando Pedro Michelli em face da União na qual o autor requer a condenação da ré ao pagamento de uma compensação pelos danos morais decorrentes da perseguição política, tortura e prisão sofridas durante a ditadura militar, bem como seja computado o período de perseguição como tempo de contribuição previdenciária. Narrou que em 1968 era militante político filiado ao PCB e ligado à Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, além de ocupante do cargo de tesoureiro da União Gaúcha de Estudantes Secundários (UGES), onde participava de atividades políticas e movimentos estudantis. Relatou que naquele ano foi preso diversas vezes em decorrência de sua militância, mas a perseguição não cessou; em 1970 também foi detido, em duas oportunidades, sendo interrogado e levado ao DOPS de Porto Alegre, onde foi torturado. Referiu que os militares o transferiram para a ilha do presídio, de onde teve de voltar às pressas em razão de insuficiência respiratória, razão pela qual permanecera no DOPS por mais alguns dias para tratar sua saúde. Disse que depois de liberado viveu anos sob vigilância dos órgãos de segurança, às vezes de forma clandestina, e que por essa razão não conseguia manter-se por muito tempo em um mesmo emprego, uma vez que logo descobriam seu passado "subversivo" e o despediam. Relatou que a perseguição política deixou-lhe sequelas psicológicas graves que culminaram em depressão, doença que lhe causa até hoje sensação de humilhação, injustiça e constrangimento. Esclareceu que em 2007 a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça declarou-o anistiado político, deferindo-lhe uma reparação econômica de caráter indenizatório em prestação única no valor de R$ 100.000,00, conforme previsto na Lei 10.559/2002. Por fim, destacou que além do dano físico e psicológico também houve dano ao seu projeto de vida.
Processado o feito, sobreveio sentença que afastou a prescrição mas julgou improcedente o pedido por considerar inviável a cumulação da reparação econômica da Lei 10.559/2002 com a indenização por danos morais, condenando o autor ao pagamento de honorários advocatícios de 10% sobre o valor atualizado da causa corrigido pelo IPCA-E desde a data do ajuizamento da ação, na forma do artigo 85, § 4º, inciso III, do Código de Processo Civil, cuja exibilidade, porém, foi suspensa em razão da gratuidade de justiça.
Irresignado, o autor apelou. Em suas razões recursais, traçou um panorama fático da situação que vivenciou durante a ditadura militar, afirmando que são inegáveis (in re ipsa, mais especificamente) os prejuízos extrapatrimoniais sofridos por conta da perseguição política que lhe foi imposta, até hoje não reparados de forma integral pelo Estado brasileiro. Alegou que a sentença merece reforma a fim de que seja afastada a vedação do artigo 16 da Lei 10.559/2002, conforme inúmeros precedentes que cita na peça recursal e recente enunciado da súmula da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Quanto ao valor da compensação por danos morais, postulou algo em torno de R$ 200.000,00, acrescidos de juros de mora desde o evento danoso, isto é, desde 1º de janeiro de 1968, data reconhecida pela própria União na esfera administrativa como sendo a do início da violência estatal. Ao final, requereu o cômputo do período em que esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais junto ao Regime Geral da Previdência Social – RGPS.
Com contrarrazões, foi feita a remessa eletrônica dos autos a este Tribunal.
É o relatório.
VOTO
Cumulatividade das Indenizações por Danos Morais com a Reparação Econômica da Lei 10.559/2002
A responsabilidade do Estado está prevista no § 6º do artigo 37 da Constituição Federal:
Art. 37. (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A Constituição Federal de 1988, seguindo a linha de sua antecessora, estabeleceu como baliza principiológica a responsabilidade objetiva do Estado, adotando a teoria do risco administrativo. Consequência da opção do constituinte pode-se dizer que, de regra, os pressupostos da responsabilidade civil do Estado são uma ação ou omissão humana, um dano injusto ou antijurídico sofrido por terceiro e o nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano experimentado pela vítima.
Na situação específica dos autos, a Lei 10.559/2002 prevê em seu artigo 16:
Os direitos expressos nesta Lei não excluem os conferidos por outras normas legais ou constitucionais, vedada a acumulação de quaisquer pagamentos ou benefícios ou indenização com o mesmo fundamento, facultando-se a opção mais favorável.
Da leitura do citado artigo, depreende-se que a proibição da cumulação ocorre quando a natureza jurídica das reparações é idêntica. Todavia, os fundamentos da reparação econômica e da indenização por danos morais não se confundem. A reparação econômica foi instituída para repor a perda patrimonial sofrida pelo anistiado quando destituído ou impedido de exercer seu direito ao exercício empregatício. Em toda a lei há menção à perda do "vínculo com atividade laboral" como pressuposto para seu recebimento. Essa referência torna clara a intenção do legislador em compensar o anistiado por seus danos materiais, inexistindo qualquer alusão a dano moral. Já a compensação por danos morais buscada nesta ação têm como fundamento o sofrimento pelo qual passou o anistiado. São, pois, elementos outros a serem considerados. Enquanto a reparação econômica pretende repor o patrimônio material da vítima, a compensação por danos morais busca a recomposição emocional da maneira possível.
A jurisprudência mais recente deste tribunal e também do Superior Tribunal de Justiça admite a cumulação. A título de exemplo, cita-se os seguintes acórdãos:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ANISTIADO POLÍTICO. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA OCORRIDA DURANTE O REGIME MILITAR. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. IMPRESCRITIBILIDADE DA PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. PRETENSÃO CUMULADA COM PEDIDO DE MAJORAÇÃO DA REPARAÇÃO ECONÔMICA DEFERIDA PELA COMISSÃO DE ANISTIA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. REVISÃO DE ATO ADMINISTRATIVO. APLICABILIDADE DO ARTIGO 1º DO DECRETO 20.910/32. CUMULAÇÃO DA REPARAÇÃO ECONÔMICA COM A INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO COMISSIVO: TEORIA OBJETIVA. ATO DE ESTADO, DANO E NEXO DE CAUSALIDADE. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. QUANTIFICAÇÃO DOS DANOS MORAIS E MATERIAIS. TERMO INICIAL DOS JUROS DE MORA E DA CORREÇÃO MONETÁRIA. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que a prescrição quinquenal não se aplica aos casos de reparação de danos causados por violações dos direitos fundamentais, que são imprescritíveis, notadamente em relação a fatos ocorridos na ditadura militar, quando os jurisdicionados não podiam buscar a contento suas pretensões. Todavia, a pretensão de majorar em juízo o valor deferido pela Comissão de Anistia não configura hipótese de imprescritibilidade. Nesse caso, a pretensão é de mera revisão de ato administrativo concreto com efeitos específicos, pelo que se lhe aplica o artigo 1º do Decreto 20.910/32. 2. À luz de precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é possível a cumulação da reparação econômica da Lei 10.559/2002 com indenização por danos morais, ainda que com base no mesmo episódio político. Isso porque a reparação econômica da Lei 10.559/2002 foi instituída para repor a perda patrimonial sofrida pelo anistiado quando destituído ou impedido de exercer seu direito à atividade laboral. Em toda a lei há menção à perda do "vínculo com atividade laboral" como pressuposto para seu recebimento. Essa referência torna clara a intenção do legislador em compensar o anistiado por seus danos materiais, inexistindo qualquer alusão a dano moral. 3. A condição de anistiado político do autor, reconhecida pelo Ministério da Justiça, é suficiente para caracterizar a conduta estatal antijurídica (perseguição política), o dano moral (abalo psíquico) e o nexo de causalidade, a atrair a responsabilidade civil do Estado na forma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. 4. Na quantificação do dano moral devem ser sopesadas as circunstâncias e peculiaridades do caso, as condições econômicas das partes, a menor ou maior compreensão do ilícito, a repercussão do fato e a eventual participação do ofendido para configuração do evento danoso. A indenização deve ser arbitrada em valor que se revele suficiente a desestimular a prática reiterada da prestação de serviço defeituosa e ainda evitar o enriquecimento sem causa da parte que sofre o dano. 5. Em situações nas quais ocorreu prisão prolongada, tortura física e psicológica, exílio e até morte, a jurisprudência tem fixado indenização por danos morais na faixa de R$ 100.000,00. Não tendo o autor sido preso, torturado ou exilado, inviável fixar-se a indenização em tal patamar. 6. Em caso de responsabilidade extracontratual os juros moratórios fluem a partir do evento danoso (súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça). 7. A correção monetária do valor da indenização por dano moral incide desde a data do arbitramento (súmula 362 do Superior Tribunal de Justiça). (TRF4, AC 5073992-38.2016.4.04.7100, 3ª Turma, rel.ª Des.ª Federal Vânia Hack de Almeida, juntado aos autos em 26-2-2020)
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ANISTIADO POLÍTICO. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA OCORRIDA DURANTE O REGIME MILITAR. CUMULAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO COMISSIVO: TEORIA OBJETIVA. ATO DE ESTADO, DANO E NEXO DE CAUSALIDADE: DEVER DE INDENIZAR. QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL. 1. É possível a cumulação de indenização por danos morais com as indenizações previstas na Lei nº 10559/2002, tendo em vista a diversidade de fundamentos, entendendo-se que a restrição do art. 16 da r. Lei não impede que a vítima requeira, com base no mesmo episódio político, uma compensação pecuniária pelos danos morais sofridos. 2. Considerada a responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, § 6°, da CR/88; parágrafo único do art. 927 do CCB), o requisito "culpa" é dispensado. A responsabilidade objetiva resulta, além do ato comissivo estatal, tão-só do fato danoso e do nexo causal, formando a teoria do risco administrativo. Por essa teoria, surge o dever de indenizar apenas pelo fato de o Estado exercer um tipo determinado de atividade. 3. O dano moral, à luz da Constituição de 1988, nada mais é do que uma agressão à dignidade humana, não bastando qualquer contrariedade à sua configuração. 4. Comprovada a ocorrência de eventos danosos, onde o autor é reconhecido como anistiado político, o dano moral resulta in re ipsa, isto é, não se faz necessária a prova do prejuízo, que é presumido e decorre do próprio fato. 5. No que se refere à quantificação dos danos morais, destaque-se que a lei não fixa parâmetros exatos para a valoração do quantum indenizatório, razão pela qual o juízo deve se valer do seu "prudente arbítrio", guiado pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, em análise caso a caso. 6. O valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) mostra-se adequado, razoável e atende aos propósitos do instituto do dano moral, servindo de parâmetro, aqui, a Lei nº 10.559/02, que regulamentou o artigo 8º do ADCT, que, seu artigo 4º, acerca da reparação indenizatória devida ao anistiado político, prevê que "em nenhuma hipótese o valor da reparação econômica em prestação única será superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais)." (TRF4, AC 5082898-85.2014.4.04.7100, 3ª Turma, rel. para acórdão Des. Federal Rogério Favreto, juntado aos autos em 8-7-2020)
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA OCORRIDA DURANTE O REGIME MILITAR. ACUMULAÇÃO DE REPARAÇÃO ECONÔMICA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. "A Lei 10.559/2002 proíbe a acumulação de: (I) reparação econômica em parcela única com reparação econômica em prestação continuada (art. 3º, § 1º); (II) pagamentos, benefícios ou indenizações com o mesmo fundamento, facultando-se ao anistiado político, nesta hipótese, a escolha da opção mais favorável (art. 16)" (REsp 890.930/RJ, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/5/2007, DJ 14/6/2007, p. 267.). 2. "Inexiste vedação para a acumulação da reparação econômica com indenização por danos morais, porquanto se trata de verbas indenizatórias com fundamentos e finalidades diversas: aquela visa à recomposição patrimonial (danos emergentes e lucros cessantes), ao passo que esta tem por escopo a tutela da integridade moral, expressão dos direitos da personalidade" (AgRg no REsp 1.467.148/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 5/2/2015, DJe 11/2/2015.) 3. A modificação de entendimento em uma das Turmas do STJ não afasta a possibilidade de outra discernir, mantendo o entendimento então prevalente, de modo que eventual desacordo deverá ser enfrentado por meio do recurso cabível, qual seja, os embargos de divergência, consoante dispõe o art. 266 do RISTJ. Agravo regimental improvido. (STJ, AgRg no REsp 1563216/PR, 2ª Turma, rel. Ministro Humberto Martins, DJe 14-12-2015)
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA OCORRIDA DURANTE O REGIME MILITAR. IMPRESCRITIBILIDADE. INAPLICABILIDADE DO ART. 1º DO DECRETO 20.910/1932. PRECEDENTES. ACUMULAÇÃO DE REPARAÇÃO ECONÔMICA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Não se conhece do Recurso Especial em relação à ofensa ao art. 535 do CPC quando a parte não aponta, de forma clara, o vício em que teria incorrido o acórdão impugnado. Aplicação, por analogia, da Súmula 284/STF. 2. A jurisprudência do STJ é pacificada no sentido de que a prescrição quinquenal, disposta no art. 1º do Decreto 20.910/1932, é inaplicável aos danos decorrentes de violação de direitos fundamentais, que são imprescritíveis, principalmente quando ocorreram durante o Regime Militar, época na qual os jurisdicionados não podiam deduzir a contento suas pretensões. 3. Ressalte-se que a afronta aos direitos básicos da pessoa humana, como a proteção da sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de opinião durante o Regime Militar de exceção, enseja ação de reparação ex delicto imprescritível e ostenta amparo constitucional no art. 8.º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 4. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em hipótese similar à dos autos, a inexistência de violação ao art. 97 da CF/88 quando o acórdão recorrido entendeu inaplicável o prazo prescricional estabelecido no art. 1º do Decreto 20.910/1932. 5. A Lei 10.559/2002 proíbe a acumulação de: a) reparação econômica em parcela única com reparação econômica em prestação continuada (art. 3º, § 1º); b) pagamentos, benefícios ou indenizações com o mesmo fundamento, facultando-se ao anistiado político, nesta hipótese, a escolha da opção mais favorável (art. 16). 6. Inexiste vedação para a acumulação da reparação econômica com indenização por danos morais, porquanto se trata de verbas indenizatórias com fundamentos e finalidades diversas: aquela visa à recomposição patrimonial (danos emergentes e lucros cessantes), ao passo que esta tem por escopo a tutela da integridade moral, expressão dos direitos da personalidade. 7. Não compete ao STJ, em julgamento de Recurso Especial e para fins de prequestionamento, apreciar alegação de afronta a dispositivos constitucionais, sob pena de usurpação da competência do STF (art.102, III, da CF/1988). 8. Agravo Regimental não provido. (STJ, AgRg no REsp 1467148/SP, 2ª Turma, rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 11-2-2015)
Por sua vez, o enunciado nº 624 da súmula da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou essa posição:
É possível cumular a indenização do dano moral com a reparação econômica da Lei n. 10.559/2002 (Lei da Anistia Política).
Viável, assim, a cumulação do pleito indenizatório por danos morais com a reparação econômica de que trata a Lei 10.559/2002, razão pela qual a sentença recorrida merece reforma neste particular.
Avança-se para examinar o caso concreto.
Caso Concreto
Orlando Pedro Michelli foi anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 21 de maio de 2007 (evento 1, PROCADM7, p. 87), tendo recebido R$ 100.000,00 a título reparatório por 20 anos de perseguição política, cujo lapso temporal foi situado entre 1º de janeiro de 1968 e 1º de janeiro de 1988.
A já admitida condição de anistiado de Orlando é suficiente para caracterizar tanto a conduta estatal antijurídica (perseguição política) como o dano moral (abalo psíquico) e, ainda, o nexo de causalidade. Por essa razão, merece ser deferida a compensação por danos morais decorrentes de agressão direta à dignidade do apelante por motivação exclusivamente política. Os danos morais, nesse caso, são considerados in re ipsa, a dispensar a prova do prejuízo conforme precedente que segue:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ANISTIADO POLÍTICO. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA OCORRIDA DURANTE O REGIME MILITAR. IMPRESCRITIBILIDADE. INAPLICABILIDADE DO ART. 1º DO DECRETO 20.910/1932. PRECEDENTES. CUMULAÇÃO DA REPARAÇÃO ECONÔMICA COM A INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS: POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO COMISSIVO: TEORIA OBJETIVA. ATO DE ESTADO, DANO E NEXO DE CAUSALIDADE: DEVER DE INDENIZAR. QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL. JULGAMENTO NA FORMA DO ART. 942 DO CPC. 1. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que a prescrição quinquenal não se aplica aos casos de reparação de danos causados por violações dos direitos fundamentais que são imprescritíveis, notadamente em relação a fatos ocorridos na Ditadura Militar, quando os jurisdicionados não podiam buscar a contento suas pretensões. 2. À luz de precedentes recentes do Colendo STJ e também do TRF4, é possível a cumulação de valor recebido a título de reparação econômica - decorrente da aplicabilidade da Lei n° 10.559/02 (Lei de Anistia) - com valor decorrente de indenização por danos morais, ainda que com base no mesmo episódio político, não se aplicando o disposto no art. 1° do Decreto n° 20.910/32. 3. A reparação econômica (Lei n° 10.559/02) foi instituída para repor a perda patrimonial sofrida pelo anistiado quando destituído ou impedido de exercer seu direito à atividade laboral. Em toda a lei há menção à perda do "vínculo com atividade laboral" como pressuposto para seu recebimento. Essa referência torna clara a intenção do legislador em compensar o anistiado por seus danos materiais, inexistindo qualquer alusão a dano moral. 4. Considerada a responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, § 6°, da CR/88; parágrafo único do art. 927 do CCB), o requisito "culpa" é dispensado. A responsabilidade objetiva resulta, além do ato comissivo estatal, tão-só do fato danoso e do nexo causal, formando a teoria do risco administrativo. Por essa teoria, surge o dever de indenizar apenas pelo fato de o Estado exercer um tipo determinado de atividade. 5. O dano moral, à luz da Constituição de 1988, nada mais é do que uma agressão à dignidade humana, não bastando qualquer contrariedade à sua configuração. 6. Mantida a sentença pelos seus próprios fundamentos, considerada a ocorrência de ato comissivo gerador dos danos narrados na inicial. 7. Comprovada a ocorrência de eventos danosos, onde o autor é reconhecido como anistiado político, o dano moral resulta in re ipsa, isto é, não se faz necessária a prova do prejuízo, que é presumido e decorre do próprio fato. 8. Na quantificação do dano moral devem ser sopesadas as circunstâncias e peculiaridades do caso, as condições econômicas das partes, a menor ou maior compreensão do ilícito, a repercussão do fato e a eventual participação do ofendido para configuração do evento danoso. A indenização deve ser arbitrada em valor que se revele suficiente a desestimular a prática reiterada da prestação de serviço defeituosa e ainda evitar o enriquecimento sem causa da parte que sofre o dano. 9. O valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) mostra-se adequado, razoável e atende aos propósitos do instituto do dano moral, servindo de parâmetro, aqui, a Lei nº 10.559/02, que regulamentou o artigo 8º do ADCT, que, seu artigo 4º, acerca da reparação indenizatória devida ao anistiado político, prevê que "em nenhuma hipótese o valor da reparação econômica em prestação única será superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais)." 10. Julgamento na forma do disposto no art. 942 do CPC (Turma ampliada). (TRF4, AC 5002781-58.2015.4.04.7105, 3ª Turma, rel. para acórdão Des. Federal Rogério Favreto, juntado aos autos em 20-11-2017)
Reconhecido o direito do recorrente à compensação pelos danos morais experimentados, cumpre valorar tais danos.
Quantificação dos Danos Morais
A lei não fixa parâmetros exatos para valorar os danos morais, de modo que o juízo deve guiar-se pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, em análise caso a caso. O artigo 944 do Código Civil alude à extensão do dano e à proporcionalidade entre a gravidade da culpa e o dano para definir como seria uma condenação adequada:
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.
A indenização deve representar uma compensação ao lesado diante da impossibilidade de recomposição exata da situação na qual se encontrava anteriormente ao dano, alcançando-lhe ao menos uma forma de ver diminuídas suas aflições. Deve-se buscar o equilíbrio entre a prevenção de novas práticas lesivas à moral e as condições econômicas dos envolvidos.
A propósito os seguintes acórdãos do Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO EMPRESARIAL. DANO MORAL. DIVULGAÇÃO AO MERCADO, POR PESSOA JURÍDICA, DE INFORMAÇÕES DESABONADORAS A RESPEITO DE SUA CONCORRENTE. COMPROVADOS DANOS DE IMAGEM CAUSADOS À EMPRESA LESADA. DANO MORAL CONFIGURADO. FIXAÇÃO EM PATAMAR ADEQUADO PELO TRIBUNAL A QUO. MANUTENÇÃO. - Para estabelecer a indenização por dano moral, deve o julgador atender a certos critérios, tais como nível cultural do causador do dano; condição sócio-econômica do ofensor e do ofendido; intensidade do dolo ou grau da culpa do autor da ofensa; efeitos do dano, inclusive no que diz respeito às repercussões do fato. - Na hipótese em que se divulga ao mercado informação desabonadora a respeito de empresa-concorrente, gerando-se desconfiança geral da clientela, agrava-se a culpa do causador do dano, que resta beneficiado pela lesão que ele próprio provocou. Isso justifica o aumento da indenização fixada, de modo a incrementar o seu caráter pedagógico, prevenindo-se a repetição da conduta. - O montante fixado pelo Tribunal 'a quo', em R$ 400.000,00, mostra-se adequado e não merece revisão. - Recurso especial não conhecido. (REsp 88363/RS, 3ª Turma, rel.ª Ministra Nancy Andrighi, DJe 18-2-2009)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. DEVOLUÇÃO INDEVIDA DE CHEQUE. DANO MORAL CARACTERIZADO. 1. A jurisprudência desta Corte tem entendimento firmado no sentido de que a instituição bancária tem o dever de reparação dos danos morais pela devolução de cheque, sem justa causa, nos termos do enunciado 388 desta Corte Superior que estabelece: "A simples devolução indevida de cheque caracteriza dano moral." 2. O arbitramento do valor da compensação por danos morais foi realizado pelas instâncias ordinárias com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível sócio-econômico do recorrido e, ainda, ao porte econômico do recorrente, orientando-se pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade. A revisão desse valor demandaria o reexame de fatos e provas. Incidência da Súmula 7/STJ. 3. Agravo regimental não provido. (REsp. 1085084/MG, 4ª Turma, rel. Ministro Luís Felipe Salomão, DJe 16-8-2011)
No caso vertente, consta na decisão da Comissão de Anistia que em 1968 Orlando, então tesoureiro da União Gaúcha de Estudantes Secundários (UGES), respondia a inquérito no DOPS gaúcho por "agitar" o meio estudantil no município de Tapejara/RS. Entre 1968 e 1969, ele participou do XXI Congresso da UGES em Santa Rosa/RS na condição de dirigente encarregado das finanças da entidade. Orlando também integrava a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares e mantinha ligações com pessoas da Territorial de Caxias do Sul/RS, tendo militado até 1970 no referido movimento. Em 18 de abril daquele ano, foi detido por ter seu nome na lista de pessoas subversivas, vindo a ser liberado em 8 de julho. Seu nome foi citado em inquéritos policiais militares, e houve indiciamento por infringir artigos da Lei de Segurança Nacional. Em 1977 Orlando foi considerado pertencente ao "Grupo dos Onze". Em 1979, o perseguido integrava um sindicato em Caxias do Sul. Alguns anos depois, em 1985, assumiu posição de líder sindical, ao mesmo tempo em que ocupava cargo no Partido Comunista. Até o final da década de 1980 esteve ligado a sindicatos, tendo sido identificado por pessoas infiltradas nessas organizações. Como se observa, foram duas décadas de perseguição impostas a Orlando, que as viveu sob liberdade vigiada.
No âmbito estadual a Comissão Especial instituída pela Lei 11.042/97 chegou à mesma conclusão: Orlando foi perseguido, preso e, enquanto privado de sua liberdade, torturado. Ao requisitar a reparação, o recorrente declinou os períodos em que esteve preso: em maio de 1968 (sem especificar os dias); de 8 a 9 de maio de 1970; e de 10 de maio a 13 de julho de 1970 (evento 1, PROCADM7, p. 22). Em realidade, constatou-se que ele foi posto em liberdade em 8 de julho de 1970, e não no dia 13 daquele mês (evento PROCADM7, p. 30). As datas das prisões serão melhor declinadas quando da análise do último tópico deste julgamento, a respeito do cômputo do tempo de perseguição para fins previdenciários. Por ora, importa dizer que o anistiado recebeu indenização no valor de R$ 30.000,00 do Estado do Rio Grande do Sul em julgamento ocorrido em 1999 (evento 1, PROCADM7, p. 64).
Portanto, o relato da inicial encontra albergue nos elementos de convicção. As circunstâncias do agir estatal arbitrário e repulsivo são merecedoras de total reproche pelo Poder Judiciário. A odiosa violação aos direitos fundamentais de Orlando deve ser reparada no patamar máximo deferido pela jurisprudência em casos similares. Em situações penosas como a dos autos, nas quais ocorreu prisão prolongada, tortura física e psicológica, exílio e até morte, a jurisprudência tem fixado a indenização por danos morais na faixa de R$ 100.000,00. Por ilustrativo, menciona-se os seguintes julgados: TRF3, APELREEX 00198228120034036100, 3ª Turma, rel. Juiz Federal Souza Ribeiro, e-DJF3 18-10-2010; TRF2, AC 200202010103306, 6ª Turma, rel. Des. Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama, DJU 13-1-2010; STJ, REsp. 200801966930, 1ª Turma, rel. Ministro Luiz Fux, DJE 9-10-2009.
A gravidade da situação vivenciada pelo recorrente é inquestionável. Viver anos sob vigilância depois de preso sem mandado judicial e torturado por razões exclusivamente políticas afronta os direitos mais básicos do ser-humano, pelos quais qualquer nação que se pretenda civilizada deve zelar com extremo rigor. Infelizmente, o Brasil suportou por mais de duas décadas um sinistro regime cujos custos são sentidos até hoje pela sociedade brasileira. Vidas foram abreviadas, talentos foram apagados e direitos fundamentais suprimidos. Retrocessos ocorreram, notadamente quanto aos direitos políticos. A garantia do habeas corpus para crimes políticos foi suspensa, ficando os cidadãos indefesos nas mãos dos agentes de segurança. Lares foram violados, pessoas foram presas sem ordem de autoridade judiciária e mantidas incomunicáveis sem direito a defesa, enquanto torturas eram cometidas com o uso de métodos bárbaros que não raro levavam os presos à morte. Liberdade de pensamento não existia: a censura ditava o que podia ser publicado/veiculado e tanto a mídia como a classe artística foram sistematicamente reprimidas naqueles longos anos de regime de exceção. Nas universidade, professores foram cassados ou forçados a se aposentar e manifestações estudantis eram violentamente reprimidas. Nem mesmo o Poder Judiciário, que devia em tese garantir os direitos civis, escapou: ministros do Supremo Tribunal foram aposentados ou tiveram seus direitos políticos cassados; aqueles que permaneceram na ativa nem sempre honraram a instituição, pois houve colaboração com o arbítrio.
Por todo o contexto delineado nestes autos, e em paralelismo com o montante fixado na esfera administrativa, que observou o teto previsto na Lei 10.559/2002, a compensação por danos morais deve ser fixada também em R$ 100.000,00 (cem mil reais), valor que atende a critérios de moderação e prudência para que a repercussão econômica da indenização repare o dano sem enriquecer indevidamente a parte lesada, servindo para compensar de forma adequada os danos extrapatrimoniais sofridos por Orlando em decorrência da perseguição política.
Por essas razões, acolhe-se em parte o pleito recursal, lembrando que a pretensão do recorrente era obter compensação no patamar de R$ 200.000,00.
Convém recordar que o valor será corrigido desde a data do arbitramento (isto é, desde a data do acórdão em segundo grau), conforme dispõe o enunciado nº 362 da súmula da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, bem como será acrescido de juros de mora a contar do evento danoso, que coincide com a data do início da violência estatal cometida contra Orlando (1º de janeiro de 1968), a teor do enunciado nº 54 do mesmo tribunal.
Sem mais, fixa-se os consectários da condenação.
Juros Moratórios e Correção Monetária
De início, importa esclarecer que a correção monetária e os juros de mora, sendo consectários da condenação principal, possuem natureza de ordem pública e podem ser analisados até mesmo de ofício. Assim, sua alteração não implica falar em reformatio in pejus.
Em 3-10-2019, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 870.947 (Tema nº 810), em regime de repercussão geral, rejeitando-os e não modulando os efeitos do julgamento proferido em 20/09/2017.
Com isso, ficou mantido o seguinte entendimento:
1. No tocante às condenações oriundas de relação jurídica não-tributária, a fixação dos juros moratórios idênticos aos juros aplicados à caderneta de poupança é constitucional, permanecendo hígido, nesta extensão, o disposto no artigo 1º-F da Lei 9.494/1997 com a redação dada pela Lei 11.960/2009.
2. O artigo 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação dada pela Lei 11.960/2009, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, artigo 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina, devendo incidir o IPCA-E, considerado mais adequado para recompor a perda do poder de compra.
Por fim, saliente-se que a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da Emenda nº 62/2009 nas ADIs nºs 4.357 e 4.425 aplica-se exclusivamente aos precatórios expedidos ou pagos até a data da mencionada manifestação judicial, não sendo o caso dos autos, em que se trata de fase anterior à atualização dos precatórios.
Portanto, de ofício, afasta-se a aplicação do artigo 1º-F da Lei 9.494/97, com a redação dada pela Lei 11.960/2009, com relação à correção monetária, determinando-se a incidência do IPCA-E.
Cômputo do Tempo de Perseguição Política para Fins Previdenciários
Inicialmente, anote-se que, conforme o artigo 4º, § 5º1, do Regimento Interno deste Tribunal Regional Federal, havendo cumulação de pedidos, prevalecerá o principal. No caso concreto, evidentemente que o pedido principal é o de condenação da União em danos morais. Trata-se de cumulação própria simples, em que ambos os pedidos são autônomos, isto é, não guardam entre si um vínculo de precedência lógica; ou seja, o acolhimento de um não pressupõe necessariamente o acolhimento do anterior. Cada qual pode ser acolhido, total ou parcialmente, ou rejeitado, sem que se perquira o resultado do julgamento do outro.
A observação é necessária para firmar a competência da 3ª Seção para a análise da questão do aproveitamento do tempo de perseguição política junto ao Regime Geral de Previdência Social.
Pois bem.
Havendo prova da condição de anistiado do apelante, deve incidir o artigo 1º, inciso III, da Lei 10.559/2002, que assim dispõe:
Art. 1º O Regime do Anistiado Político compreende os seguintes direitos:
(...)
III - contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias;
(...)
A inicial limitou-se a requerer fosse "declarada a contagem do período em que esteve [o apelante] compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou fundada ameaça de punição, por razões exclusivamente políticas, como computo para tempo de contribuição no âmbito do Regime Geral da Previdência Social – RGPS" (evento 1, INIC1, p. 17). A petição não descreve em que períodos ocorreram afastamentos laborais.
Na peça que inaugurou o processo administrativo junto à Comissão de Anistia o pedido foi especificado, pelo menos no tocante aos períodos, embora também careça de maiores detalhamentos. O que se extrai de relevante é a seguinte passagem, tirada das páginas 5 e 6 do arquivo PROCADM7 do evento 1:
Postula, outrossim, a contagem como tempo de serviço o período em que foi perseguido, especificamente de 1966, 1967, até agosto de 1968; de agosto a novembro de 1969; julho/71; setembro e outubro/71; de dezembro de 1971 a fevereiro de 1972; de julho a novembro de 1972 e de março a novembro de 1973, conforme permitido pelo art. 1º, III da Lei 10.559/2002.
Não houve manifestação da Comissão de Anistia a respeito desse pleito, nem a parte recorreu solicitando que a lacuna fosse suprida, razão pela qual passa-se ao exame da postulação nestes autos.
Partindo-se da premissa de que Orlando declarou que esteve preso em maio de 1968, de 8 a 9 de maio de 1970 e de 10 de maio a 8 de julho de 1970, bem assim que a inicial relata que as perseguições começaram em 1968, rejeita-se de plano o requerimento no tocante ao ano de 1966 e ao interregno de 1967 até agosto de 1968. Nenhuma menção é feita aos anos de 1966 e 1967 que diga respeito à militância política do apelante. Observa-se que de março a dezembro de 1966 ele laborou como torneiro mecânico na Bethal S/A (evento 1, PROCADM7, p. 13), ao passo que o próximo vínculo laboral registrado no INSS data de 9 de agosto de 1968, junto ao Ginásio Industrial do Abrigo de Menores São José (evento 1, PROCADM7, p. 14), o qual perdurou até 28 de fevereiro de 1969.
Necessário que houvesse demonstração de que ocorrera uma ruptura das atividades laborais em período próximo ao início das perseguições, como consequência direta da ação estatal, o que não ocorre com relação a tais períodos. Mesmo a prisão em maio de 1968 não tem o efeito de indiciar essa ruptura, já que desde dezembro de 1966 Orlando não exercia atividade laboral, de modo que nada garante estivesse ele laborando em maio de 1968 acaso não sofresse a privação da liberdade.
De agosto a novembro de 1969 tem-se um pequeno intervalo entre os labores desempenhados na Indústria Metalúrgica Tomasi Ltda. (finalizado em 18-8-1969) e no Clube Juvenil (iniciado em 15-11-1969). Pela mesma razão acima, não há comprovação suficiente de que o apelante deixou de laborar entre tais datas em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição por motivo exclusivamente político.
De 10 de maio a 13 de julho de 1970 Orlando afirmou que esteve preso. Consta registrado vínculo laboral com o Instituto de Educação Santo Agostinho de 15-3-1970 a 30-6-1970, que em parte é dúplice com outro labor, o de professor, exercido junto à Comissão Municipal de Amparo à Infância de 30-4-1970 a 30-6-1971 (a bem da verdade, consta um terceiro e breve vínculo concomitante de 1º-6-1971 a 30-6-1971, na função d einstrutor do Ginásio Industrial do Abrigo de Menores São José). Em julho de 1971 Orlando não estava preso e não há detalhamentos acerca dos motivos do encerramento do vínculo de trabalho. Que tipo de perseguição teria motivado o encerramento dos labores? Os autos não respondem. Mas é digno de nota que três vínculos laborais foram encerrados em 30-6-1971, até que novo emprego fosse por ele assumido em 1º de agosto daquele ano (evento 1, PROCADM7, p. 16). Aqui pode-se cogitar de uma ruptura. Não é normal que três trabalhos sejam encerrados na mesma data, ao mesmo tempo. Uma vez que já haviam iniciado as perseguições, afigura-se verossimilhante a tese de que em meados de 1971 o autor estava a viver parte de seus dias na clandestinidade, "pulando" de um emprego a outro sem que conseguisse se estabelecer, e fugindo caso sentisse que estava em vias de ser capturado.
Portanto, é razoável compreender que o encerramento dos três vínculos acima decorreram de perseguição política, de maneira que vai deferido o pedido para que haja o cômputo do interstício de 1º-7-1971 até 31-7-1971 para fins previdenciários.
No mesmo sentido:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. TEMPO URBANO. ANISTIADOS. REQUISITOS CUMPRIDOS. AVERBAÇÃO. 1. Hoje os benefícios dos anistiados estão sob a égide da Lei nº 10.559/02, que expressamente assegura a contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias. 2. Implementados os requisitos, a parte autora tem direito a concessão da aposentadoria por tempo de serviço/contribuição integral. (TRF4 5030747-16.2012.4.04.7100, 6ª Turma, rel.ª Des.ª Federal Vânia Hack de Almeida, juntado aos autos em 31-3-2017)
Quanto aos demais períodos (setembro e outubro de 1971, de dezembro de 1971 a fevereiro de 1972, de julho a novembro de 1972 e de março a novembro de 1973), não é possível aplicar o mesmo raciocínio. O que se vê é que nestas épocas Orlando iniciou vários vínculos de trabalho com o Ginásio Industrial do Abrigo de Menores São José e os encerrou em intervalos regulares de um mês. Laborou na instituição em agosto de 1971, mas não em setembro e outubro; retornou em novembro, mas não laborou em dezembro, janeiro e fevereiro de 1972; retornou em abril de 1972, permanecendo vinculado até 30-6-1972. Estivesse ele sob perseguição, voltaria sempre para o mesmo emprego? Não há elementos nos autos que expliquem esses intervalos. Nem o que ocorreu depois: Orlando deixou de trabalhar até dezembro de 1972 em razão das perseguições ou houve outros motivos? Os autos também não respondem a essa questão.
Assim, o pleito é parcialmente procedente para que unicamente o mês de julho de 1971 seja computado junto ao RGPS. Quanto aos demais, indefere-se a pretensão.
Honorários Advocatícios e Custas
Reformada a sentença, e tendo o apelante decaído de parte mínima do pedido, a União deverá arcar com as despesas processuais (artigo 86, parágrafo único).
Considerando a natureza da causa e tendo presente que o valor da condenação talvez não exceda a 200 salários mínimos, fixa-se os honorários advocatícios, a serem suportados pela União, em 10% sobre o valor da condenação, nos termos do artigo 85, §§ 2º e 3º, inciso I, do Código de Processo Civil.
Consoante determina o § 5º do referido artigo, na eventualidade de a condenação superar o limite de 200 salários mínimos, a verba honorária deverá observar os percentuais mínimos previstos nos incisos II a V do § 3º, conforme a graduação do proveito econômico obtido.
Tendo em conta a inversão da sucumbência, inaplicável a majoração recursal prevista no § 11 do artigo 85 do Código de Processo Civil de 2015, pois tal acréscimo só é permitido sobre verba anteriormente fixada, consoante decidiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgInt no AResp nº 829.107.
A União é isenta de custas, mas deverá ressarcir eventuais custas adiantadas pelo recorrente, conforme dispõe o artigo 4º, parágrafo único, da Lei 9.289/96.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por dar parcial provimento à apelação para reformar a sentença e condenar a União ao pagamento, em favor do recorrente, de uma compensação por danos morais no valor de R$ 100.000,00, o qual deverá ser corrigido desde a data do arbitramento e acrescido de juros de mora a contar do evento danoso conforme os critérios fixados na fundamentação, bem como determinar o cômputo do período de 1º-7-1971 até 31-7-1971 junto ao RGPS, invertidos os ônus da sucumbência.
Documento eletrônico assinado por VÂNIA HACK DE ALMEIDA, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40003198211v49 e do código CRC aa21890f.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): VÂNIA HACK DE ALMEIDA
Data e Hora: 14/6/2022, às 17:41:36
Conferência de autenticidade emitida em 13/10/2022 16:01:44.
Apelação Cível Nº 5066674-62.2020.4.04.7100/RS
RELATORA: Desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA
APELANTE: ORLANDO PEDRO MICHELLI (AUTOR)
ADVOGADO: THAYNA TEIXEIRA MORAIS (OAB RS102874)
ADVOGADO: JOSE VECCHIO FILHO (OAB RS031437)
ADVOGADO: STEFAN GUIMARAES EMERIM (OAB RS080361)
ADVOGADO: BRUNO SCHINEIDER KLEMENT (OAB RS122035)
APELADO: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)
EMENTA
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ANISTIADO POLÍTICO. COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. CUMULAÇÃO COM A REPARAÇÃO ECONÔMICA. VALOR DA INDENIZAÇÃO. CÔMPUTO DO TEMPO DE AFASTAMENTO DAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS.
1. É possível a cumulação da reparação econômica da Lei 10.559/2002 com indenização por danos morais, ainda que com base no mesmo episódio político.
2. Caracterizados a conduta estatal antijurídica (perseguição política consubstanciada em prisão, tortura e vigilância da vida do cidadão por motivos exclusivamente políticos), o dano moral (abalo psíquico) e o nexo de causalidade, a parte autora tem direito à indenização pelos danos morais sofridos.
3. Em situações penosas como a dos autos, nas quais ocorreu prisão prolongada, tortura física e psicológica, exílio e até morte, a jurisprudência tem fixado a indenização por danos morais na faixa de R$ 100.000,00.
4. O artigo 1º, inciso III, da Lei 10.559/2002, prevê que regime do anistiado político compreende o direito à contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação para reformar a sentença e condenar a União ao pagamento, em favor do recorrente, de uma compensação por danos morais no valor de R$ 100.000,00, o qual deverá ser corrigido desde a data do arbitramento e acrescido de juros de mora a contar do evento danoso conforme os critérios fixados na fundamentação, bem como determinar o cômputo do período de 1º-7-1971 até 31-7-1971 junto ao RGPS, invertidos os ônus da sucumbência, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 14 de junho de 2022.
Documento eletrônico assinado por VÂNIA HACK DE ALMEIDA, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40003198212v5 e do código CRC 5739245e.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): VÂNIA HACK DE ALMEIDA
Data e Hora: 14/6/2022, às 17:41:36
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EXTRATO DE ATA DA SESSÃO TELEPRESENCIAL DE 14/06/2022
Apelação Cível Nº 5066674-62.2020.4.04.7100/RS
RELATORA: Desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA
PRESIDENTE: Desembargador Federal ROGERIO FAVRETO
PROCURADOR(A): PAULO GILBERTO COGO LEIVAS
SUSTENTAÇÃO ORAL POR VIDEOCONFERÊNCIA: THAYNA TEIXEIRA MORAIS por ORLANDO PEDRO MICHELLI
APELANTE: ORLANDO PEDRO MICHELLI (AUTOR)
ADVOGADO: THAYNA TEIXEIRA MORAIS (OAB RS102874)
ADVOGADO: JOSE VECCHIO FILHO (OAB RS031437)
ADVOGADO: STEFAN GUIMARAES EMERIM (OAB RS080361)
ADVOGADO: BRUNO SCHINEIDER KLEMENT (OAB RS122035)
APELADO: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (RÉU)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Telepresencial do dia 14/06/2022, na sequência 372, disponibilizada no DE de 01/06/2022.
Certifico que a 3ª Turma, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:
A 3ª TURMA DECIDIU, POR UNANIMIDADE, DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO PARA REFORMAR A SENTENÇA E CONDENAR A UNIÃO AO PAGAMENTO, EM FAVOR DO RECORRENTE, DE UMA COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS NO VALOR DE R$ 100.000,00, O QUAL DEVERÁ SER CORRIGIDO DESDE A DATA DO ARBITRAMENTO E ACRESCIDO DE JUROS DE MORA A CONTAR DO EVENTO DANOSO CONFORME OS CRITÉRIOS FIXADOS NA FUNDAMENTAÇÃO, BEM COMO DETERMINAR O CÔMPUTO DO PERÍODO DE 1º-7-1971 ATÉ 31-7-1971 JUNTO AO RGPS, INVERTIDOS OS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. APRESENTOU RESSALVA DE ENTENDIMENTO A DESEMBARGADORA FEDERAL MARGA INGE BARTH TESSLER.
RELATORA DO ACÓRDÃO: Desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA
Votante: Desembargadora Federal VÂNIA HACK DE ALMEIDA
Votante: Desembargadora Federal MARGA INGE BARTH TESSLER
Votante: Desembargador Federal ROGERIO FAVRETO
GILBERTO FLORES DO NASCIMENTO
Secretário
MANIFESTAÇÕES DOS MAGISTRADOS VOTANTES
Ressalva - GAB. 32 (Des. Federal MARGA INGE BARTH TESSLER) - Desembargadora Federal MARGA INGE BARTH TESSLER.
Acompanho a E. Relatora com ressalvas. Pretende danos morais por perseguição política, prisão, torturas, e que seja computado tempo de serviço como contribuição pecuniária durante o período da perseguição. Foi integrante do VAR Palmares, além de tesoureiro da UGES. Levado à Ilha do Presídio e torturado. Há elementos indiciários fortes de comprovação.
Conferência de autenticidade emitida em 13/10/2022 16:01:44.