Experimente agora!
VoltarHome/Jurisprudência Previdenciária

PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE JUSTIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA. INÍCIO DE PROVA MATERIAL DO LABOR EM REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. NECESSIDADE ...

Data da publicação: 03/07/2024, 11:02:38

EMENTA: PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE JUSTIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA. INÍCIO DE PROVA MATERIAL DO LABOR EM REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO. REABERTURA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO. 1. Mostra-se abusiva a conduta da autoridade impetrada, que deixou de proceder à justificação administrativa, embora o segurado a tenha solicitado, apresentando início de prova material relativo ao período cujo reconhecimento postula, mormente tendo em vista que tal procedimento não implica reconhecimento do interregno pleiteado, mas serve de subsídio para análise do pedido de concessão de benefício previdenciário, possibilitando a prolação de decisão devidamente fundamentada e motivada (art. 50, caput e § 1.º, da Lei n.º 9.784/99). 2. No caso, o procedimento se revela como medida fundamental para que o processo administrativo alcance o seu objetivo primordial de realização da justiça com a concessão do amparo previdenciário devido, notadamente ao se considerar o caráter social dos direitos em discussão e em observância aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (arts. 2.º, caput, da Lei n.º 9.784/99 e art. 5.º, inciso LV, da Constituição Federal). 3. No julgamento do Tema 532, o Superior Tribunal de Justiça fixou tese no sentido de que: "O trabalho urbano de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais, devendo ser averiguada a dispensabilidade do trabalho rural para a subsistência do grupo familiar, incumbência esta das instâncias ordinárias (Súmula 7/STJ)" (REsp 1304479/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2012, DJe 19/12/2012). 3.1 Assim, não se pode subtrair da parte impetrante a possibilidade da prova de que o labor rural desempenhado era indispensável à sobrevivência do grupo familiar, na forma do art. 11, § 1º, da Lei nº 8.213/91, ainda que algum outro membro da família tenha exercido atividade urbana. 3.2 Ademais, o adjutório da parte autora à economia familiar não pode ser considerado apenas em função dos valores auferidos com a produção agrícola, mas sim a partir da perspectiva de gênero e de uma análise mais ampla, que leva em consideração a fundamentalidade do papel da trabalhadora rural para viabilizar o próprio trabalho do cônjuge. 3.3 Não se pode olvidar, ademais, da carga laboral extra que é social e automaticamente atribuída às mulheres, referente ao trabalho de "cuidado", e que envolve as mais diversas responsabilidades domésticas. Sobre o tema da "economia do cuidado", destaco a famosa frase atribuída à autora italiana Silvia Federici: "Isso que chamam de amor nós chamamos de trabalho não pago", a qual deve conduzir todos nós à reflexão. Trata-se, com efeito, de atividades (verdadeiro labor) essenciais para o gerenciamento da unidade familiar e que ganham relevo ímpar no meio rural diante da precariedade das condições sociais que o caracterizam, de forma que não podem ser ignoradas pelo julgador, o qual deve levar a perspectiva de gênero em consideração. 3.4 Julgamento conforme diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ; art. 7º, inciso XX, da Constituição Federal; e Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002). 4. Determinada a reabertura do processo administrativo para possibilitar a realização de justificação administrativa a fim de se possibilitar a análise do mérito do requerimento. (TRF4, AC 5020031-51.2022.4.04.7205, NONA TURMA, Relator PAULO AFONSO BRUM VAZ, juntado aos autos em 25/06/2024)

Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Apelação Cível Nº 5020031-51.2022.4.04.7205/SC

RELATOR: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ

APELANTE: ANALORES PEREIRA (IMPETRANTE)

APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS (INTERESSADO)

RELATÓRIO

Trata-se de apelação cível interposta em face de sentença, publicada em 10/02/2023, que denegou a segurança, nas seguintes letras (ev. 25.1):

Ante o exposto, denego a segurança e julgo improcedentes os pedidos.

Sem condenação em honorários advocatícios em sede de mandado de segurança (art. 25 da Lei 12.016/2009 e Súmulas 512 do STF e 105 do STJ).

Custas pela parte impetrante, devendo-se observar a suspensão da sua exigibilidade em decorrência da gratuidade judiciária concedida.

Publicada e registrada eletronicamente. Intimem-se.

Caso seja interposta apelação, intime-se a parte adversa para contrarrazoá-la, no prazo legal, e, após, remetam-se os autos ao Tribunal Regional Federal 4ª Região.

Oportunamente, arquivem-se.

Em suas razões recursais, a parte impetrante almeja, em síntese, a reforma da sentença para que seja concedida a segurança, com a reabertura do processo administrativo e realização de justificação administrativa em relação ao período rural de 01/04/1980 a 25/06/1995 (ev. 37.1).

Contrarrazões no ev. 41.1.

Subiram os autos a esta Corte.

Manifestação da Procuradoria Regional da República da 4ª Região no ev. 5.1, sem adentrar no mérito da controvérsia.

Vieram conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTO

1. Do mérito da controvérsia

O mandado de segurança é remédio constitucional voltado à proteção de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça (art. 1.º, caput, da Lei n.º 12.016/09 e art. 5.º, inciso LXIX, da Constituição Federal).

Por direito líquido e certo, tem-se aquele que pode ser demonstrado de plano, notadamente por meio de documentos, que devem acompanhar a petição inicial do mandamus. Tais elementos devem ser suficientes para a verificação da "inquestionabilidade de sua existência, na precisa definição de sua extensão e aptidão para ser exercido no momento da impetração" (BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional [e-book]. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 1142-1144).

No caso dos autos, a parte impetrante busca a reabertura do processo administrativo que resultou no indeferimento do seu pedido de aposentadoria, sob o fundamento de que a decisão indeferitória não se mostrou devidamente motivada e fundamentada (art. 50, caput e § 1.º, da Lei n.º 9.784/99), além de não terem sidos observados os princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (art. 2.º, caput, da Lei n.º 9.784/99 e art. 5.º, inciso LV, da Constituição Federal).

O art. 2.º, caput, da Lei n.º 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, reforça que a Administração Pública deverá observar os princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

A mesma lei, em seu art. 50, estabelece que os atos administrativos que neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses devem ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos. Conforme § 1.º, do mencionado artigo, "A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato".

No ponto, ressalto que a motivação confere maior legitimidade à própria atuação estatal, tolhendo a arbitrariedade administrativa e possibilitando o controle judicial e social do ato.

Além disso, o comando constitucional previsto no art. 5º, LV, da CF, assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, em valorização do devido processo legal. No mesmo sentido é o caput do art. 2º da Lei nº 9.784/99, que exige a observância do contraditório e da ampla defesa quando do trâmite dos processos administrativos no âmbito federal.

Pois bem.

Em relação ao instituto da justificação administrativa, o § 3.º, do art. 55, da Lei n.º 8.213/91, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, estabelece:

Art. 55. O tempo de serviço será comprovado na forma estabelecida no Regulamento, compreendendo, além do correspondente às atividades de qualquer das categorias de segurados de que trata o art. 11 desta Lei, mesmo que anterior à perda da qualidade de segurado:

(...)

§ 3º A comprovação do tempo de serviço para os efeitos desta Lei, inclusive mediante justificação administrativa ou judicial, conforme o disposto no art. 108, só produzirá efeito quando baseada em início de prova material, não sendo admitida prova exclusivamente testemunhal, salvo na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, conforme disposto no Regulamento.

O art. 108 da referida norma, por sua vez, prevê:

Art. 108. Mediante justificação processada perante a Previdência Social, observado o disposto no § 3º do art. 55 e na forma estabelecida no Regulamento, poderá ser suprida a falta de documento ou provado ato do interesse de beneficiário ou empresa, salvo no que se refere a registro público.

No mesmo sentido, os arts. 143 e 151, do Decreto n.º 3.048/99, que aprova o Regulamento da Previdência Social, restam redigidos nos seguintes termos:

Art. 143. A justificação administrativa ou judicial, para fins de comprovação de tempo de contribuição, dependência econômica, identidade e relação de parentesco, somente produzirá efeito quando for baseada em início de prova material contemporânea dos fatos e não serão admitidas as provas exclusivamente testemunhais.

Art. 151. Somente será admitido o processamento de justificação administrativa quando necessário para corroborar o início de prova material apto a demonstrar a plausibilidade do que se pretende comprovar.

Os dispositivos transcritos indicam, em suma, que o processamento da justificação administrativa somente será admitido caso existente início de prova material. Tal ocorre, sobretudo, pela impossibilidade de reconhecimento, em regra, de tempo de serviço mediante a produção de prova exclusivamente testemunhal (Súmula n.º 149 do STJ).

De outra banda, uma vez presentes os requisitos, a realização da justificação administrativa passa a ser um dever da Administração Pública, para que seja assegurada a observância do devido processo legal substancial. Trata-se de medida fundamental para que o processo administrativo alcance o seu objetivo primordial de realização da justiça com a concessão do amparo previdenciário devido, notadamente ao se considerar o caráter social dos direitos em discussão. Nesse mesmo sentido já concluiu esta 9ª Turma (TRF4, AC 5006530-64.2021.4.04.7205, NONA TURMA, Relator PAULO AFONSO BRUM VAZ, juntado aos autos em 27/06/2022).

Assim, a adoção da medida (justificação administrativa) pode se revelar essencial para a melhor elucidação das condições do labor do grupo familiar da parte autora.

Ademais, verificam-se dos autos documentação que, a priori, pode servir de início de prova material para o período em questão, em especial as certidões de nascimentos dos filhos do casal em 1980 e 1988, com indicação da profissão de José Stupp como "lavrador" e da impetrante como "do lar".

Apesar de o INSS ter identificado que José Stupp possui vínculos urbanos no período controvertido, hei por bem fazer algumas (relevantes) ponderações.

O STJ, ao julgar o Tema 532, definiu que "O trabalho urbano de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais, devendo ser averiguada a dispensabilidade do trabalho rural para a subsistência do grupo familiar, incumbência esta das instâncias ordinárias".

Outro não é o entendimento da doutrina, consoante se observa das lições de Daniel Machado da Rocha (Comentários à lei de benefícios da previdência social: lei 8.213, de 24 de julho de 1991. 20. ed. Curitiba: Alteridade, 2022, p. 121 e 123), ao afirmar que: "Desse modo, somente estaria descaracterizado o regime de economia familiar quando a renda obtida com a outra atividade fosse suficiente para a manutenção da família, de modo a tornar dispensável a atividade agrícola. (...) O exercício de atividade urbana pode descaracterizar o regime de economia familiar, mas não afetar a condição de segurado especial do membro do grupo familiar que, individualmente, dedica-se à atividade agrícola".

De outra banda, ao julgar o Tema 533, o STJ estabeleceu que "Em exceção à regra geral (...), a extensão de prova material em nome de um integrante do núcleo familiar a outro não é possível quando aquele passa a exercer trabalho incompatível com o labor rurícola, como o de natureza urbana".

Porém, é comum que os documentos rotineiramente apresentados como início de prova material contem com a qualificação das mulheres como "do lar", ainda que também se dediquem à lida rural, notadamente diante da prevalência, no Brasil, do modelo de sociedade patriarcal. Outra vezes sequer são citadas na documentação, que volta seus holofotes aos homens do grupo familiar.

Negar força probatória aos documentos apresentados (ainda que apenas indiciários do labor rural), equivaleria a um nova violação à trabalhadora rural, apagando da história a sua experiência laboral e diversos anos de dedicação ao grupo familiar, além de se exigir, indiretamente, a produção de uma prova diabólica.

Assim, não se pode subtrair da parte impetrante a possibilidade da prova de que o labor rural desempenhado era indispensável à sobrevivência do grupo familiar, na forma do art. 11, § 1º, da Lei nº 8.213/91, ainda que algum outro membro da família tenha exercido atividade urbana.

Além disso, o adjutório da parte autora à economia familiar não pode ser considerado apenas em função dos valores auferidos com a produção agrícola, mas sim a partir de uma análise mais ampla, que leva em consideração a fundamentalidade do papel do trabalhador rural para viabilizar o próprio trabalho dos demais membros do grupo.

Não se pode olvidar, ademais, da carga laboral extra que é social e automaticamente atribuída às mulheres, referente ao trabalho de "cuidado", e que envolve as mais diversas responsabilidades domésticas. Sobre o tema da "economia do cuidado", destaco a famosa frase atribuída à autora italiana Silvia Federici: "Isso que chamam de amor nós chamamos de trabalho não pago", a qual deve conduzir todos nós à reflexão. Trata-se, com efeito, de atividades (verdadeiro labor) essenciais para o gerenciamento da unidade familiar e que ganham relevo ímpar no meio rural diante da precariedade das condições sociais que o caracterizam, de forma que não podem ser ignoradas pelo julgador, o qual deve levar a perspectiva de gênero em consideração.

Nesse trilhar, o Conselho Nacional de Justiça preconiza o julgamento em perspectiva de gênero, conforme o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero1. Acerca do labor rural desenvolvido por mulheres, valiosas são as ponderados feitas no referido documento (grifos meus):

A ausência de critérios objetivos e o necessário exercício de um juízo de valor a respeito da modalidade de trabalho desenvolvida pelo produtor rural em nada contribui para a proteção previdenciária da mulher trabalhadora rural. Isso ocorre porque o poder simbólico, que parte do paradigma do trabalho masculino para atribuir valor ao trabalho feminino, acaba operando na lógica da decisão. Mesmo que a mulher dedique a mesma quantidade de horas de trabalho rural quanto o homem, ou que seu trabalho seja tão duro quanto o do companheiro ou familiar, a sua comprovação depende de um esforço probatório qualificado, o qual decorre da presunção derivada do senso comum, de que o homem é o provedor, e de que cabe à mulher uma função meramente “auxiliar”. Assim, se a família labora no campo em pequenas propriedades, ao homem está formada automaticamente a convicção de que ele lavra a terra. À esposa, tal presunção não se faz a priori. Dela comumente se exige a prova de que o tempo dedicado ao trabalho doméstico não tenha consumido a maior parte das horas do dia, o que conduz a decisão sobre reconhecer ou não o trabalho em regime de economia familiar a um espaço maior de discricionariedade judicial. Como as dinâmicas sociais partem simbolicamente da premissa da essencialidade do trabalho masculino e da eventualidade do trabalho feminino, a autoridade administrativa ou o juiz acabam por presumir essa realidade simbólica e, inconscientemente, exigem das mulheres uma prova mais robusta do seu trabalho como produtora rural, assim como um esforço maior de justificação. (...) A jurisprudência já pacificou que o trabalho urbano de um dos membros da família não descaracteriza necessariamente o regime de economia familiar dos demais trabalhadores do núcleo familiar. Ou seja, mesmo que um dos componentes do núcleo familiar realize trabalho urbano, isso não descaracteriza os demais membros da família como segurados especiais. No entanto, a decisão quanto à essencialidade do trabalho rural se altera, conforme o trabalhador urbano seja um homem ou uma mulher.

Por isso, traça diretrizes para o julgamento de magistrados atuantes na seara previdenciária, dentre os quais, destaco:

1. As julgadoras e os julgadores de processos previdenciários não podem ignorar, quando da valoração da prova, a divisão sexual do trabalho por força da qual cabe, nos núcleos familiares, prioritariamente às mulheres a tarefa dos cuidados e afazeres domésticos;

(...)

3. Importa que os questionamentos em audiência sejam claros o bastante para que a segurada não se qualifique como alguém que não contribui com a dinâmica familiar no campo por ser “do lar”, evitando-se perguntas sobre se ela “trabalha com enxada”, “faz roçado” ou “trabalha pesado”, dentre outras;

4. É necessário que haja uma interpretação harmônica do art. 11 da Lei n. 8.213/1991 com a Constituição Federal, de modo a não se excluir as seguradas mulheres, por entender que elas não trabalham “diretamente” com as atividades rurais, ao executarem tarefas domésticas em prol do grupo familiar;

5. Não existe hierarquia entre provas que podem ser admitidas no processo judicial, não havendo prevalência entre certidão de casamento ou evidências baseadas na família patriarcal em relação às demais modalidades de documento que podem ser utilizados por seguradas solteiras;

6. Na análise da documentação relativa às seguradas especiais solteiras deve ser considerada a sua dificuldade para figurar em títulos de propriedade, devendo ser especialmente valorada a documentação havida em nome de terceiros, caso harmônica com o depoimento e os demais elementos de prova;

7. As julgadoras e os julgadores, ao examinarem laudos atinentes a processos de benefícios por incapacidade, devem rechaçar conclusões que sugiram as atividades domésticas como improdutivas, inclusive quando se posicionam pela ausência de incapacidade supondo, implícita ou explicitamente, que essas tarefas não demandam esforço físico

8. Ao empreender a análise de provas documentais relativas à carência de trabalhadores urbanos e rurais, as magistradas e os magistrados devem sopesar a dificuldade histórica e estrutural das mulheres negras para constituir vínculos de trabalhos formais, podendo-se conferir especial valor, nesses casos, à prova testemunhal e CTPS, em detrimento dos registros oficiais existentes junto ao INSS;

9. As julgadoras e os julgadores devem considerar estudos que apontam as trabalhadoras rurais como responsáveis por inúmeros lares e agentes que empregam o seu rendimento prioritariamente para o sustento das famílias, e não em gastos pessoais. (...)

Note-se que a superação desse paradigma machista de desqualificação do trabalho da mulher no campo em face dos rendimentos do marido é essencial à permanência da mulher trabalhadora no meio rural em meio ao êxodo do campo para as grandes cidades, conforme leciona a emérita professora de Sociologia da UFRGS Anita Brumer (Gênero e Agricultura: a situação da mulher na agricultura do Rio Grande do Sul. Estudos Feministas, Florianópolis, 12(1): 205-227, janeiro-abril/2004, p. 225. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2004000100011/8695>. Acesso em 16 jun. 2023): "(...) devido às desigualdades de gênero, que atribuem às mulheres (principalmente às mulheres jovens) uma posição subordinada na estrutura familiar– evidenciada na distribuição das atividades nas esferas de produção e de reprodução,do poder e do acesso à propriedade da terra –, as mulheres têm menores perspectivas profissionais e motivação para permanecer no meio rural do que os homens".

Com efeito, qual o estímulo que terá uma jovem agricultora em continuar nas lides campesinas após o Judiciário ratificar o entendimento da Administração previdenciária de que ela não ostenta a qualidade de segurada especial? Se não é segurada especial para jubilar-se quando o avançar da idade inviabilizar a continuidade de trabalho, não será para eventualmente usufruir auxílio-acidente ou auxílio por incapacidade temporária, em caso de sequelas de acidente ou impossibilidade de trabalhar quando estiver doente. Com tais e pesadas adversidades, a mulher seguirá trabalhando na lavoura ou irá migrar para a primeira oportunidade de emprego de natureza urbana que surgir?

Portanto, cabe ao intérprete da norma previdenciária considerar a opção política do constituinte em proteger o mercado de trabalho da mulher (art. 7º, inciso XX, da CF), máxime quando a República Federativa do Brasil incorporou a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002), norma de status supralegal, cujas disposições são de aplicação imprescindível no caso concreto (grifos meus):

Artigo 14

1. Os Estados-Partes levarão em consideração os problemas específicos enfrentados pela mulher rural e o importante papel que desempenha na subsistência econômica de sua família, incluído seu trabalho em setores não-monetários da economia, e tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a aplicação dos dispositivos desta Convenção à mulher das zonas rurais.

2. Os Estados-Partes adotarão todas as medias apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em particular as segurar-lhes-ão o direito a: (...) c) Beneficiar-se diretamente dos programas de seguridade social;

A normativa internacional trouxe a ideia de igualdade (igualdade como conceito relacional) no viés da anti-subordinação (igualdade como proibição de discriminação).

A partir da análise do direito internacional dos direitos humanos, Rodríguez-Piñero e López (Igualdad y discriminación. Madrid: Tecnos, 1986, p. 167 et seq.), ainda no ano de 1986 e cientes da dificuldade em definir discriminação, identificam o núcleo comum do conceito veiculado nos diplomas internacionais da seguinte forma:

(i) “la discriminación presupone, en primer lugar, una diferenciación de trato frente a la norma stándar, que se actúa ‘contra’ el sujeto discriminado”;

(ii) “el origen inmediato de buena parte de las situaciones discriminatorias enlaza directamente con ciertos rasgos característicos de la conformación de una sociedad”;

(iii) “la diferenciación de tratamiento debe basarse, precisamente, en una de las razones expresamente excluidas en el artículo 14.II CE, y que contradicen el postulado de igual dignidad de los seres humanos”;

(iv) la diferenciación de trato en que consiste la discriminación tiene como destinatarios por parte pasiva a seres humanos, individualmente o em grupo”;

(v) “la diferencia de trato debe tener un especifico resultado, del que ha sido medio esa diferenciación, y que consiste en la creación de una situación discriminatoria objetiva, que anule o menoscabe para el discriminado el goce de determinados derechos, ventajas o beneficios, que perjudique sus intereses o que agrave las cargas”.

Roger Raupp Rios (Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 20), em clássica obra e por sua vez, formula a seguinte definição de discriminação: “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública”, fenômeno especialmente verificado em condutas negligentes e, inclusive, por indiferenciação (MENDAZONA, Edorta Cobreros. Discriminación por indiferenciación: estudio y propuesta. Revista Española de Derecho Constitucional. Madrid, n. 81, p. 71-114, sep./-dic. 2007).

Lembro que a ordem jurídica nacional veda tanto a discriminação direta quanto a discriminação indireta, também conhecida como discriminação por impacto desproporcional. Leio em Joaquim Barbosa Gomes (Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 23) a distinção respectiva:

Nos termos dessa teoria, em vez da busca da igualdade através da trivial coibição do tratamento discriminatório, cumpre combater a ‘discriminação indireta’, ou seja, aquela que redunda em uma desigualdade não oriunda de atos concretos ou de manifestação expressa de discriminação por parte de quem quer que seja, mas de práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém dotadas de grande potencial discriminatório.

A Previdência Social, portanto, desempenha papel essencial na preservação de direitos de lavradoras e lavradores no campo para assegurar o desenvolvimento da agricultura familiar, cuja diversidade de culturas, asseguram a alimentação do povo brasileiro em alternativa à agropecuária, consabidamente marcada pela monocultura de exportação. Logo, não é razoável privilegiar uma exegese tão restritiva quando nem o próprio legislador ordinário incorreu em tamanho rigor.

Nesse contexto, nos casos em que a parte apresenta início de prova material do labor em regime de economia familiar, deve a autarquia previdenciária realizar a justificação administrativa, ainda mais quando efetivamente pleiteada pelo segurado, sob pena de manifesta violação ao princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (art. 5.º, inciso LV, da Constituição Federal).

Saliente-se, outrossim, que o processamento da justificação administrativa não implica reconhecimento do período pleiteado, mas apenas serve de subsídio para análise do pedido de concessão de benefício previdenciário em consonância com os demais elementos apresentados pelo segurado, de forma a se garantir a prolação de decisão devidamente fundamentada e motivada por parte da Administração Pública (art. 50, caput e § 1.º, da Lei n.º 9.784/99).

Assim, com base na fundamentação supra, tenho que merece acolhida a insurgência recursal da parte impetrante, sendo o caso de conceder a segurança, a fim de determinar à autoridade impetrada que proceda à reabertura da instrução do processo administrativo (NB 202.865.459-1), com a devida análise do exercício da atividade rural no período de 01/04/1980 a 31/05/2005, procedendo-se à realização de justificação administrativa para fins de complementação da instrução, e então seja prolatada nova decisão, devidamente fundamentada.

Para cumprimento da ordem, fixo prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, contados a partir da intimação do representante judicial da União do presente acórdão, nos termos do art. 497 do CPC e da jurisprudência consolidada da Colenda Terceira Seção desta Corte (QO-AC nº 2002.71.00.050349-7, Rel. p/ acórdão Des. Federal Celso Kipper). Incumbe ao representante judicial da União que for intimado dar ciência à autoridade administrativa competente e tomar as demais providências necessárias ao cumprimento da tutela específica.

Segundo permissivo dos arts. 536, § 1.º, e 537, do CPC, em caso de descumprimento da obrigação de fazer, fixo o valor da multa diária em R$ 100,00 (cem reais). Sobre o tema, necessário ressaltar que não há qualquer vedação no que se refere à cominação de astreinte contra a Fazenda Pública, em caso de descumprimento de ordem judicial. Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça em reiteradas decisões: Resp nº 508116, DJ de 13-10-2003; Resp nº 464388, DJ de 29-09-2003; Agresp nº 374502, DJ de 19-12-2002 e Resp nº 316368, DJ de 04-03-2002.

2. Honorários advocatícios

Consoante as súmulas 105 do STJ e 502 do STF, bem como nos termos do artigo 25 da Lei n.º 12.016/2009, no mandado de segurança não há condenação em honorários advocatícios.

3. Custas processuais

Sem custas pela União (art. 4º, inciso I, da Lei n.º 9.289/96).

4. Dispositivo

Ante o exposto, voto por dar provimento ao apelo para conceder a segurança.



Documento eletrônico assinado por PAULO AFONSO BRUM VAZ, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40004468993v13 e do código CRC f43dd7a9.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): PAULO AFONSO BRUM VAZ
Data e Hora: 25/6/2024, às 9:9:19


1. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico] / Conselho Nacional de Justiça. — Brasília : Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf>. Acesso em 13 jun. 2023

5020031-51.2022.4.04.7205
40004468993.V13


Conferência de autenticidade emitida em 03/07/2024 08:02:38.

Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Apelação Cível Nº 5020031-51.2022.4.04.7205/SC

RELATOR: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ

APELANTE: ANALORES PEREIRA (IMPETRANTE)

APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS (INTERESSADO)

EMENTA

PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE JUSTIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA. INÍCIO DE PROVA MATERIAL DO LABOR EM REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO. REABERTURA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO.

1. Mostra-se abusiva a conduta da autoridade impetrada, que deixou de proceder à justificação administrativa, embora o segurado a tenha solicitado, apresentando início de prova material relativo ao período cujo reconhecimento postula, mormente tendo em vista que tal procedimento não implica reconhecimento do interregno pleiteado, mas serve de subsídio para análise do pedido de concessão de benefício previdenciário, possibilitando a prolação de decisão devidamente fundamentada e motivada (art. 50, caput e § 1.º, da Lei n.º 9.784/99).

2. No caso, o procedimento se revela como medida fundamental para que o processo administrativo alcance o seu objetivo primordial de realização da justiça com a concessão do amparo previdenciário devido, notadamente ao se considerar o caráter social dos direitos em discussão e em observância aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (arts. 2.º, caput, da Lei n.º 9.784/99 e art. 5.º, inciso LV, da Constituição Federal).

3. No julgamento do Tema 532, o Superior Tribunal de Justiça fixou tese no sentido de que: "O trabalho urbano de um dos membros do grupo familiar não descaracteriza, por si só, os demais integrantes como segurados especiais, devendo ser averiguada a dispensabilidade do trabalho rural para a subsistência do grupo familiar, incumbência esta das instâncias ordinárias (Súmula 7/STJ)" (REsp 1304479/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2012, DJe 19/12/2012).

3.1 Assim, não se pode subtrair da parte impetrante a possibilidade da prova de que o labor rural desempenhado era indispensável à sobrevivência do grupo familiar, na forma do art. 11, § 1º, da Lei nº 8.213/91, ainda que algum outro membro da família tenha exercido atividade urbana.

3.2 Ademais, o adjutório da parte autora à economia familiar não pode ser considerado apenas em função dos valores auferidos com a produção agrícola, mas sim a partir da perspectiva de gênero e de uma análise mais ampla, que leva em consideração a fundamentalidade do papel da trabalhadora rural para viabilizar o próprio trabalho do cônjuge.

3.3 Não se pode olvidar, ademais, da carga laboral extra que é social e automaticamente atribuída às mulheres, referente ao trabalho de "cuidado", e que envolve as mais diversas responsabilidades domésticas. Sobre o tema da "economia do cuidado", destaco a famosa frase atribuída à autora italiana Silvia Federici: "Isso que chamam de amor nós chamamos de trabalho não pago", a qual deve conduzir todos nós à reflexão. Trata-se, com efeito, de atividades (verdadeiro labor) essenciais para o gerenciamento da unidade familiar e que ganham relevo ímpar no meio rural diante da precariedade das condições sociais que o caracterizam, de forma que não podem ser ignoradas pelo julgador, o qual deve levar a perspectiva de gênero em consideração.

3.4 Julgamento conforme diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ; art. 7º, inciso XX, da Constituição Federal; e Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002).

4. Determinada a reabertura do processo administrativo para possibilitar a realização de justificação administrativa a fim de se possibilitar a análise do mérito do requerimento.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 9ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por unanimidade, dar provimento ao apelo para conceder a segurança, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 20 de junho de 2024.



Documento eletrônico assinado por PAULO AFONSO BRUM VAZ, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40004468994v6 e do código CRC 761ad965.Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): PAULO AFONSO BRUM VAZ
Data e Hora: 25/6/2024, às 14:20:59


5020031-51.2022.4.04.7205
40004468994 .V6


Conferência de autenticidade emitida em 03/07/2024 08:02:38.

Poder Judiciário
Tribunal Regional Federal da 4ª Região

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 13/06/2024 A 20/06/2024

Apelação Cível Nº 5020031-51.2022.4.04.7205/SC

RELATOR: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ

PRESIDENTE: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ

PROCURADOR(A): RODOLFO MARTINS KRIEGER

APELANTE: ANALORES PEREIRA (IMPETRANTE)

ADVOGADO(A): JOAO LEANDRO LONGO (OAB SC052287)

APELADO: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS (INTERESSADO)

MPF: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF)

Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual, realizada no período de 13/06/2024, às 00:00, a 20/06/2024, às 16:00, na sequência 273, disponibilizada no DE de 04/06/2024.

Certifico que a 9ª Turma, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:

A 9ª TURMA DECIDIU, POR UNANIMIDADE, DAR PROVIMENTO AO APELO PARA CONCEDER A SEGURANÇA.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ

Votante: Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ

Votante: Desembargador Federal CELSO KIPPER

Votante: Desembargador Federal SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ

ALEXSANDRA FERNANDES DE MACEDO

Secretária



Conferência de autenticidade emitida em 03/07/2024 08:02:38.

O Prev já ajudou mais de 140 mil advogados em todo o Brasil.Faça cálculos ilimitados e utilize quantas petições quiser!

Experimente agora