A algum tempo publiquei aqui no blog do Prev um texto falando sobre contribuições abaixo do mínimo após a Reforma da Previdência.
Em resumo, esse texto trazia três teses: uma relacionada à utilização de contribuições abaixo do mínimo para manter qualidade de segurado, outra sobre contagem de carência, e a última, sobre o conceito de “abaixo do mínimo”.
Felizmente, essas duas teses estão sendo acolhidas por parte da jurisprudência.
Dessa forma, nesse post, vou relembrar essas teses, e mostrar como a justiça vem enfrentando elas.
Contribuições abaixo do salário mínimo
O Decreto 10.410/2020 determinou a não computação das contribuições abaixo do salário mínimo para nenhum fim.
Nesse ínterim, este entendimento trará severas implicações na prática previdenciária. Imaginem a seguinte situação hipotética:
João recebe um salário mínimo em seu emprego. Em 10/03/2021 (DER) postula auxílio-doença. Seu vínculo empregatício possui data fim em 20/01/2020, na qual recebeu remuneração proporcional aos dias trabalhados. João possui qualidade de segurado na DER?
Assim, para o INSS, João perderá seu vínculo com o RGPS em 15/02/2021, pois somente irá considerar contribuições até 12/2019. Nesse sentido, possivelmente o benefício será indeferido por falta de qualidade de segurado.
O que diz a EC 103/2019 sobre contribuições abaixo do salário mínimo
A EC 103/2019 vedou a utilização de contribuições inferiores ao valor da contribuição mínima mensal.
Ocorre que esta vedação se deu somente para fins de tempo de contribuição. Quem diz isso é o texto literal do art. 195, §14 da Constituição, com redação dada pela EC 103/2019:
Art. 195, § 14. O segurado somente terá reconhecida como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições.
Pois bem, é compreensível (por um motivo atuarial) que a Reforma tenha vedado cômputo das contribuições abaixo do salário mínimo.
Dessa forma, ocorre que, claramente o INSS extrapolou o seu limite interpretativo, eis que o texto da EC 103/2019 apenas vedou o cômputo como tempo de contribuição.
Assim, a interpretação extensiva do INSS é totalmente descabida e infundada, conforme veremos adiante.
1ª tese: Contribuições abaixo do salário mínimo e carência
O INSS também vedou o cômputo das contribuições abaixo do salário mínimo para fins de carência.
Pois bem, esta interpretação do INSS confronta com o próprio conceito de carência, presente no art. 24 da Lei 8.213/91:
Art. 24. Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências.
Ora, se a carência se refere ao número de contribuições mensais, e o empregador é obrigado a recolher a contribuição previdenciária proporcional aos dias trabalhados (art. 30, I, a, Lei 8.212/91), o Estado estará confiscando a contribuição vertida.
Nesse sentido, adotássemos a tese do INSS, um empregado que recebe um salário mínimo, e possui data de início/fim de vínculo no decorrer do mês, jamais poderá contar como carência aquela competência.
Conforme entendimento do STF, “a existência de estrita vinculação causal entre contribuição e benefício põe em evidência a correção da fórmula segundo a qual não pode haver contribuição sem benefício, nem benefício sem contribuição.” (ADC 8, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24.5.2004).
Aliado a isto, “a dimensão contributiva do sistema é incompatível com a cobrança de contribuição previdenciária sem que se confira ao segurado qualquer benefício, efetivo ou potencial” (RE 593068, Rel. Min. Roberto Barroso, DJU 10.10.2018).
Ademais, o STJ manifestou-se no sentido de que “não se afigura razoável que o Segurado verta contribuições que podem ser simplesmente descartadas pela Autarquia Previdenciária” (REsp 1.554.596/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Mai Filho, DJU 11.12.2019).
Além disso, a contribuição do segurado empregado, proporcional ao número de dias trabalhados quando não completados os 30 dias do mês, é totalmente regular do ponto de vista tributário.
Assim, seria um absurdo exigir que o segurado complemente uma contribuição sobre uma remuneração que não recebeu, apenas para cômputo de carência (contada em número de meses)!
Portanto, tal exigência não encontraria amparo na EC 103/2019, bem como seria incoerente com o próprio conceito de carência.
2ª tese: Contribuições abaixo do salário mínimo e manutenção da qualidade de segurado
Continuando nossas teses, agora temos que o Decreto 10.410/2020 também estabeleceu que a contribuição abaixo do salário mínimo sequer manteria a qualidade de segurado.
Ou seja, a contribuição aqui não serviria (literalmente) para nada.
Aqui, teríamos um problema conceitual grave.
Para os segurados obrigatórios, o que gera o vínculo com a Previdência Social? Quem pensou “é o pagamento da contribuição” está totalmente equivocado.
A filiação para os segurados obrigatórios se dá automaticamente pelo exercício de atividade remunerada.
Isso significa dizer que o empregador pode não fazer o repasse das contribuições do empregado e ainda assim, este será considerado como segurado da Previdência Social.
Vamos trazer um exemplo para tornar mais fácil a compreensão:
Maria, contando com 18 anos, consegue seu primeiro emprego no dia 01/01/2020, recebendo uma remuneração de salário mínimo. Contudo, após 15 dias de trabalho, seu empregador a demite. O empregador realiza o pagamento de todos os encargos de forma proporcional aos dias laborados.
Neste exemplo, Maria seria segurada da Previdência Social? Se a mesma sofresse um acidente de trabalho, poderia solicitar um benefício por incapacidade?
Os novos regramentos vedariam a utilização desta contribuição proporcional à 15 dias para fins de qualidade de segurado.
Em nossa opinião, Maria seria contribuinte do RGPS na condição de empregada, possuindo direito a um auxílio-doença acidentário, por exemplo.
Se a contribuição abaixo do salário mínimo, para o segurado empregado, sequer pode manter a qualidade de segurado, qual a sua razão de existir?
Dessa forma, a restrição para cômputo como tempo de contribuição (como preconiza o texto da EC 103/2019), é plenamente compreensível. Contudo, não pode-se admitir que a contribuição vertida adequadamente seja totalmente ignorada.
A última tese: o que é contribuição “igual ou superior à contribuição mínima mensal“?
Por fim, superado o debate mais “óbvio”, já naquela época busquei criar uma reflexão com os previdenciaristas.
Qual é o real sentido da expressão “igual ou superior à contribuição mínima mensal“, presente no art. 195, §14º da Constituição?
Para o contribuinte individual e facultativo esta discussão é um tanto óbvia, eis que a contribuição sempre considera o mês inteiro.
Todavia, para os segurados empregados, esta é um questionamento frutífero.
Assim, o art. 214, §3º, II do Decreto 3.048/99 diz que para os segurados empregados o limite mínimo do salário de contribuição é o salário mínimo tomado no valor mensal diário ou horário.
Como a prática nos mostra, a maior parte dos vínculos de emprego se inicia e se finda em “datas quebradas”. Ou seja, em datas que não são o primeiro e último dia do mês, respectivamente.
Dessa forma, se o segurado laborou 10 dias no seu último mês, recebendo 10 dias de remuneração proporcional ao salário mínimo, a contribuição previdenciária incidirá sobre este valor.
Veja-se que o empregador não pagou menos que o salário mínimo, na medida em que pagou proporcionalmente aos dias laborados.
Nesse sentido, sustentamos que neste caso, a contribuição verte-se no mínimo mensal possível, do ponto de vista tributário.
Se o segurado trabalhou apenas 10 dias no mês, recebeu remuneração proporcional aos 10 dias, e recolheu a contribuição proporcional aos 10 dias, tudo foi feito de forma absolutamente regular.
Assim, o segurado não pode ter simplesmente inutilizada para qualquer fim uma contribuição vertida regularmente e dentro das regras tributárias pertinentes.
Portanto, é possível sustentar que nestes casos, como o que ilustramos, a contribuição pode-se considerar igual/acima da contribuição mínima mensal.
E o que tem dito a jurisprudência?
Enfim, depois de compreendidas as teses, venho compartilhar uma decisão judicial favorável, que vem aplicando essas teses:
REVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE. CONTRIBUIÇÕES COMO SEGURADO EMPREGADO APÓS O ADVENTO DA EC 103/2019. SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO INFERIOR AO SALÁRIO MÍNIMO. VALIDADE PARA FINS DE MANUTENÇÃO DA QUALIDADE DE SEGURADO E CARÊNCIA.
1. O § 14 do art. 195 da CF/88, incluído pela EC 103/2019, passou a excluir da contagem como “tempo de contribuição” do RGPS os salários-de-contribuição inferiores ao mínimo legal. Vedação que não se estende aos critérios de carência e de manutenção da qualidade de segurado. Inconstitucionalidade parcial dos artigos 13, § 8º, e 26, do Decreto 3048/99.
2. O conceito de limite mínimo legal para fins de contribuição mínima mensal deve ser interpretado de acordo com o artigo 28, da Lei 8212/91, não podendo ser equiparado a salário mínimo para a categoria dos segurados empregado, empregado doméstico e trabalhador avulso.
3. Hipótese em que o Decreto nº 3.048/99 extrapola o poder regulamentador previsto no artigo 84, VI, da Constituição Federal.
4. Validados os requisitos qualidade de segurado e carência na DII, é devida a concessão de auxílio por incapacidade temporária desde a DER, quando comprovadamente havia incapacidade temporária.
5. Recurso da parte autora provido.
( 5008573-74.2021.4.04.7107, QUARTA TURMA RECURSAL DO RS, Relatora MARINA VASQUES DUARTE, julgado em 23/03/2022)
Dessa forma, vejam o que referiu o voto da relatora:
Destaca-se de referido dispositivo legal que o limite mínimo mensal não é necessariamente o salário mínimo, mas o piso salarial, legal ou normativo, da categoria ou, inexistindo este, o salário mínino. De qualquer modo, o salário mínimo pode ser tomado em seu valor mensal, diário ou horário, conforme o ajustado e o tempo de trabalho efetivo durante o mês. Também o limite mínino do menor aprendiz, que é fixado em legislação específica. Ainda, quando a contratação, dispensa ou afastamento do empregado ocorrer no curso do mês, o salário-de-contribuição deve ser proporcional ao número de dias de trabalho efetivo.
De tais dispositivos se extrai que nem sempre é possível atrelar o limite mínimo do salário de contribuição a que se refere o artigo 195, §14, da Constituição Federal, ao salário mínimo e muito menos ao seu valor mensal.
A lei trabalhista, no artigo 58, da CLT, atualmente prevê o trabalho em regime de tempo parcial, que possibilita a contratação do trabalhador por período inferior a 8 horas diárias, com remuneração proporcional:
(…)
Considerar que apenas a contratação mensal integral (por 8 horas diárias/44 horas semanais) daria ensejo à proteção previdenciária, seria excluir indevidamente boa parte dos trabalhadores, contrário ao que a constituição previdenciária pretendia já na sua redação originária prescrita nos artigos 7º e 201.
(…)
Por tais motivos, tenho que o Decreto 3048/99, na parte em que estende a proibição de contagem para o RGPS da competência inferior ao limite mínimo mensal, como carência e como qualidade de segurado, estrapola claramente o seu limite regulamentador, sendo certo que o sistema constitucional brasileiro pós 1988 não permite o uso de decreto autônomo.
Ademais, mesmo para fins de cômputo do tempo de contribuição, o limite mínimo mensal do salário-de-contribuição deve ser interpretado de acordo com o artigo 28, da Lei 8212/1991, e do artigo 5º, da Lei 10.666/2003.
No caso dos autos, o demandante teve contratação e dispensa no curso do mês. A CTPS juntada aos autos demonstra que o salário contratado foi superior ao salário mínimo de sua categoria profissional (evento 23, CTPS2, p. 6), no valor de R$ 1.258,00, quando o salário mínimo nacional era de R$ 998,00.
E aí, o que acharam da decisão? Construir teses previdenciárias também é uma missão do Prev. Por isso, assine nossa newsletter e fique ligado no nosso blog!
Modelo de petição:
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