Algumas observações acerca do adequado tratamento de como serão concedidas as aposentadorias especiais às pessoas com deficiência — ainda não regulamentadas pelo Congresso Nacional —, sobre se tratarem de preocupações relevantes baseadas em registros normativos precedentes do gênero aposentação, sofrem, por isso mesmo, um vício presente na origem do argumento central restritivo em nada condizente com o novel instituto da aposentadoria especial, de acordo com o comando do artigo 40, parágrafo 4º, inciso I, da Constituição Federal.

De fato, se se trata de aposentadoria especial, é evidente que o instituto atrai para si as singularidades que lhe conferem contornos próprios e são exaustivos da matéria. Parece, portanto, precipitado acreditar que às aposentadorias especiais venham a incidir, salvo regulamentação constitucional em contrário, outros requisitos como aqueles previstos normalmente para as aposentações em geral, antes ou depois do ingresso no serviço público em datas previstas também constitucionalmente, em face das sucessivas reformas da Previdência Social a que temos experimentado e que as tem tornado desvantajosas.

A lembrança dessa particularidade só é importante, felizmente, para se aquilatar que esses fatores desvantajosos não se aplicam às aposentadorias especiais, exatamente porque são especiais.

A matéria em alusão está disciplinada no dispositivo constitucional acima mencionado, cuja redação foi determinada pela EC 47/2005, através da qual ficou estabelecida, ante a iniciativa do legislador constituinte derivado, a ressalva de que às pessoas com deficiência do serviço público ativo fossem favorecidas com o estabelecimento especial de critérios diferenciados para fins de aposentadoria, e por atenção às cláusulas inclusivas de fundamento universal que os regem (Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova Iorque e internalizada no país com status de Emenda Constitucional, nos termos do artigo 5º, parágrafo 3º, da Carta).

Mais não disse o constituinte, motivo pelo qual os novos requisitos, mais benéficos, que vierem a ser editados pelo legislador infraconstitucional, em obséquio da mencionada cláusula constitucional, mais não poderá dizer, em razão do caráter restritivo do comando constitucional de regência, de eficácia limitada. Isto significa que tais requisitos geram, desde logo, efeitos jurídicos, haja vista que impedem a edição de leis em sentido contrário àquele constante das disposições constitucionais próprias, de acordo com o que se houve assentado na Petição Inicial do Mandado de Injunção 1.967, impetrado por este autor em outubro de 2009. A lei infraconstitucional demanda o preceito posto na Constituição e é nesse sentido que não se pode antever plasticidade para a matéria em foco.

Convém destacar que as hipóteses previstas nos três incisos do parágrafo 4º, do artigo 40, da Constituição, dizem respeito a um só e único benefício jurídico: contagem especial do tempo de serviço público para fins de aposentadoria no regime próprio das pessoas ali prefiguradas e, consequência natural disso, de abono de permanência calculado pela nova regra. Nada obstante e conforme o legislador ordinário retardasse desarrazoadamente o tratamento da matéria em foco (louve-se a iniciativa como que solitária do diligente senador Paulo Paim), eis que o Mandado de Injunção foi interposto junto ao Supremo Tribunal Federal. O remédio jurídico diz com a competência da Suprema Corte para regular matéria de Direito Constitucional sobre direitos individuais e coletivos que não tenham sido adequadamente regulamentados, ainda, pelo legislador.

O Supremo detém a competência constitucional de suprir a mora legislativa nos casos especificados pela Carta Política (artigo 102, Inciso I). Atendendo uma orientação do Plenário do STF e tendo em vista uma cepa de casos semelhantes, embora não diretamente relacionados com as pessoas com deficiência (atividades de risco [Inciso II] ou insalubres [Inciso III]), o ministro Celso de Melo, relator, observando o acerto da pretensão, a documentação acostada e a mora legislativa, julgou, a bom tempo, monocraticamente e em toda sua extensão, o pedido injuncional de que se menciona. Antes, ao indeferir a medida liminar requestada no mesmo Mandado de Injunção, haja vista sua própria natureza, o relator, outrossim, teve o cuidado de esclarecer o seguinte:

“2. Observo, a título de registro, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar pretensão injuncional idêntica à ora deduzida nesta causa, não só reconheceu a mora do presidente da República (“mora agendi”) na apresentação de projeto de lei dispondo sobre a regulamentação do art. 40, § 4º, da Constituição, como, ainda, determinou a aplicação analógica do art. 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91, com o objetivo de colmatar a lacuna normativa existente: “(…) APOSENTADORIA – TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS – PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR – INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR – ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral – artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91.”(MI 721/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Pleno – grifei) Assinalo, finalmente, que esta Suprema Corte, em julgamento plenário, realizado em 01/07/2008, reafirmou essa orientação (MI 758/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO), garantindo, a determinado servidor público, o direito à aposentadoria especial, pelo fato de executar trabalho em ambiente insalubre, aplicando, por analogia, como estatuto de regência de tal situação jurídica, a Lei nº 8.213/91.”

Ora, a sinalização restou excelente e de fato o julgamento se demonstrou compatível com a orientação da própria Suprema Corte.

Os problemas do autor quanto à execução do seu direito, em verdade, começaram nesse ponto, pois a autoridade administrativa correspectiva, à qual o comando injuncional se dirigia e era supletivo da lei faltante, embora houvesse reconhecido o direito subjetivo à aposentadoria especial/abono de permanência, por razões que até mesmo a razão desconhece, impôs duas condições absolutamente idiopáticas e fora de propósito: 1) que o abono de permanência somente seria lançado em folha após o trânsito em julgado da decisão em sede de Jurisdição Constitucional sob encargo do STF (última instância da Justiça brasileira contra a qual não comporta mais recurso ordinário de espécie alguma) em sede do já mencionado MI 1967; e 2) que os valores a aplicar não contemplariam efeitos retroativos, sequer à data da propositura do feito injuncional (que marca a litigiosidade da coisa, previne o Juízo, gera litispendência, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição, nos termos do artigo 219, do Código de Processo Civil), sob o estranho argumento de que o STF não se substitui ao legislador e, portanto, não saberia aquilatar se o legislador iria ou não contemplar a matéria do mesmo modo.

Quando não se quer realizar o Direito com base no que está formalmente estabelecido em normas jurídicas, atira-se ao injustiçado a clava com a qual haverá de buscar a sua Justiça. No caso, a Suprema Corte tem respondido com vigor nominal ao dislate da autoridade administrativa que não deseja cumprir fielmente o veredicto injuncional que lhe foi dirigido.

Curiosamente, foi logo após esse exercício de brutalidade contra o direito bom e reconhecido do servidor que o advogado-geral da União resolveu interpor Agravo Regimental junto ao Plenário do STF. Perdeu, unanimentemente! O Supremo manteve, por inteiro, a decisão do Relator do MI 1.967, ministro Celso de Melo.

O AGU, então, aguardou até o último segundo e, novamente, embora sem possibilidade de recurso, propôs Embargos de Declaração, como se os Senhores Ministros não soubessem o que haviam feito, ou tivessem perdido o norte da situação, por contemplar solução impossível. Ou seja, fixar um paradigma de execução impossível, foi o argumento que, evidentemente, não tinha razão de ser e não atendia à ordem natural das coisas e mesmo à principiologia jurídica aplicável à espécie. Na dúvida quanto à melhor abordagem da norma de colmatação eleita pelo STF para regular a matéria (artigo 57, da Lei 8.213/91), aplica-se, entre termos diversos, o princípio in dúbio pro fiscum.

O servidor público com deficiência passou a legitimar-se à aposentadoria especial aos 25 de atividade/contribuição. O AGU, desse modo, perdeu, novamente, de modo unânime. Apesar disso, mais uma vez o AGU aguardou o último segundo e, com insistência incompreensível, renovou os Embargos de Declaração sem uma argumentação nova a oferecer, simplesmente repetindo os termos de sua pseudofundamentação constante dos anteriores expedientes que, numa palavra, repetiam as objeções constantes da resposta ao MI 1.967, todas repelidas pelo STF, e que apenas buscavam retardar o usufruto desse direito por parte do impetrante e, por extensão, de todos os servidores públicos com deficiência no Brasil.

O resultado é que o Plenário do STF, mantendo seu entendimento, dessa última vez sequer tomou conhecimento dos últimos Embargos de Declaração interpostos pelo AGU, cujo prazo para nova resistência, ainda que inventiva, se expira nesses próximos dias, nos termos regimentais (RISTF). Sobre isto, conversando, em pessoa, com o ministro Luís Inácio Lucena Adams, à saída da Sessão Plenária de instalação do “Seminário Nacional sobre Controle das Políticas Públicas de Acessibilidade”, recém havido no Tribunal de Contas da União, e do qual este autor teve a oportunidade de participar, depois de um certo esforço de memória, o AGU afirmou se lembrar bem do assunto e, finalmente, antecipou que não mais recorreria no caso, haja vista as três últimas oportunidades vencidas cabalmente.

O autor destas linhas, ato contínuo, agradeceu e o fez em nome de todas as pessoas com deficiência no Brasil, sobretudo os servidores públicos, que esperam um desfecho para esse quadro, à vista de que o Congresso Nacional ainda não se dignou a regulamentar, em definitivo, a mesma matéria.

O fato é o seguinte: transitado em julgado o acórdão do STF nos autos do MI 1.967, por este autor impetrado, fica gerado no Sistema Jurídico nacional a regra reguladora que faltava para o advento da efetividade do direito consagrado no artigo 40, parágrafo 4º, Inciso I, da Constituição Federal, inclusive para todos, porque a carga normativa de um Mandado de Injunção tem projeção erga omnes naquilo que comportar aos titulares do mesmo direito em igualdade de condições. O MI 1.967 traduz um leading case e também poderá ser utilizado perante a autoridade administrativa, enquanto não houver norma regulamentadora, para fazer valer aos beneficiários o direito à aposentadoria especial.

Com efeito, o Mandado de Injunção é um remédio constitucional que operacionaliza uma espécie de controle fundamental da atividade legisferante do próprio Estado, omisso quanto aos seus deveres constitucionais específicos, indutores de direitos. O STF supre, portanto, a mora do legislador infraconstitucional e o faz com plena carga, como se legislador fosse, no rastro dessa omissão institucional. A decisão injuncional vale como lei a quem dela se beneficie legitimamente, e ainda que uma lei de regência venha a regular diferentemente o que se houve regulado pela coisa julgada injuncional, já não poderá retroagir para modificá-la in pejus (artigo 5º, Inciso XXXVI, da Constituição Federal c/c o artigo 6º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

Por outro lado, é ilusória a ideia segundo a qual as aposentadorias especiais no serviço público se fiarão nos elementos de restrição remuneratória das regras previstas para o plano geral previdenciário, e também o próprio. O que é especial, especial é, já se houve referido o paradigma. E o que se cogita nesse novo preceito constitucional, o qual será agora implementado por força de norma injuncional, sempre oriunda do STF, é que se garanta à pessoa com deficiência que reúna o tempo de contribuição ou de serviço público de 25 anos ou mais o direito à aposentadoria especial, paritária e integral, ou o equivalente na continuidade ativa: abono de permanência, que é, sem dúvida, bastante vantajoso aos que ainda reúnam plenas condições de continuar servindo à Nação e à causa da inclusão social em nosso país. Afinal, nada de nós, sem nós!

A propósito, reivindica-se, com muita ênfase, que uma das vagas no STF seja preenchida por uma pessoa com deficiência, exatamente para robustecer a construção de uma Jurisprudência Constitucional aplicável à espécie, ainda carente de massa crítica suficiente para vicejá-la adiante e sobre muitos espaços ainda desassistidos de melhor orientação temática. A ideia é possibilitar, com mais implicação participante, uma contribuição eficaz para a emancipação das pessoas com deficiência no Brasil, e mostrar o quanto somos capazes de construir a grandeza do país que se eleva no plano das igualdades e da Justiça Social.

Em tempo: Após a produção deste artigo, o acórdão do MI 1.967 transcorreu in albis e a matéria do artigo 40, parágrafo 4º, inciso I, da Constituição Federal, finalmente, está regulamentada.

 

 

Fonte: Conjur

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