PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL. ARGUIÇÃO DE INCONSTUCIONALIDADE. § 8º DO ARTIGO 57 DA LEI Nº 8.213/91. APOSENTADORIA ESPECIAL. VEDAÇÃO DE PERCEPÇÃO POR TRABALHADOR QUE CONTINUA NA ATIVA, DESEMPENHANDO ATIVIDADE EM CONDIÇÕES ESPECIAIS.

1. Comprovado o exercício de atividade especial por mais de 25 anos, o segurado faz jus à concessão da aposentadoria especial, nos termos do artigo 57 e § 1º da Lei 8.213, de 24-07-1991, observado, ainda, o disposto no art. 18, I, ‘d’ c/c 29, II, da LB, a contar da data do requerimento administrativo.

2. O § 8º do artigo 57 da Lei nº 8.213/91 veda a percepção de aposentadoria especial por parte do trabalhador que continuar exercendo atividade especial.

3. A restrição à continuidade do desempenho da atividade por parte do trabalhador que obtém aposentadoria especial cerceia, sem que haja autorização constitucional para tanto (pois a constituição somente permite restrição relacionada à qualificação profissional), o desempenho de atividade profissional, e veda o acesso à previdência social ao segurado que implementou os requisitos estabelecidos na legislação de regência.

3. A regra em questão não possui caráter protetivo, pois não veda o trabalho especial, ou mesmo sua continuidade, impedindo apenas o pagamento da aposentadoria. Nada obsta que o segurado permaneça trabalhando em atividades que impliquem exposição a agentes nocivos sem requerer aposentadoria especial; ou que aguarde para se aposentar por tempo de contribuição, a fim de poder cumular o benefício com a remuneração da atividade, caso mantenha o vínculo; como nada impede que se aposentando sem a consideração do tempo especial, peça, quando do afastamento definitivo do trabalho, a conversão da aposentadoria por tempo de contribuição em aposentadoria especial. A regra, portanto, não tem por escopo a proteção do trabalhador, ostentando mero caráter fiscal e cerceando de forma indevida o desempenho de atividade profissional.

4. A interpretação conforme a constituição não tem cabimento quando conduz a entendimento que contrarie sentido expresso da lei.

5. Reconhecimento da inconstitucionalidade do § 8º do artigo 57 da Lei nº 8.213/91.

 

 

 

 

 

 

RELATÓRIO

 

LÚCIA GUEDES VISINTAINER ajuizou a ação ordinária nº 5020372-24.2010.404.7100/RS contra o INSS, obtendo juízo de parcial procedência, com a sentença (a) admitindo o intervalo de 29/04/1995 a 15/05/2008 como laborado pela autora sob condições especiais; (b) concedendo-lhe aposentadoria especial, desde a DER (15/05/2008), com a cláusula de afastamento da atividade insalubre sob pena de cancelamento do benefício, conforme o § 8º do art. 57 da Lei 8.213/91; e (c) condenando o INSS a pagar as parcelas vencidas, corrigidas, desde o vencimento de cada parcela, pelo INPC, acrescidas de juros de 1% ao mês, e, a partir de julho de 2009, atualizadas pelos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados às cadernetas de poupança, bem como a pagar honorários advocatícios fixados em 10% do valor das parcelas vencidas até a prolação da sentença.

Irresignado, o INSS interpôs recurso de apelação, sustentando que é incabível o reconhecimento da especialidade quando a exposição a agentes biológicos se dá de forma eventual, como no caso dos autos.

Por sua vez, a autora recorreu adesivamente, alegando que não cabia ao magistrado estabelecer restrição à concessão do benefício, como aquela constante do §8º do art. 57 da Lei 8.213/91, a qual não foi objeto de discussão no processo, pedindo seja afastada essa restrição.

Com contrarrazões ao recurso da autarquia e por força do reexame necessário, subiram os autos a esta Corte.

Na sessão datada de 13/12/2011, a Colenda 5ª Turma solveu questão de ordem no sentido de submeter à Corte Especial a arguição de inconstitucionalidade do § 8º do artigo 57 da Lei 8.213/91.

O Ministério Público Federal opinou pela procedência do incidente suscitado (evento 6).

Designado o dia 26/04/2012 para julgamento, a União Federal requereu sua intervenção na forma do artigo 482 do CPC, pedido que restou deferido com adiamento do feito e abertura de prazo para vista e eventual manifestação, ocasião em que requereu a rejeição do incidente.

Apresento em mesa.

 

 

VOTO

 

No recurso de apelação a parte autora insurgiu-se contra a sentença, na parte em que determinou a aplicação do artigo 57, § 8º, da Lei nº 8.213/91.

Tenho que se impõe o afastamento da norma restritiva.

Com efeito, assim dispõe o § 8º do artigo 57 da Lei 8.213/91:

Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

§ 8º Aplica-se o disposto no art. 46 ao segurado aposentado nos termos deste artigo que continuar no exercício de atividade ou operação que o sujeite aos agentes nocivos constantes da relação referida no art. 58 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 9.732, de 11.12.98)

Por sua vez, estatui o art. 46 da Lei 8.213/91:

Art. 46. O aposentado por invalidez que retornar voluntariamente à atividade terá sua aposentadoria automaticamente cancelada, a partir da data do retorno.

Como visto, segundo a norma, o titular de aposentadoria especial que voltar a exercer atividade sujeita a agentes nocivos terá cessado seu benefício.

Tenho que a referida limitação padece de inconstitucionalidade.

Com efeito, segundo estabelece o artigo 1º, inciso IV, da Carta Magna, constituem fundamentos da República Federativa do Brasil ‘os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa’.

De seu turno, estatui o artigo 6º da Constituição Federal:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

(grifei)

Nessa mesma linha estabelece o artigo 170 da Constituição Federal que a ‘ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social’, observados, dentre outros, os princípios da ‘livre concorrência’, e da ‘busca do pleno emprego’.

Não se pode olvidar, de outro tanto, que o artigo 201 da Carta Magna assegura aos trabalhadores aposentadoria no regime geral de previdência social, observado seu caráter contributivo, estabelecendo em seu § 1º a regra matriz da aposentadoria especial:

Art. 201.

§ 1º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar.

O § 1º do artigo 201 da CF não estabelece qualquer condicionante ao gozo de aposentadoria especial. Sendo a previdência um direito social do trabalhador, e o trabalho e a livre iniciativa fundamentos da República, a restrição imposta pelo legislador está a afrontar a Constituição Federal.

Reforça este sentir o que estabelece o artigo 5º, inciso XIII da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

(grifei)

A restrição à continuidade do desempenho da atividade por parte do trabalhador que obtém aposentadoria especial cerceia, sem que haja autorização constitucional para tanto (pois a constituição somente permite restrição relacionada à qualificação profissional), o desempenho de atividade profissional, e veda o acesso à previdência social ao segurado que implementou os requisitos estabelecidos na legislação de regência.

Note-se que a regra sequer tem caráter protetivo. Isso porque não veda o trabalho especial, ou mesmo sua continuidade, impedindo apenas o pagamento da aposentadoria. Não há impedimento, por exemplo, a que o segurado permaneça trabalhando em atividades que impliquem exposição a agentes nocivos sem requerer aposentadoria especial; ou que aguarde para se aposentar por tempo de contribuição, a fim de poder cumular o benefício com a remuneração da atividade, caso mantenha o vínculo. Como nada impede que se aposentando sem a consideração do tempo especial, peça, quando do afastamento definitivo do trabalho, a conversão da aposentadoria por tempo de contribuição em aposentadoria especial. O que se percebe é que a regra não protege o trabalhador, tendo, ao fim e ao cabo, mero caráter fiscal.

A Carta Maior, em seu artigo 7º, é verdade, estabelece que constitui direito dos trabalhadores urbanos e rurais a ‘redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança’(inciso XXII). Mas não veda o trabalho perigoso ou insalubre ao segurado que obteve aposentadoria especial, pois esta é um direito inalienável do trabalhador, direito este, a propósito, novamente ratificado no inciso XXVI do referido artigo 7º da CF. A proibição de trabalho perigoso ou insalubre só existe nos termos do inciso XXXIII do mesmo artigo 7º, ou seja, para os menores de dezoito anos:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

XXIV – aposentadoria;

XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

Inconstitucional, assim, a norma em exame, a qual, se adotada, pode implicar cerceamento ao desempenho de atividade, por exemplo, de profissionais de saúde (enfermeiros, técnicos em radiologia, médicos, dentistas, etc.), e trabalhadores especializados, seja de nível superior ou nível médio, de indústrias dos mais diversos ramos. Terão eles que escolher entre se aposentar ou deixar a atividade para a qual se prepararam, muitas vezes por longos anos ou, (burlando com facilidade a norma restritiva, mas perdendo a garantia que a lei e a Constituição asseguram), aguardar para requerer aposentadoria por tempo de contribuição sem se valer do tempo especial.

O fato é que, obtendo o segurado aposentadoria especial, algum trabalhador vai ter que continuar a exercer a atividade que até então ele vinha desempenhando. E a Constituição não veda que ele próprio, depois de aposentado, continue a desempenhar a atividade. Ao Estado incumbe exigir a adoção de medidas que eliminem a insalubridade, de modo que os riscos a que submetidos os segurados se tornem apenas potenciais, não podendo optar simplesmente pelo cerceamento do direito ao trabalho e à previdência social.

Convém lembrar, em reforço ao entendimento acima exposto, que o Supremo Tribunal Federal há muito consolidou entendimento no sentido de que a concessão de aposentadoria não implica extinção do contrato de trabalho. Seguem precedentes:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 3º DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.596-14/97, CONVERTIDA NA LEI Nº 9.528/97, QUE ADICIONOU AO ARTIGO 453 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO UM SEGUNDO PARÁGRAFO PARA EXTINGUIR O VÍNCULO EMPREGATÍCIO QUANDO DA CONCESSÃO DA APOSENTADORIA ESPONTÂNEA. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.

1. A conversão da medida provisória em lei prejudica o debate jurisdicional acerca da ‘relevância e urgência’ dessa espécie de ato normativo.

2. Os valores sociais do trabalho constituem: a) fundamento da República Federativa do Brasil (inciso IV do artigo 1º da CF); b) alicerce da Ordem Econômica, que tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, e, por um dos seus princípios, a busca do pleno emprego (artigo 170, caput e inciso VIII); c) base de toda a Ordem Social (artigo 193). Esse arcabouço principiológico, densificado em regras como a do inciso I do artigo 7º da Magna Carta e as do artigo 10 do ADCT/88, desvela um mandamento constitucional que perpassa toda relação de emprego, no sentido de sua desejada continuidade.

3.A Constituição Federal versa a aposentadoria como um benefício que se dá mediante o exercício regular de um direito. E o certo é que o regular exercício de um direito não é de colocar o seu titular numa situação jurídico-passiva de efeitos ainda mais drásticos do que aqueles que resultariam do cometimento de uma falta grave (sabido que, nesse caso, a ruptura do vínculo empregatício não opera automaticamente).

4.O direito à aposentadoria previdenciária, uma vez objetivamente constituído, se dá no âmago de uma relação jurídica entre o segurado do Sistema Geral de Previdência e o Instituto Nacional de Seguro Social. Às expensas, portanto, de um sistema atuarial-financeiro que é gerido por esse Instituto mesmo, e não às custas desse ou daquele empregador.

5.O Ordenamento Constitucional não autoriza o legislador ordinário a criar modalidade de rompimento automático do vínculo de emprego, em desfavor do trabalhador, na situação em que este apenas exercita o seu direito de aposentadoria espontânea, sem cometer deslize algum.

6. A mera concessão da aposentadoria voluntária ao trabalhador não tem por efeito extinguir, instantânea e automaticamente, o seu vínculo de emprego.

7. Inconstitucionalidade do § 2º do artigo 453 da Consolidação das Leis do Trabalho, introduzido pela Lei nº 9.528/97.

(ADI 1721 / DF – DISTRITO FEDERAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 11/10/2006. Órgão Julgador: Tribunal Pleno)

DIREITO DO TRABALHO E CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ART. 5º, XXXV, LIV E LV, CF/88. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL APOSENTADORIA ESPONTÂNEA. NÃO-EXTINÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. PRECEDENTES. FUNDAMENTO INATACADO. SÚMULA STF 283.

1.Na instância de origem foi ofertada à parte agravante a devida prestação jurisdicional, por meio de decisão fundamentada, que, todavia, mostrou-se contrária a seus interesses, não merecendo acolhida a tese de violação aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal.

2. É inadmissível recurso extraordinário no qual, a pretexto de ofensa a princípios constitucionais, pretende-se a análise de legislação infraconstitucional. Hipótese de contrariedade indireta ou reflexa à Constituição Federal.

3. O Supremo Tribunal Federal acolheu o entendimento de que a aposentadoria espontânea, não implica, por si só, extinção do contrato de trabalho. Precedentes.

4. Recurso que encontra óbice na Súmula STF 283, porque permaneceu inatacado o fundamento suficiente da decisão agravada.

5. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. 6. Agravo regimental improvido.

(AI 749415 AgR/PA – PARÁ. AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 01/12/2009. Órgão Julgador: Segunda Turma)

Observo não ser possível no caso em apreço simplesmente interpretar a norma para extrair dela conformidade com a Constituição Federal, pois a vedação é expressa. Resta, destarte, o recurso à técnica da declaração da inconstitucionalidade. E nesse caso há necessidade de observância da cláusula da reserva de plenário, prevista no artigo 97 da Constituição Federal:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

A observância da cláusula do ‘full bench’ no caso em apreço, a propósito, impõe-se também em observância à Súmula Vinculante 10 do Supremo Tribunal Federal:

Súmula Vinculante nº 10 – Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência no todo ou em parte.

Ante o exposto, voto por afirmar a inconstitucionalidade do § 8º do artigo 57 da Lei 8.213/91.

É o voto.

 

Des. Federal RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA

Relator

 

 

 

ACÓRDÃO

 

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Colenda Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, afirmar a inconstitucionalidade do § 8º do artigo 57 da Lei nº 8.213/91, vencido o Des. Federal Rômulo Pizzolatti, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

 

Porto Alegre, 24 de maio de 2012.

 

Des. Federal RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA

Relator

Des. Federal RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA

Relator

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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