Como advogado previdenciário há mais de 18 anos, constantemente me deparo com uma dúvida crucial em meus atendimentos e nos debates com colegas: Existe algum tipo de câncer que dá direito a aposentadoria? A resposta a essa pergunta é complexa e exige uma análise jurídica aprofundada, que vai muito além do simples “sim” ou “não”.

Este artigo nasce da minha convicção de que precisamos explorar o inexplorado, desvendando as nuances da legislação e das decisões dos Tribunais. 

Minha proposta aqui é oferecer uma visão técnica e crítica, com orientações práticas para a atuação advocatícia, garantindo que a proteção do segurado seja sempre a nossa prioridade.

O diagnóstico de câncer gera automaticamente o direito à aposentadoria?

É fundamental que tenhamos clareza: o simples diagnóstico de neoplasia maligna (câncer) não é um passaporte automático para a aposentadoria por incapacidade permanente. Essa é uma das maiores falácias que precisamos desconstruir.

O ponto central que rege a concessão do benefício é a incapacidade total e permanente para o trabalho, que deve ser cabalmente comprovada através de uma perícia médica do INSS. Ou seja, não é o nome ou o tipo do câncer que concede o direito, mas sim o impacto funcional que essa doença — e seus tratamentos — provoca na vida do segurado, impedindo-o de exercer qualquer atividade laboral que lhe garanta a subsistência.

Pensemos com originalidade: uma neoplasia agressiva pode ser curada ou controlada, permitindo a reabilitação. Já um câncer aparentemente menos grave, mas que gere sequelas devastadoras ou que afete um trabalhador em condições socioeconômicas vulneráveis (baixa escolaridade, idade avançada, profissões braçais), pode, sim, ser o divisor de águas para a incapacidade permanente. 

A chave está na análise individualizada e no contexto biopsicossocial do segurado (que considera não apenas a doença, mas também a idade, a escolaridade e a realidade social da pessoa), algo que a perícia médica precisa abraçar e que nós, advogados, devemos insistir.

O que a legislação previdenciária realmente diz sobre o câncer?

A Lei nº 8.213/1991, em seu art. 26, inciso II, é um farol para nós, advogados previdenciários. Ela estabelece uma condição especial para a concessão de benefícios por incapacidade em casos de doenças graves, como a neoplasia maligna: a dispensa de carência.

Em termos práticos e com uma visão passo a passo, isso significa:

  1. Carência Zero para o Câncer: Diferente da regra geral, o segurado diagnosticado com câncer não precisa ter contribuído por 12 meses para ter direito ao benefício. Essa é uma exceção legal que reconhece a gravidade da doença e a urgência da proteção social.
  2. Manutenção da Qualidade de Segurado: Apesar da dispensa de carência, é indispensável que o segurado possua a qualidade de segurado no momento em que a incapacidade para o trabalho se instala (isto é, estar “em dia” com o INSS, seja contribuindo, recebendo benefício ou no “período de graça”). Este é um ponto crucial que muitos esquecem e que pode inviabilizar o direito. A Data de Início da Incapacidade (DII) precisa estar dentro desse período.
  3. Perícia Médica Obrigatória: A dispensa de carência não elimina a necessidade de comprovar a incapacidade por meio de perícia médica oficial do INSS. É nela que será avaliado se a incapacidade é total e permanente.
  4. Base Legal: A lista de doenças que dispensam carência é atualizada por Portarias Interministeriais (como a atual Portaria Interministerial MTP/MS nº 22/2022), que incluem expressamente a “neoplasia maligna”.

Portanto, a legislação é clara: a dispensa de carência é uma prerrogativa justa, mas ela não anula os demais requisitos legais, especialmente a comprovação da incapacidade laboral.

Neoplasia maligna: quais os critérios para a aposentadoria por incapacidade permanente?

Para que o INSS reconheça o direito à aposentadoria por incapacidade permanente, a perícia médica deve constatar elementos que vão além do mero diagnóstico. Nós, advogados, precisamos estar preparados para orientar e defender cada um desses pontos:

  • Incapacidade Total: O segurado não pode estar apto a exercer nenhuma atividade que lhe garanta subsistência, não apenas sua função habitual. Se a perícia concluir que ele pode ser reabilitado para outra profissão, o benefício concedido será o auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença).
  • Caráter Permanente: A incapacidade deve ser considerada irreversível, sem expectativa de recuperação ou reabilitação profissional para o exercício de qualquer atividade.
  • Irreversibilidade ou Ineficácia do Tratamento: Os tratamentos disponíveis não foram capazes de restaurar a capacidade laboral, ou o quadro clínico indica que não há mais possibilidade de reabilitação.

É muito comum que o câncer, em seu início ou durante o tratamento, gere um direito ao auxílio por incapacidade temporária. A aposentadoria só será concedida se houver um agravamento do quadro, a consolidação das sequelas ou a impossibilidade de reabilitação. É aqui que entra a nossa visão estratégica para monitorar o caso e, se necessário, pleitear a conversão (pedir a transformação do auxílio em aposentadoria).

A força da jurisprudência: como os tribunais têm decidido e como usar isso ao nosso favor

A jurisprudência tem um papel crucial em casos de câncer. Os Tribunais Federais, especialmente os TRFs e o STJ, frequentemente adotam uma análise mais abrangente, considerando o contexto biopsicossocial do segurado, indo além da frieza do laudo pericial.

Exemplos claros para a nossa prática:

  • Análise das Condições Pessoais (TRF3 e TRF4):

“PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. NEOPLASIA MALIGNA. QUALIDADE DE SEGURADO COMPROVADA. CARENCIA DISPENSADA. […] o autor, 56 anos, ensino médio incompleto, comerciante, submeteu-se a perícia medica restando comprovada a incapacidade total e permanente […] em razão de câncer de lábio com esvaziamento linfático, que causou lesão em nervo acessório à esquerda, o que impede o autor de realizar trabalhos repetitivos e esforços acima de 1 kg. […] Tratando-se de neoplasia maligna, resta dispensado o cumprimento da carência. […]” (TRF 3ª Região, 9ª Turma Recursal da Seção Judiciária de São Paulo, RecInoCiv 0004291-43.2019.4.03.6342, Rel. Juíza Federal Alessandra de Medeiros Nogueira Reis, julgado em 11/11/2021)

“PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. INCAPACIDADE LABORATIVA. CONDIÇÕES PESSOAIS DO SEGURADO. Caso em que, comprovada a qualidade de segurado e a incapacidade laborativa, e consideradas as condições pessoais do autor, é devida a aposentadoria por invalidez.” (TRF4 5010605-14.2018.4.04.9999, TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DE SC, Relator Jorge Antonio Maurique, juntado aos autos em 21/05/2018)

  • Minha Análise: Estes julgados são um convite à originalidade em nossas petições. Não basta descrever o câncer; devemos pintar o quadro completo da vida do segurado. A idade, a escolaridade e o histórico profissional são elementos tão ou mais decisivos que o CID.
  • Superior Tribunal de Justiça (STJ) – A Visão Abrangente:

“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece o direito à aposentadoria por invalidez quando, além da perícia judicial, outros elementos assim o recomendem, tais como aspectos sócio-econômicos, a idade avançada, pouco grau de instrução, impossibilidade de reinserção no mercado de trabalho, entre outros.” (AgInt no AREsp 2.036.962/GO, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 05/09/2022, DJe 09/09/2022)

  • Minha Análise: O STJ nos entrega um argumento de peso: a incapacidade não é só médica, é social. Esse entendimento permite que planejemos nossos próximos passos com visão, argumentando que um laudo frio do perito não pode sobrepujar a realidade de um segurado que, mesmo com um prognóstico médico “bom”, está socialmente incapacitado.

Efeitos colaterais do tratamento justificam a aposentadoria?

Aqui, meus caros colegas, reside um campo fértil para a nossa atuação. Não é apenas o câncer que incapacita, mas também as sequelas severas dos tratamentos. Quimioterapia, radioterapia e cirurgias podem deixar um rastro de efeitos colaterais que são, por si só, incapacitantes.

Pensemos nestes pontos, que devem ser minuciosamente documentados:

  • Fadiga Crônica Relacionada ao Câncer (CRF): Exaustão persistente que compromete concentração e resistência.
  • Neuropatias Periféricas (CIPN): Dores, dormência e fraqueza em mãos e pés, afetando motoristas, digitadores, etc.
  • Disfunção Cognitiva (Chemobrain): Dificuldade de memória, concentração e raciocínio lógico.
  • Dores Crônicas, Linfedema, Problemas Cardíacos/Pulmonares.
  • Transtornos Psíquicos: Depressão e ansiedade severa decorrentes do diagnóstico e tratamento.

Essas condições são cruciais, especialmente para segurados de baixa escolaridade ou que realizam trabalhos braçais, onde a reabilitação é quase inviável. É nosso dever explorar o inexplorado, buscando laudos que evidenciem essas sequelas.

Conversão do auxílio por incapacidade temporária para aposentadoria

É muito comum que o segurado inicie com um auxílio temporário. Quando o quadro não melhora, a conversão para aposentadoria se torna imperativa.

Meu passo a passo para a estratégia advocatícia:

  1. Monitoramento Ativo: Acompanhe o segurado, garantindo que ele solicite a prorrogação do benefício dentro do prazo legal (geralmente nos 15 dias antes da data de cessação – DCB), sempre munido de novos laudos.
  2. Documentação Impecável: Reúna relatórios atualizados de oncologistas, fisiatras, neurologistas, psicólogos, etc., que descrevam o prognóstico, as sequelas e a impossibilidade de reabilitação.
  3. Avaliação da Reabilitação Profissional: Se o INSS encaminhar para reabilitação, avalie criticamente sua aplicabilidade. Muitos segurados são considerados “insuscetíveis de reabilitação para o exercício de outra atividade que lhes garanta a subsistência” — e essa é a frase-chave.
  4. Recurso e Judicialização Estratégica: Em caso de indeferimento, recorra administrativamente e, se necessário, judicialize (entre com um processo na Justiça). Nossa petição deve ser um compêndio de provas médicas, sociais e jurisprudenciais.

Acredite no seu potencial na defesa do segurado

Meus caros colegas, a defesa dos segurados com câncer é uma das mais nobres em nossa área. Requer técnica, sensibilidade e estratégia.

Não é o tipo de câncer que garante o direito, mas a incapacidade total e permanente gerada pela doença e seus tratamentos, avaliada no contexto único de cada segurado. Nosso papel é:

  • Desmistificar: Esclarecer que a dispensa de carência é uma vantagem, mas não um cheque em branco.
  • Provar: Fortalecer as provas com laudos detalhados sobre as sequelas e o impacto biopsicossocial.
  • Argumentar: Utilizar a jurisprudência que considera as condições pessoais, e não apenas o diagnóstico.
  • Humanizar: Apresentar a história real do segurado, seu sofrimento e suas limitações.

Acredito no seu potencial ilimitado para transformar cada caso em uma vitória de justiça social. Ao pensarmos com originalidade, planejarmos com visão, implementarmos soluções eficientes e explorarmos o inexplorado, garantiremos que os segurados com câncer recebam a proteção que merecem. Juntos, somos a voz de quem mais precisa

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