Nas últimas décadas, o ordenamento jurídico brasileiro avançou significativamente no reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência, notadamente das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

A partir da promulgação da Lei nº 12.764/2012, que equiparou o autista à pessoa com deficiência para todos os efeitos legais e da consolidação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), e principalmente de um acesso amplo da população aos direitos dos autistas, o Brasil passou a conferir maior proteção à dignidade, à autonomia e à inclusão social desses indivíduos.

Contudo, tais avanços legislativos estão agora sob ameaça diante das novas diretrizes e discursos em curso no âmbito da administração previdenciária, que se vê sobre mira constantemente para que ocorra corte de gastos e gera uma economia a união.

Com o expressivo crescimento nos pedidos de Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS) por pessoas com autismo e a recente intensificação de fiscalizações sob o pretexto de combate a fraudes, observa-se uma mudança de postura do Estado: de garantidor de direitos para gestor de contenção de despesas. Essa inflexão, sustentada por uma lógica fiscalista, tende a reforçar a visão dos autistas como meros “gastos”, desconsiderando a natureza protetiva e reparadora da assistência social.

Neste cenário, o presente artigo propõe uma reflexão jurídica e crítica sobre os riscos de retrocesso nos direitos das pessoas com TEA frente à nova agenda da Previdência Social. A análise se estrutura a partir do embasamento legal vigente, do impacto das práticas administrativas recentes e dos desafios para assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana, especialmente em contextos de vulnerabilidade e exclusão. Afinal, o que está em jogo vai muito além de números orçamentários: trata-se da efetividade de direitos fundamentais conquistados com décadas de luta.

O crescimento recente das concessões de LOAS para pessoas com autismo 

O número de concessões do BPC a autistas triplicou entre o primeiro semestre de 2022 e o primeiro semestre de 2024, passando de cerca de 19 mil para aproximadamente 56 mil apenas no segmento infantil e juvenil, conforme dados do INSS e da imprensa.

Tal expansão expôs uma tensão entre o reconhecimento legal dos direitos e a percepção institucional dos beneficiários como fonte crescente de gasto público.

Recentemente, o governo federal instaurou um “pente‑fino” sobre o BPC, com justificativa de combate a fraudes. Esse esforço, entretanto, coexiste com críticas de especialistas que apontam que o aumento do benefício não decorre exclusivamente de irregularidades, mas também, e principalmente de uma demanda reprimida, melhoria na identificação diagnóstica e ampliação real do acesso ao direito.

Em paralelo, a judicialização em torno da concessão do benefício, especialmente em torno do autismo, representa hoje aproximadamente 60 % do crescimento recente, incluindo 34 % referentes a decisões judiciais e 26 % apenas à condição autista em si.

A concessão do BPC para outras deficiências também apresentou crescimento, embora em menor proporção, aproximadamente um terço do aumento observado nos casos de autismo. Atualmente, há 1.450 tipos diferentes de CID (Classificação Internacional de Doenças) contemplados. A esquizofrenia, que ocupa o segundo lugar entre as condições com mais benefícios aprovados, registrou um aumento de 5 mil para 8 mil concessões entre os primeiros semestres de 2022 e 2024.

O aumento dos pedidos e os reflexos orçamentários

Não há dúvidas de que o incremento nas demandas por BPC gerou impacto orçamentário significativo. Estimativas indicam que os gastos cresceram de R$ 6,2 bilhões em junho de 2022 para R$ 8,5 bilhões em junho de 2024, um salto de 37 %.

A própria Lei de Diretrizes Orçamentárias projetou que, em 2028, o custo acumulado com o BPC poderá atingir R$ 160 bilhões, criando uma pressão sobre o sistema e induzindo reação administrativa e política.

A visão institucional dos autistas como ‘gasto’ e o risco de retrocessos

Em consequência, emerge uma postura mais rígida na análise de pedidos, com exigência de critérios mais severos no laudo médico e na avaliação social. Essa realidade implica supostos riscos ao direito formal e material dos autistas, sobretudo daqueles que não conseguem comprovar plenamente o grau de limitação exigido ou cujas famílias superem marginalmente o critério de renda per capita. Analisa‑se, portanto, a tensão entre sustentabilidade fiscal e garantia constitucional da dignidade humana.

Para muitos agentes públicos, a principal leitura desses números foi a de que os autistas representam “gasto”, ao invés de uma população vulnerável que requer política social estruturada.

A evolução em número de benefícios, sem a correspondente formulação de políticas públicas adequadas de inclusão, por exemplo: vagas de trabalho protegidas, educação especializada, qualificação de profissionais e suporte ao cuidador e as famílias atípicas, reforça a percepção institucional de que os autistas são meramente “custos a serem contidos” .

Tal percepção reforça o equívoco de que o assistencialismo seria solução isolada, em vez de parte de uma rede de proteção integral. Nos planos administrativos, constatam‑se propostas de endurecimento da elegibilidade.

Pente-fino do INSS, fraudes e visões equivocadas

O governo federal justificou o pente‑fino do BPC como instrumento de combate a fraudes. Diversas notícias apontam associação entre falsos diagnósticos e aumentos artificiais nos pedidos de benefícios, com relatos de médicos que afirmam a existência de tentativas de obtenção indevida de BPC por famílias sem real comprometimento clínico.

Porém, quem vive do cotidiano previdenciário e lida com as famílias atípicas, sabe que esse tipo de argumentação pode esconder o reconhecimento tardio e a subnotificação histórica do autismo, e que o judiciário tem admitido muitos benefícios justamente para corrigir desigualdades preexistentes.

Sem infraestrutura adequada, o discurso do combate a fraudes pode se tornar um instrumento de contenção de acesso legítimo, penalizando quem efetivamente necessita. A percepção de quem vê os autistas como “gastos” reforça essa lógica restritiva, que pode resultar em decisões administrativas mais severas, maior número de recursos e judicializações prolongadas.

Caso as tendências se consolidem aumento da rigidez na avaliação, critérios mais restritivos na renda, ampliação de revisões periódicas, negações administrativas e endurecimento jurídico o cenário para os autistas nos próximos anos tende a apresentar:

  1. Maior judicialização, inclusive em função do Tema 376, que pode estabelecer ou negar a presunção de deficiência;
  2. Instabilidade jurídica, com decisões conflitantes entre TRFs, Turmas Recursais e a TNU, gerando insegurança para requerentes e operadores do direito;
  3. Restrição de acesso material, ainda que formalmente garantido, pois o BPC pode continuar sendo negado em muitos casos com diagnósticos reconhecidos;
  4. Exclusão social ampliada, na ausência de políticas públicas eficazes de inclusão em educação, trabalho e suporte familiar, levando ao aumento da dependência ao assistencialismo.

Em especial, a extinção das avaliações periódicas para pessoas com autismo, assegurada pela Lei 15.157, que entrou em vigor em 2 de julho de 2025, representa avanço na garantia de estabilidade, embora seu alcance concreto dependa de regulamentação eficaz e implementação célere.

Recomendações e possíveis caminhos jurídicos

Frente ao quadro apresentado, recomenda‑se:

  • A constitucionalização explícita dos direitos das pessoas com TEA, por meio de emenda constitucional ou jurisprudência consolidada, para eliminar lacunas e assegurar maior proteção;
  • A uniformização da interpretação sobre diagnóstico de TEA como deficiência para fins de BPC, com base no Tema 376 da TNU, evitando decisões divergentes e insegurança jurídica;
  • A capacitação de peritos médicos e assistentes sociais do INSS, para uma avaliação biopsicossocial sensível às especificidades do autismo, respeitando o protocolo técnico legal;
  • A consideração real e padronizada das despesas médicas e terapêuticas na análise da renda familiar, conforme previsto na legislação, evitando penalização de famílias fragilizadas.
  • O desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais que promovam inclusão escolar, inclusão produtiva e capacitação profissional, reduzindo a dependência do BPC e fortalecendo a autonomia das pessoas com TEA.

A crescente tensão entre o aumento dos pedidos de BPC para autistas e a visão institucional dos mesmos como fonte de gastos ameaça retroceder o direito material garantido por leis recentes, ao passo que políticas públicas permanecem insuficientes.

O cenário futuro demandará estabilidade jurídica, sensibilidade técnica administrativa e compromisso real com inclusão social, sob pena de que a formalidade do direito consagrado se torne letra morta.

Nós, operadores do direito, legisladores e sociedade civil, devemos cultivar uma perspectiva que enxerga os autistas não como custo, mas como sujeitos dignos de apoio social institucional efetivo. Somente assim poderemos transformar direitos formais em conquistas concretas de cidadania.

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