A advocacia brasileira, em sua busca incessante pela justiça e pela defesa dos direitos, tem enfrentado um desafio complexo e, por vezes, paradoxal: o combate à chamada “advocacia predatória“.

Embora a intenção de coibir práticas abusivas seja legítima e necessária, observa-se uma preocupante má aplicação do conceito por parte do Poder Judiciário, que, em alguns casos, tem generalizado a acusação, colocando advogados sérios em uma posição defensiva e os obrigando a provar a legitimidade de suas atuações e a existência real de seus clientes.

O conceito de advocacia predatória e sua má aplicação

A advocacia predatória, também conhecida como litigância predatória ou “demandismo”, é uma prática caracterizada pelo uso abusivo do sistema judicial para obter vantagens indevidas. Geralmente, envolve a interposição massiva e padronizada de ações judiciais sem um fundamento jurídico sólido, muitas vezes com petições genéricas, visando sobrecarregar o Judiciário e obter ganhos financeiros indevidos, seja por acordos forçados ou pela concessão de benefícios.

Práticas como a fraude processual, a manipulação de documentos e a captação irregular de clientes são características desse fenômeno. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Poder Judiciário têm reconhecido a importância de combater tais condutas para preservar a integridade do sistema de justiça.

No entanto, o problema atual reside na distorção desse conceito, que tem levado à suspeita injusta sobre escritórios legítimos com alto volume de demandas.

Quando a suspeita vira abuso judicial

Em sua tentativa de coibir abusos, o Judiciário tem, em algumas situações, extrapolado os limites da razoabilidade, impondo exigências desproporcionais aos advogados. Casos em que juízes passam a exigir comprovações exageradas da legitimidade da representação são cada vez mais frequentes.

Há relatos de advogados sendo obrigados a reapresentar procurações, por vezes com reconhecimento de firma ou exigência de procuração “atualizada”, sob pena de extinção do processo, mesmo que a procuração original já fosse válida. Em situações mais extremas, exige-se o comparecimento pessoal do cliente em cartório para confirmar a ciência e a autorização do ajuizamento da demanda.

Medidas generalizadas:

– Transferem ao advogado o ônus de provar que tem clientes reais;

– Criam custos operacionais e barreiras para clientela vulnerável;

– Risco de estigmatização e publicidade negativa sem investigação prévia.

Exigências razoáveis são admiráveis quando individualizadas e fundamentadas; medidas padronizadas e desproporcionais não.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de sua Corte Especial, fixou a tese jurídica referente ao Tema 1198 em 13 de março de 2025, no julgamento do Recurso Especial nº 2.021.665-MS, que serviu como leading case para o tema.

A questão jurídica central debatida no Tema 1198 era a possibilidade de o juiz, ao vislumbrar indícios de litigância predatória (termo posteriormente adaptado para litigância abusiva), exigir que a parte autora emendasse a petição inicial, apresentando documentos que pudessem subsidiar minimamente as pretensões deduzidas em juízo. Isso incluía a discussão sobre a exigência de procuração atualizada, declaração de pobreza, comprovante de residência, cópias de contratos e extratos bancários.

A tese firmada pela Corte Especial do STJ, sob a relatoria do Ministro Moura Ribeiro, foi a seguinte:

“Constatados indícios de litigância abusiva, o juiz pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, a emenda da petição inicial a fim de demonstrar o interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova.”

Pontos relevantes do julgamento:

Diferenciação: O STJ distinguiu a “litigância de massa”, que é uma manifestação legítima do direito de ação em uma sociedade massificada, da “litigância abusiva” (anteriormente chamada de predatória), que se caracteriza pelo ajuizamento de processos infundados e sem respaldo legítimo no direito de ação.

Poder-dever do juiz: A decisão reforça o poder-dever do magistrado de combater o uso fraudulento do processo e o sobrecarregamento do Poder Judiciário com ações infundadas, sem, contudo, comprometer o acesso à justiça.

Fundamentação e razoabilidade: A exigência de documentos adicionais para a emenda da petição inicial deve ser feita de forma fundamentada pelo juiz e em observância à razoabilidade de cada caso concreto.

Impacto: Por ser um recurso repetitivo, a tese fixada no Tema 1198 serve como precedente qualificado e deverá ser aplicada por todos os tribunais do país em casos semelhantes, permitindo o destravamento de processos que estavam suspensos aguardando essa definição.

Participação do CNJ: Iniciativas e recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o enfrentamento da litigância abusiva (como a Recomendação nº 159) foram consideradas e debatidas durante o processo de julgamento, reforçando a preocupação do sistema de justiça com o tema.

Em suma, a decisão do STJ no Tema 1198 visa promover um equilíbrio entre o direito fundamental de acesso à justiça e a necessidade de coibir práticas processuais abusivas que comprometem a eficiência e a integridade do sistema judiciário.

Escritórios grandes x má-fé processual

Uma das falhas mais significativas na aplicação do conceito de advocacia predatória é a generalização que associa o alto volume de clientes e processos a uma suposta má-fé.

Escritórios de médio e grande porte, ou aqueles especializados em áreas com demandas repetitivas (como direito do consumidor, bancário ou de saúde), naturalmente possuem um grande volume de ações. Essa quantidade não é, por si só, um indício de prática ilícita, mas sim o resultado de um trabalho consolidado, da especialização em nichos específicos ou da representação de um grande número de consumidores lesados por um mesmo problema.

A confusão entre a legítima “litigância de massa” e a “litigância predatória” é um ponto crucial. Enquanto a primeira é um fenômeno lícito, que decorre, por vezes, de distorções regulatórias ou de lesões amplas que afetam múltiplos indivíduos, a segunda caracteriza-se pela ilicitude, fraude ou abuso do direito. Criminalizar a advocacia de volume sem uma análise individualizada e robusta dos casos é um equívoco que desconsidera a dinâmica do contencioso moderno e a função social da advocacia na defesa de direitos coletivos e individuais homogêneos.

O impacto para a advocacia séria

O comportamento judicial que generaliza a suspeita e impõe ônus excessivos à advocacia séria gera um impacto negativo multifacetado. Cria um ambiente de desgaste e insegurança para os profissionais, que se veem constantemente sob suspeita injusta.

A reputação de escritórios e advogados é indevidamente manchada, e o tempo e os recursos que poderiam ser dedicados à defesa efetiva dos clientes são desviados para a comprovação de uma legitimidade que deveria ser presumida.

Além disso, ao exigir comprovações adicionais e desnecessárias, o próprio Poder Judiciário contribui para o abarrotamento que diz combater, sobrecarregando ainda mais as secretarias e dificultando a celeridade processual. Essa postura pode, inclusive, desestimular a atuação de advogados em áreas de grande litigiosidade, restringindo o acesso à justiça para uma parcela da população que necessita de representação qualificada.

Impactos no direito previdenciário

Alta litigiosidade previdenciária (períodos de “limbo”, discussões sobre qualidade de segurado, revisões) gera demandas em volume; isso não presume fraude.

– Exigir atualização/ratificação maciça de procurações prejudica segurados vulneráveis (idosos, com baixa renda, residentes em áreas remotas), que dependem do acesso simplificado ao patrocínio.

– Regras de proporcionalidade e instrumentos alternativos (perícia documental, verificação cruzada com cadastros previdenciários) reduzem custos sem prejudicar a apuração de fraudes.

A linha tênue entre combater abusos e cercear a advocacia

É imperativo distinguir o combate legítimo aos abusos do cerceamento da advocacia. Práticas fraudulentas, como o uso de “laranjas”, a multiplicação artificial de demandas ou a captação ilícita de clientes, devem ser rigorosamente investigadas e punidas.

Contudo, a competência para apurar e punir a captação indevida de clientela e outras infrações éticas na advocacia é da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Quando o Judiciário interfere em questões de captação de clientes ou questiona estratégias processuais legítimas, ocorre uma sobreposição de funções que pode ferir a autonomia da OAB e as prerrogativas profissionais.

O combate à litigância predatória deve ser realizado com equilíbrio e cautela, sem que se torne um instrumento para criminalizar advogados que, legitimamente, utilizam estratégias de litígio em massa para proteger os direitos de grupos vulneráveis. O próprio STJ reconhece que a litigância de massa, apesar dos desafios que apresenta, constitui uma manifestação legítima do direito de ação constitucionalmente amparado.

Proporcionalidade e confiança no advogado

Em última análise, o combate à advocacia predatória deve ser feito de forma responsável e proporcional, sem criminalizar a advocacia de volume legítima. É fundamental que o Judiciário preserve a confiança na palavra e nos documentos apresentados pelo advogado, que, por força de lei, já possuem presunção de veracidade e fé pública em muitas de suas atribuições.

O advogado é indispensável à administração da justiça, e sua atuação deve ser pautada pela confiança e pelo respeito às prerrogativas profissionais. Medidas de combate aos abusos devem ser direcionadas a casos comprovados de má-fé e fraude, sem generalizações que prejudiquem a atuação séria e comprometida de milhares de profissionais.

A busca por um sistema judicial mais eficiente e justo passa, necessariamente, pelo reconhecimento e valorização da advocacia em sua plenitude, distinguindo o legítimo trabalho de proteção de direitos das práticas que efetivamente configuram abuso.

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