Caros Colegas!

No âmbito dos benefícios por incapacidade, há casos em que perícia médica judicial não contempla a análise de todas as enfermidades apresentadas pelo postulante, gerando dúvida quanto ao seu real estado de saúde. Isto ocorre, geralmente, quando o segurado possui enfermidades de distintas áreas médicas (ortopedia e cardiologia, por exemplo).

Contudo, ao postular a realização de uma segunda perícia para estudo das demais moléstias, é comum sobrevir decisão denegatória, sob o argumento de que determinadas doenças não foram analisadas pelo INSS na via administrativa, e, assim, supostamente não haveria pretensão resistida.

A esse respeito, tenho certeza de que a imensa maioria dos leitores já se deparou com a seguinte decisão interlocutória, ao requerer nova perícia médica judicial com profissional de outra especialidade:

“Intimado do laudo pericial elaborado por especialista em psiquiatria, o qual concluiu pela inexistência de incapacidade laborativa do Autor, o Demandante requereu a realização de nova perícia judicial, dessa vez com especialista em cardiologia, conforme atestados médicos anexados no Evento 1.

Indefiro o requerimento.

Observo que a enfermidade cardiológica não foi objeto da perícia realizada na esfera administrativa, não havendo, portanto, pretensão resistida do INSS em relação a ela.”

Referida decisão foi proferida em processo judicial onde atuei como patrono do Segurado.

Antes de ajudá-los a superar tal obstáculo processual, entendo necessário expor minha (e dos leitores, acredito) legítima aversão ao esbarrar em decisões com este teor.

Pois bem.

Com todo o respeito que merecem os juristas titulares deste entendimento, penso não ser esta a melhor interpretação da sistemática processual-previdenciária.

Como é notório, a perícia médica administrativa consiste em procedimento unilateral (e tendencioso), que não raras vezes analisa muito equivocadamente o estado de saúde dos segurados, “ceifando-lhes” o acesso à proteção social em razão de moléstia incapacitante. O grande número de ações de benefícios por incapacidade julgadas procedentes é a prova desta afirmação. Desnecessário, aqui, trazer dados estatísticos de procedência, pois, afinal, a prática forense nos confere esta informação.

Ora, se o perito do INSS deixa de informar todas as enfermidades apresentadas pelo Segurado, não é razoável que tal desídia implique prejuízo do Postulante durante o processo judicial, limitando a análise do quadro de saúde apenas àquilo que foi redigido em âmbito administrativo.

A justificativa jurídica que reconhece “falta de pretensão resistida”, em casos tais, confere ao INSS arbitrar, durante o processo administrativo, o que será objeto de apreciação judicial em eventual demanda previdenciária, lamentavelmente permitindo que as “OMISSÕES” administrativas conduzam a instrução processual.

Trata-se, na verdade, de beneficiar o INSS pela própria “torpeza”, homenageando-o pela precariedade da avaliação médica realizada na via administrativa.

Mas o prezado leitor que nos acompanha diariamente deve estar se perguntando: o que fazer diante de tais decisões?

Primeiro, entendo por bem destacar que a condição para acesso a benefícios por incapacidade não é a existência de uma moléstia em si, mas sim de um quadro de incapacidade laborativa.

Ilustrativamente, trago a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE. INTERESSE DE AGIR PRESENTE. INCAPACIDADE  TEMPORÁRIA. AUXÍLIO-DOENÇA. TERMO  FINAL. JUROS E CORREÇÃO.  1. O direito ao benefício previdenciário de auxílio-doença ou de aposentadoria por invalidez não decorre de uma moléstia específica, mas de um quadro incapacitante, que deve ser verificado através de exame médico-pericial. A constatação de impedimento laboral decorrente de patologia diversa não obsta a concessão do benefício, nem obriga a novo requerimento administrativo, consoante vem decidindo esta Corte.  […] (TRF4, AC 5019036-03.2019.4.04.9999, SEXTA TURMA, Relatora TAÍS SCHILLING FERRAZ, juntado aos autos em 05/12/2019)

PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. PATOLOGIA DIVERSA. NÃO CONFIGURADO. AUXÍLIO-DOENÇA/ APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. LAUDO PERICIAL INSUFICIENTE. CERCEAMENTO DE DEFESA. MÉDICO ESPECIALISTA. NOMEAÇÃO PREFERENCIAL. CASO ESPECÍFICO. CARDIOLOGIA. NECESSIDADE. SENTENÇA ANULADA. 1. A constatação de patologia diversa em ocasião posterior ao ajuizamento da demanda não obsta a concessão do benefício, porque “se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão”, nos termos do art. 493 do NCPC (correspondência legislativa, CPC/1973, art. 462). 2. Caracteriza cerceamento de defesa quando claramente insuficientes  as informações constantes no laudo em relação à moléstia cardíaca. 3. Hipótese em que a nomeação de perito especialista em cardiologia revela-se indispensável para a obtenção de um juízo de certeza acerca da situação fática. 4.Sentença anulada para que seja reaberta a instrução processual com a realização de perícia judicial por especialista na área de cardiologia. (TRF4, AC 5011680-54.2019.4.04.9999, TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DE SC, Relatora GABRIELA PIETSCH SERAFIN, juntado aos autos em 06/08/2019)

Como visto, é aplicável à espécie o artigo 493 do Código de Processo Civil, que assim dispõe:

Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.

Ainda, sempre pertinente é a lição do brilhante jurista José Antonio Savaris[1]:

É preciso reconhecer a existência de interesse de agir para ações de concessão ou restabelecimento de benefício por incapacidade ainda que a parte alegue, em juízo, patologia distinta daquela identificada na esfera administrativa e mesmo que a perícia judicial aponte que o início dessa patologia ocorreu em período posterior ao encerramento do processo administrativo.

O fundamento para esse posicionamento encontra-se não apenas nas ideias de acesso à justiça, instrumentalidade do processo e a presumível necessidade e desconhecimento dos segurados da Previdência Social. Trata-se de uma questão de primazia da realidade sobre a forma, isto é, a circunstância de uma determinada patologia não haver sido formalmente consignada pelo médico da Previdência Social não significa que ele não a tenha identificado ou que o segurado não tenha apresentado essa específica queixa.

O que importa é definir a relação jurídica de proteção social e, neste sentido, a existência de indeferimento administrativo ou de cessação de benefício é o quanto basta para que o juiz, de boa mente, responda ao pleito de tutela jurisdicional de inegável relevância social.

Deve-se lembrar, neste sentido, que a causa de pedir relaciona-se à incapacidade para o trabalho, sendo de menor importância a específica origem (doença ou lesão) da alegada situação incapacitante.

De outro lado, além de fundamentar a necessidade de nova perícia com base nos atestados que indicam doenças não analisadas na primeira perícia (em razão da especialidade do perito), sugiro aos colegas que observem dois elementos importantíssimos, aptos a demonstrar a efetiva pretensão resistida do INSS (doenças presentes e analisadas por ocasião da perícia):

  • observar atentamente o item “História” constante no próprio laudo administrativo do INSS. Ainda que a Classificação Internacional de Doença (CID) indicada no laudo seja de determinado campo médico, na “História” é bastante comum conter referência às demais queixas do segurado, tais como dor em membros (ortopedia/reumatologia), ansiedade (psiquiatria), arritmia (cardiologia), dificuldade respiratória (pneumologia), etc. Assim, se o CID indicado no laudo administrativo corresponde a doença oftalmológica, mas na “História” o perito do INSS relatou queixa psiquiátrica do Segurado, tem-se que as doenças psiquiátricas foram analisadas na via administrativa (pretensão resistida), sendo possível requerer nova perícia judicial para análise destas.
  • ter em mãos o Histórico de Perícia Médica (HISMED), onde deverá o perito do INSS informar eventual diagnóstico secundário. Aqui, presumindo que muitos colegas desconhecem o pouco utilizado HISMED, entendo por bem mostrar aos prezados do que se trata:

 

Estou certo de que muitas ações são precocemente julgadas improcedentes por cerceamento de defesa, especialmente em virtude de indeferimento de nova perícia médica judicial com profissional de especialidade diversa. Espero que essas dicas auxiliem os colegas na defesa de seus clientes.

Por fim, disponibilizo um modelo de recurso inominado que utilizei em um caso real e obtive sucesso.

Bom trabalho a todos!

Forte abraço!

[1] SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 6ª ed. rev. atual. ampl. – Curitiba: Alteridade, 2016, p.241.

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